Cardeal Turkson fala sobre doações governamentais, a reforma da Cúria, a possível viagem do Papa à África e a opinião do Papa sobre a economia
Roma, 25 de Julho de 2014 (Zenit.org) Deborah Castellano Lubov
O cardeal ganês Peter Turkson disse que a visita do Papa a
África não é totalmente absurda. Em uma longa entrevista concedida a
Zenit, o presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz discute se o
departamento será reformado e se o Papa vai visitar a África, e
esclarece as críticas do Papa contra o "sistema". O cardeal também
explica o papel do seu Conselho no incentivo a empreendimentos
comerciais nos países em desenvolvimento e expressa sua opinião sobre o
apoio financeiro dos governos na cooperação para o desenvolvimento.
Antes de ser entrevistado por ZENIT, o cardeal apresentou um seminário no Vaticano sobre Um bem comum global: rumo a uma economia mais inclusiva,
organizado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, em colaboração com a
Secretaria de Estado, realizado nos dias 11 e 12 de Julho.
Zenit: Quando o Papa critica o "sistema" está se referindo ao
capitalismo? Ou quer dizer um sistema desprovido de valores e ética
cristãos?
Cardeal Turkson: O Papa realmente não quer criticar o capitalismo;
prova disso é a sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Na mesma
exortação ele deixa claro [que não está escrevendo] uma doutrina social
como a Caritas in Veritate, Centesimus Annus, ou a Populorum Progressio.
O Papa deixa claro que este não é seu objectivo.
Acabamos de ter um Sínodo sobre a Nova Evangelização, e depois de
cada sínodo, o papa normalmente escreve uma exortação. Por exemplo, o
sínodo da evangelização traz a alegria de Cristo às pessoas. O Papa
explica que esta alegria não é encontrada em qualquer lugar e que
existem problemas e obstáculos na experiência desta alegria. O Papa
identifica alguns dos obstáculos à pregação do Evangelho e expõe a
alegria como uma condição necessária para os crentes em sua experiência
religiosa.
Então, não é e não pode ser um ataque ao capitalismo, porque essa
palavra não aparece nenhuma vez neste documento. Embora os economistas
digam que o mercado é o agente do capitalismo, o Papa, no entanto, fala
estritamente do mercado. O Papa não fala de um mercado que deve
acrescentar os valores cristãos em sua ideologia; mas refere-se ao
sentido antropológico, ou seja, que o ser humano foi criado para ser o
centro da Criação. Quando algo substitui ou nos leva para longe do
centro, então, significa que nós nos tornamos escravos do outro. E se,
neste caso, é o mercado ou as finanças, então algo está errado. Esta é a
questão fundamental do Papa.
A declaração mais forte do Papa é que os mercados devem estar a
serviço do ser humano e não vice-versa. Para o Papa, o ser humano não
pode ser reduzido a um estado de servidão e não deve ser obrigado a
sustentar servilmente as forças de mercado, o que pode levá-lo a
centrar-se exclusivamente na produção de mais dinheiro.
Quando isso acontece, o Papa diz que algo não está no caminho certo. O
sentido fundamental da antropologia na Criação é que a humanidade está
no centro. É a glória de tudo o que Deus criou. Se esta glória for
substituída por outra coisa, significa que esta está fadada ao outro.
Muitos pobres, abandonados, excluídos são substituídos do centro de Deus
pelas forças do mercado. O Papa defende aqueles que se tornam vítimas
de um sistema económico (qualquer quer que seja), que perdem o seu papel
central.
Várias pessoas concordam com esta tese. Por exemplo, muitos de vocês
recordam que no ano passado Obama citou a Evangelii Gaudium em seu
discurso no Congresso. Em 2009, no discurso de posse, o presidente Obama
fez comentários semelhantes a estes, ou seja, a necessidade de um
mercado que serve o povo, e suas últimas palavras para o Congresso foram
que se os Estados Unidos, com todos os seus recursos, fosse incapaz de
ajudar os pobres a sair dessa situação, isso significaria que o Estado
estaria falhando com muitas pessoas. Portanto, trata-se de um conceito
que não é compartilhado apenas pelo Papa, apesar do Papa ter sido capaz
de expressá-lo de tal forma que todos agora estão começando a pensar
sobre isso.
