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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A cidade bela, na encíclica Laudato Si’

Nas cidades modernas, onde o carro parece prevalecer sobre o homem, o andar prevalece sobre o estar e sobre os valores de que o "estar" é portador: as relações humanas, a família, a agregação social.

Roma, 26 de Outubro de 2015 (ZENIT.org) Rodolfo Papa

A cidade, como realidade e metáfora da vida em comum entre os homens, faz parte dos propósitos da Doutrina Social da Igreja: "Evangelizar o social é infundir no coração dos homens o significado e a libertação do Evangelho, de modo a promover uma sociedade à medida do homem porque à medida de Cristo: é construir uma cidade do homem mais humana, porque mais conforme ao Reino de Deus".

A cidade é um tema central na ecologia do integral do papa Francisco. Na encíclica, a cidade aparece, em primeiro lugar, como o cenário dos abusos tecnocráticos, da fragmentação social, das carências materiais e espirituais das pessoas. O fenómeno da crescente e desordenada urbanização e das megacidades, fenómeno que afeta todos os continentes em diferentes graus, é analisado com detalhes: "Hoje encontramos, por exemplo, o desmesurado e desordenado crescimento de muitas cidades que se tornaram inviáveis ​​em termos de saúde, não só por causa da poluição originada de emissões tóxicas, mas também do caos urbano, dos problemas de transporte e da poluição sonora e visual. Muitas cidades são grandes estruturas ineficientes que consomem água e energia em excesso. Existem áreas que, embora construídas recentemente, estão congestionadas e desordenadas, sem espaços verdes suficientes. Os habitantes deste planeta não têm de viver cada vez mais submersos em concreto, asfalto, vidro e metal, privados do contato físico com a natureza" (nº 44). Em alguns aspectos, as megalópoles e as cidades contemporâneas em geral parecem ser o reflexo preciso do “antropocentrismo despótico” (cf. 68) e do “antropocentrismo desviado” (cf. 69), uma espécie de Torre de Babel, monumentos de presunção e “invivibilidade”. Os princípios básicos da cidade moderna, projetados na Europa e depois exportados para todo o mundo, foram inspirados em teorias funcionalistas, dentro de uma visão utilitarista do mundo. O modelo urbanístico originário da contemporaneidade é a "Ville Radieuse", projetada por Le Corbusier nas primeiras décadas do século XX. Ele propõe a distinção e separação dos lugares de acordo com as funções: os lugares de habitação são diferentes e distantes dos lugares de trabalho e de estudo; propõe-se, também, a distinção dos percursos de acordo com os meios, de modo que as estradas para automóveis conectam os lugares distantes, em separação dos percursos pedonais. Segue-se, na prática, uma cidade fragmentada, onde o carro parece ter precedência sobre o homem. É uma cidade em que o andar prevalece sobre o estar e sobre os valores de que o "estar" é portador, tais como as relações humanas, a família, a agregação social. São cidades projetadas em função das vias e não das praças, de acordo com a lógica geométrica do ângulo reto e não com a lógica do bem-viver humano. Derivam cidades que são, na verdade, "não-lugares", ou recipientes de passagem e não de morada, algo semelhante à distopia tracejada também em termos urbanísticos por Ray Bradbury em “Fahrenheit 451”, de 1953: "As rodovias e estradas de todos os tipos estão lotadas de pessoas que vão um pouco para todo lado, e é como se não fossem a lugar nenhum. Os refugiados da gasolina, os errantes do motor de combustão. As cidades se transformam em hotéis ambulantes para carros; as pessoas, cada vez mais devotadas ao nomadismo, vão de lugar em lugar, seguindo o curso das marés lunares, passando a noite no quarto em você esteve hoje e eu na última noite".

