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sábado, 7 de novembro de 2015

Magna Carta

É meu propósito tentar transmitir algumas ideias da conferência que o Prof. Doutor João Carlos Espada deu na Residência Universitária dos Álamos, no passado dia 28 de Outubro, intitulada “Democracia, liberdade e cidadania nos 800 anos da Magna Carta”. A tarefa é difícil por se tratar de um orador com enorme capacidade para tratar clara e sucintamente inúmeros assuntos, abrangendo vários séculos, numa hora intensa que incluiu um entusiasmado debate com o público, no final.
 
Em primeiro lugar, para quem não sabe o que é a Magna Carta, abro já um parêntesis, já que foi o fio condutor da conferência. Trata-se de um dos documentos mais famosos do mundo. Foi escrito em 1215, ano em que governava, em Inglaterra, o Rei João, um monarca tirânico que prendeu a própria mulher, matou à fome os seus opositores, matou o sobrinho, impôs pesados impostos para poder pagar as suas ganâncias pessoais, etc. Os barões exigiram ao rei que obedecesse à lei e defendesse os direitos dos seus súbditos, mas tendo ele recusado, capturaram-no em Londres até que negociasse com eles. O resultado da negociação, assinada pelo rei, foi o documento que conhecemos hoje como “Magna Carta”, que teve como um dos principais autores o arcebispo de Canterbury. Impedia o exercício do poder absoluto do rei, obrigava o rei a respeitar determinados direitos e a reconhecer que a sua vontade estaria sujeita à lei e, a pouco e pouco, tornou-se símbolo de liberdade no resto do mundo.
 
A Magna Carta passou a fazer parte da lei inglesa e, mais tarde, foi incluída na declaração de independência dos EUA e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um documento que resumia as queixas de uns quantos barões tornou-se num símbolo internacional de liberdade e consagrou direitos que valorizamos tanto hoje em dia.
 
Há correntes que afirmam que a Revolução Francesa foi fundadora da democracia moderna. No entanto, segundo a opinião bem fundamentada do nosso orador e politólogo, foi a Magna Carta, sem dúvida nenhuma, que constituiu um marco fundamental na tradição ocidental de liberdade, democracia e cidadania.
 
Em primeiro lugar, apresentemos dois argumentos que contradizem a ideia de que foi a revolução francesa que inaugurou a democracia moderna. Antes de tal revolução, tinha tido lugar, em 1776, a declaração de independência americana, constituição que hoje se encontra em vigor, ainda que com várias emendas. Além disso, cem anos antes da revolução americana, ocorreu a revolução de Inglaterra, em 1688, que, ao contrário da revolução francesa, quis restaurar os princípios da Magna Carta, ou da “antiga constituição” de 1215, tal como se costumava designar. Nessa altura, em Inglaterra, restaurou-se um governo parlamentar graças aos princípios da Magna Carta.  
 
Os revolucionários franceses prometiam um mundo perfeito e divulgavam a ideia de democracia como sendo uma conquista moderna. Mas na realidade, inauguravam uma atitude política que via o futuro em ruptura com o passado. O passado só lhes interessava como motivo de crítica e ataque, por isso, tratavam de destruir ou distorcer os princípios da Magna Carta. Ainda que a revolução francesa proclamasse os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, paradoxalmente, instaurou um regime de terror – bem ilustrado na figura emblemática de Robespierre -, provocou uma ditadura revolucionária, causou a guerra civil  e levou a cabo perseguições sangrentas e intolerantes. Na verdade, da ruptura total com o passado não podia surgir senão um governo despótico porque a origem da democracia, na realidade, encontrava-se no passado, mais em concreto, na Grécia e no Cristianismo, facto que é evidente a qualquer estudioso que leia a História com honestidade, ainda que não seja adepto da cultura grega ou ainda não seja cristão.

Os princípios da Magna Carta, pelo contrário, opõem-se evidentemente a um governo despótico. Aqui estão alguns deles:
1. Todo o governo deve ser limitado.
2. A Igreja deve ser livre (separação entre Igreja e o Estado).
3. O Rei não pode criar novos impostos sem o consentimento dos “tax payers”,  ou seja,  daqueles que os vão pagar (este grupo, no século XIII, restringia-se aos nobres, mas, ao longo dos séculos, passou a abranger cada vez mais gente). Tal princípio foi retomado na Revolução americana (“no taxation without representation”) quando os colonos ingleses na América censuraram Londres por estar a violar os princípios da Magna Carta ao exigir-lhes mais impostos sem o seu consentimento.
4. O Rei não pode prender nenhum súbdito se não houver uma lei previamente existente que o permita - princípio da não retroactividade da lei – e, além disso, todos os súbditos têm direito a um julgamento justo feito pelos seus pares e pela “law of the land”.
5. Há o direito de viajar ao estrangeiro sem que o rei o possa impedir. Isto parece óbvio hoje em dia mas, na verdade, em pleno século XX, os regimes comunistas violaram esse mesmo direito obrigando os cidadãos a pedirem autorização ao governo para poder viajar (veja-se o exemplo do muro de Berlim).
6. O rei não pode interferir na propriedade dos súbditos nem pode expropriar ninguém sem que haja compensação.   

Subjacente à Magna Carta encontra-se o princípio de que “o rei não deve estar abaixo dos homens mas sim abaixo de Deus e da lei”, ou seja, todo o poder deve estar limitado pela lei escrita e pela lei moral. Todos, incluindo os líderes, devem obedecer à lei.
 
Pelo contrário, aquilo que impregnou a acção da revolução francesa foi o princípio contrário, este lema maquiavélico e iluminista, que tantos estragos provocou e ainda provoca na sociedade: os fins justificam os meios. Segundo esta divisa, se o governo for considerado “bom” pelos que o detêm, pode e deve ser totalmente ilimitado e pode levar a cabo a sua missão sem ter em conta a bondade ou a maldade dos meios. A liberdade passa a ser entendida como libertação das tradições e de toda a religião que não for o ateísmo ou a religião civil, sendo a religião católica o alvo de maior ataque. Se uma pessoa religiosa reclamar a liberdade tão proclamada pelos revolucionários, esta ser-lhes-á negada. Afinal onde está a liberdade?...

Enfim, onde o ser humano sente mais segurança não é certamente em algo tão resvaladiço como a arbitrariedade dos fins subjectivos de cada rei ou governo mas em algo tão imutável como é a lei natural. Qualquer inovação política que se erija como absoluta e que queira cortar totalmente com o passado, acabará por ser perversa e por violar a dignidade humana. Foi precisamente contra esse tipo de inovação que a Magna Carta surgiu, querendo contrariar os contornos despóticos que começavam caracterizar a conduta do rei inglês em pleno século XIII. Este documento foi um dos primeiros passos no longo caminho que levou ao surgimento do constitucionalismo no Ocidente.







Maria Madalena Brito
(doutoranda de Estudos Clássicos na FLUL)





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