Em nosso seminário sobre "bem comum global" e uma sociedade mais
inclusiva, discutimos a forma de evitar uma visão redutiva da pessoa
humana, ou seja, quando a pessoa humana é reduzida no carácter, no
estado, e na natureza, e de outras formas, a qualquer coisa.
Zenit: Qual é o papel do Conselho na promoção de iniciativas empresariais nos países em desenvolvimento?
Cardeal Turkson: É um trabalho difícil. Este é o segundo seminário
sobre economia que fizemos este ano. O primeiro aconteceu em meados de Junho junto com o CRS (Catholic Relief Services) nos Estados Unidos e
com a Mendoza Business School na Universidade de Notre Dame, e foi sobre
o impacto do investimento.
O impacto do investimento é uma forma mais ampla dos serviços
financeiros que foi introduzida para mais e mais pessoas. No contexto da
Igreja esta prática ocorre quando o capital de congregações religiosas
ou fundos de pensão é utilizado para algo social que produza um bom
resultado para a humanidade concretamente e, ao mesmo tempo, um retorno económico justo. Portanto, não é dinheiro perdido ou subsidiado. Pelo
contrário, é o dinheiro utilizado como capital de forma equilibrada para
alcançar ambos os benefícios económicos e sociais, de modo a suprir as
necessidades da nossa população, mas com a possibilidade de um lucro com
o qual serão realizados novos investimentos.
Após o seminário, a nossa intenção é fornecer ideias para as
comunidades eclesiais locais. Nossa sugestão é que com tudo que está
acontecendo no mundo hoje, as formas mais tradicionais que as Igrejas
locais se esforçam para financiar seus projectos fiquem cada vez mais no
passado. Neste sentido, quero dizer que o pedido de ajuda financeira a
governos ou a outras partes da Igreja está diminuindo rapidamente.
Vários bispos realizam viagens e fazem apelos de missão nos Estados
Unidos ou para algumas paróquias da Europa, e, após receberem, eles
querem começar a trabalhar da melhor maneira. Muitas vezes, porém, com
esse dinheiro não se torna capital de risco (venture capital). Isso
significa que temos que mudar a forma de apoiar e manter viva as nossas
Igrejas locais. Precisamos pensar em como reconsiderar o capital
disponível para investir e gastar parte da renda gerada a partir dele
para apoiar as igrejas locais, em direcção a certa auto-suficiência. Se
este for o caso, o que as igrejas vão precisar é um acesso fácil e
conveniente ao capital.
Queremos convidar os presidentes de empresas e administradores
financeiros, e descobrir como podemos contribuir para tornar essa ideia
uma realidade. Eu conversei com alguns dos delegados do Banco Mundial
para delinear as ideias que podem ajudar, mesmo que através das igrejas
locais, já estejamos explorando todas as possibilidades.
Zenit: O Papa Francisco planea visitar a África?
Cardeal Turkson: Como qualquer Papa gostaria de visitar cada parte da
Igreja. Mas até agora não há nenhum anúncio sobre a África. O Papa tem
agendada uma visita à Coreia do Sul e Filipinas. Quem sabe o próximo
país será a África. Só porque não foi mencionado, não significa que não
vai acontecer.
Zenit: Agora, sobre a reforma da Cúria Romana. O seu Dicastério mudará?
Cardeal Turkson: A história mostra que o nosso Dicastério passou por
alguns processos de mudança. Imediatamente após o Concílio Vaticano II
foi instituído uma comissão simples, e também uma comissão de leigos, de
modo que, o presidente dos leigos poderia cuidar do nosso escritório.
Foi assim no pontificado de Paulo VI. Com João Paulo II a comissão
evoluiu e tornou-se um conselho. E a partir de então, o conselho
permaneceu por conta própria, com o seu próprio presidente e os
requisitos típicos de um conselho.
