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quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Morte digna

Mês das almas! Assim se qualificava o mês de Novembro devido à festa de “Todos os Tantos”, no dia um, e ao “Dia de Finados”, no dia dois. Era, e deve ser, ocasião de se pensar mais nas almas, não só das pessoas que já morreram, mas também nas das vivas que, inexoravelmente, se irão separar dos corpos que ainda animam.
 
Também os animais possuem uma alma, mas apenas animal, que lhes sustenta a vida. Porém, o Homem possui uma alma animal e  espiritual que, unida ao corpo, o torna um ser único na criação. Graças a essa alma espiritual, o Homem é capaz de conhecer o que lhe pode vir a suceder no futuro e, por isso, é capaz de o preparar. Até a própria morte. E isso confere-lhe uma dignidade enorme.
 
A 18 de Fevereiro de 1919, naufragou no Golfo da Biscaia o lugre Rocaz, do qual o meu avô era comandante. No meio de enorme temporal, o navio encalhou na ilha de Oléron. Os marinheiros procuravam salvar-se aproveitando alguma onda favorável que os levasse até à praia. Salvaram-se cinco tripulantes, entre eles o meu avô. Foi uma experiência terrível. O seu imediato e amigo tinha subido ao mastro grande para avaliar a situação, mas as mãos enregelaram e ele caiu no convés fracturando a coluna. O meu avô ajudou-o a morrer. Rezaram juntos uma Salvé Rainha.
 
Foi uma morte digna, para quem morria e para quem o assistia. Ambos conheciam o que estava para acontecer e prepararam-se para o grande momento. Este episódio sempre me fez repudiar, por enganadora, a expressão “morte digna” quando significa causar a morte de alguém para terminar com o seu sofrimento. Isso é aceitável nos animais cuja alma animal morre com eles. Nunca se vê um animal rezar na agonia, pois não tem consciência de que vai morrer. Alguns países aplicam a pena de morte aos criminosos. Mas é uma pena. E nos dois sentidos: por ser um castigo, por vezes injusto, e por não acreditar no arrependimento dos criminosos.  A dor dos pecados procede da alma espiritual, não do corpo que é matéria. Mas é pelo corpo que se manifesta o arrependimento: formulando verbalmente o pedido de perdão e mediante ações dignas de louvor.  Assim, custa aceitar que os processos para provocar a morte sejam considerados dignos.
 
O homem ganha em dignidade sempre que o seu espírito, iluminado pela verdade, “manda” no corpo. Perde dignidade quando o corpo não “ouve” o espírito. Gabriel Marcel sentencia: “Quem não vive como pensa, acaba pensando como vive”. E isso é perder a dignidade. Reconhecer que se pensa, que o Homem possui uma alma espiritual, faz toda a diferença na dignidade do ser, próprio e alheio. Antecipar a morte, a separação da alma do corpo, para que o corpo não sofra, equivale a não acreditar no valor do Homem. Sem o corpo, a alma perde o seu poder, pois não tem matéria, corpo, que se lhe sujeite e na qual se possa manifestar. Desde que morreu, Madre Teresa de Calcutá deixou de poder fazer o bem na terra, porque lhe faltava o corpo. O sofrimento, em geral, e a agonia, em particular, são os momentos em que as pessoas podem manifestar o seu valor, a sua dignidade. Como desejo morrer? Com uma imprecação de revolta, ou uma oração de confiança nos lábios?

Isabel Vasco Costa 
20 de Outubro de 2015





1 comentário:

  1. O meu tio-bisavô, Manuel Ançã de Ílhavo, morreu nesse naufrágio. Se tiver mais informações sobre o sucedido, talvez das conversas com o seu avô, ficaria muito agradecida.
    Os meus cumprimentos,
    Ana Silva

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