A encíclica, pelo seu contexto ético, tem uma forte carga propositiva e, assim, dedica especial atenção à "cidade bela", à cidade que realiza ou deveria realizar a harmonia com o meio ambiente e a realização do homem. "Há exemplos positivos, em alguns países, de resultados na melhora do ambiente, como [...] o embelezamento da paisagem com obras de reabilitação ambiental, ou projetos de construção de grande valor estético, progressos na produção de energia não poluente, na melhora do transporte público. Estas ações não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir positivamente. Criado para amar, brotam inevitavelmente, no meio dos seus limites, gestos de generosidade, solidariedade e cuidado" (nº 58).

A cidade bela é uma cidade habitável para o homem, na valorização do património natural, histórico, artístico e cultural: "Junto com o património natural, há um património histórico, artístico e cultural igualmente ameaçado. Faz parte da identidade comum de um lugar e é base para a construção de uma cidade habitável" (nº 143).

A cidade habitável e ecológica não deve destruir as velhas cidades, mas integrar as várias dimensões e preservar a identidade original: "Não se trata de destruir e criar novas cidades supostamente mais ecológicas, em que nem sempre é agradável viver. Devemos integrar a história, a cultura e a arquitetura de um determinado lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia também requer o cuidado das riquezas culturais da humanidade no seu sentido mais amplo. Requer atenção às culturas locais ao se analisarem questões relacionadas com o ambiente, fazendo a linguagem técnica e científica dialogar com a linguagem popular" (nº 143). Entende-se a irracionalidade da pretensão de que as cidades sejam todas iguais, sem qualquer relação com o ambiente, com as tradições e com as culturas locais.

Pensar a cidade significa pensar a cultura em todas as suas dimensões: "É a cultura não só entendida como os monumentos do passado, mas, especialmente, em seu sentido vivo, dinâmico e participativo, que não pode ser excluído quando se repensa a relação do ser humano com o ambiente" (nº 143).

Ao contrário da “Ville Lumiere” ou das distopias futuristas, na cidade bela os lugares são integrados, ligados, de modo que as pessoas se sintam em casa, enraizadas e unidas: "É necessário cuidar dos espaços públicos e dos marcos urbanos que aumentam o nosso senso de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso "sentir-se em casa" na cidade que nos contém e nos une. É importante que as diferentes partes de uma cidade sejam bem integradas e que as pessoas possam ter uma visão de conjunto em vez de se fecharem num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um espaço próprio compartilhado com os outros" (nº 151).

O transporte deve visar o bem do homem e não o lucro: "A qualidade de vida nas cidades é ligada em grande parte aos transportes, que são, muitas vezes, causa de grandes sofrimentos para os moradores. Circulam na cidade muitos carros com apenas uma ou duas pessoas, deixando o tráfego pesado, elevando o nível de poluição, consumindo enormes quantidades de energia não renovável e tornando necessário construir mais estradas e estacionamentos que danificam o tecido urbano. Muitos especialistas concordam quanto à necessidade de dar prioridade ao transporte público. No entanto, algumas medidas necessárias dificilmente serão aceitas de modo pacífico pela sociedade sem uma substancial melhora desse transporte, que, em muitas cidades, implica um tratamento indigno das pessoas por causa da superlotação, do desconforto, da baixa frequência e da insegurança" (nº 153).

A harmonia natural do universo deve orientar toda intervenção sobre a paisagem: "Qualquer intervenção urbana ou rural deve considerar como os diferentes elementos do lugar formam um todo que é percebido pelas pessoas como uma estrutura coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos e podem ser vistos como parte de um ‘nós’, que construímos juntos. Por esta mesma razão, tanto no ambiente urbano quanto no rural, devem-se preservar alguns espaços em que seja evitada a intervenção humana que os muda continuamente" (nº 151).

A bela cidade deve refletir aquele "todo em conexão e relação" que é a verdadeira identidade do cosmos. Citando a Evangelii Gaudium (nº 210), o papa Francisco afirma: "Como são belas as cidades que superam a desconfiança e integram os diferentes, fazendo dessa integração um novo fator de desenvolvimento! Como são belas as cidades, inclusive na sua concepção arquitectónica, quando estão cheias de espaços que conectam, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!" (nº 151).


(26 de Outubro de 2015) © Innovative Media Inc.
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