Ao longo da história houve momentos em que o presidente do Pontifício
Conselho Justiça e Paz cuidava dos migrantes. O Cardeal Etchegaray foi
presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz e também do Cor Unum. O
Cardeal Martino, meu antecessor, em um determinado momento era o
presidente de ambos, dos migrantes e da justiça e paz. Actualmente, cada sector tem seu próprio presidente.
Tudo isso tem a ver com o documento que rege as operações dos
escritórios, conselhos e congregações da Cúria Romana. No caso de João
Paulo II, agora São João Paulo II, foi o Pastor Bonus. O Pastor Bonus é o
documento que se tornou a constituição apostólica que tem dirigido a
existência desses escritórios. Se o papa Francis quiser rever o
documento e reconfigurar a Cúria ou encontrar uma nova maneira de
realizar, ele tem a liberdade de fazê-lo.
Se tal Constituição Apostólica for alterada de alguma forma, então, a
estrutura de certos escritórios ou conselhos da Cúria podem ser
mudados. Depende de como o papa Francisco, ou qualquer futuro Papa
queira configurar a forma com que governa a Igreja.
Zenit: Qual é o seu ponto de vista sobre as doações governamentais
nos países em desenvolvimento? Funcionam ou deveriam sofrer alguma
mudança?
Cardeal Turkson: A ajuda do governo pode ser visto de duas maneiras.
Em primeiro lugar, a ajuda do governo poderia ser ajuda entre governos
ou poderia ser uma ajuda de outro lugar para os governos. Para algumas
organizações internacionais, os governos locais e nacionais são seus
parceiros naturais.
Se estivermos falando sobre o Banco Mundial ou o Fundo Monetário
Internacional, ou outros, todos têm a ver com os governos. Raramente
vemos a interacção com uma instituição que não seja governamental. Esta é
uma de várias situações que acontecem, e quando este for o caso,
podemos "fazer esse tipo de coisa com uma mão?" "Depende" parece ser a
resposta. A ajuda não vem apenas do Banco Mundial ou o Fundo Monetário
Internacional, mas também do governo britânico, através do DFID, do
Congresso dos Estados Unidos através da USAID, e o Canadá também tem
seus próprios programas de ajuda. Portanto, há muitas agências e
diferentes tipos de ajuda externa, que pode ajudar em várias partes do
mundo. Sendo ganês, eu sei que em certo ponto o Ministro da Educação de
Gana pediu a entidades estrangeiras para financiar o orçamento e o
processo educativo no país, o que eu acho triste. 'Triste' se, como um
governo, você precisa de alguém para ser capaz de entender como se forma
e como se educar a sua população.
O sucesso destes programas de ajuda depende das condições que
acompanham esses programas ou das subvenções provenientes destas
agências. Às vezes, os doadores, ou aqueles que fazem a concessão,
parecem mostrar suas garras. Por exemplo, se eu não estou satisfeito com
as políticas locais ou nacionais, mostram as garras e querem tomar uma
posição - como parte das condições de financiamento do programa.
Como agora, Uganda, por causa de sua posição sobre a legislação
‘anti-gay’. O apoio financeiro de países estrangeiros pode ser reduzido
ou retirado, embora sejam fundos para programas de saúde. Então, quando
esses programas não são acompanhados de neutralidade, mas estão
vinculados às condições, perdem o objectivo de servir para o bem comum.
Com relação à pergunta, "o apoio ajuda os governos locais? O apoio pode
ser útil, no sentido de possibilitar a liberdade de agir de alguns
governos locais. Pode ser útil se os programas assegurarem a
transparência, regras anti corrupção e os fundos não forem dispersos
para outras áreas. Pode ser útil se a contribuição económica, conhecida
como "ajuda", não for dissipada no movimento de uma conta bancária para o
país beneficiário.
(Trad.:MEM)
(25 de Julho de 2014) © Innovative Media Inc.
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