Muito mais que firmeza contra os abusos sexuais
Do cardeal O´Malley, um dos principais papáveis, fala-se da sua luta contra a pedofilia e a limpeza que fez nestas dioceses. Mas é menos conhecido o seu trabalho durante décadas com os hispânicos e o seu amor pela herança espanhola na América.
Actualizado 4 de Março de 2013
Javier Lozano / ReL
O cardeal estadunidense Sean O´Malley, arcebispo de Boston, aparece nas apostas como um dos favoritos para suceder a Bento XVI. Na América do Norte aparecem depois os cardeais Ouellet e Dolan, num discreto segundo plano, onde sempre gostaram de estar.
Nas análises sobre este frade capuchinho destaca-se, e com razão, a sua exemplar actuação nos escândalos dos abusos sexuais de alguns sacerdotes. Assim o viu e valorizou a Santa Sé, que o foi transferindo para Dioceses gravemente salpicadas por estes factos e que foi resolvendo até chegar a Boston, epicentro deste problema. Ali ganhou a próprios e estranhos com o seu bom fazer e sem ceder nos valores não negociáveis.
Muito mais que um lutador contra os abusos
Por tudo isto, O´Malley é conhecido, valorizado e analisado durante estes dias pela sua firmeza nestes casos de abusos. Mas a sua valia vai muito mais além. A sua grande implicação na causa pró-vida, a sua proximidade na atenção aos fiéis ou o seu agudo sentido de humor são só alguns aspectos mais deste cardeal. Mas o que é menos conhecido e do que se fala mais bem pouco é do seu amor aos latino-americanos e ao espanhol. De facto, dedicou boa parte da sua vida sacerdotal à atenção dos ibero-americanos que emigraram para os Estados Unidos. Foi testemunha do seu brutal crescimento, do papel que jogam na Igreja nos EUA e sobretudo dos seus sofrimentos e desenraizamento.
Este cardeal estadunidense de origens irlandesas considera vital para a sua vida sacerdotal a devoção e a vivência da fé dos povos hispânicos. “Teve o privilégio de trabalhar ali durante vinte anos, o que eu chamo a lua-de-mel do meu sacerdócio e minha vida como religioso. A fé, a alegria, o sentido de celebração, a centralidade da família e a comunidade, o sentido de generosidade e sacrifício, a religiosidade popular e a piedade mariana enriqueceram certamente a minha vida e a minha vocação”, contou monsenhor O´Malley durante o congresso Ecclesia na América.
Doutorado em literatura espanhola
A sua vocação sempre foi de serviço ao outro. O seu lema episcopal assim o disse: “Fazei o que Ele lhes diga”. E já como frade capuchinho quis obedecer à chamada do Senhor através da sua Igreja. Fi-lo depois do chamamento de João XXIII, que pedia à Igreja dos EUA e Canadá o “dízimo”. Quer dizer, que enviassem dez por cento dos seus sacerdotes à América Latina. “Ainda que eu fosse só um jovem seminarista, sentia que o Santo Padre estava falando-me a mim, e comecei a preparar-me para o dia em que pudesse ir trabalhar para a América Latina” assim aprendeu espanhol na perfeição. Nesse tempo também estudou alemão, português, hebreu e grego.
Sem dúvida, a sua estreita vinculação ao mundo ibero-americano é ainda muito maior. Na Universidade Católica de Estados Unidos doutorou-se em literatura espanhola e portuguesa e pode estudar os místicos espanhóis.
Encarregado dos hispânicos e portugueses
Quando recebeu a ordenação diaconal recebeu uma carta do pai geral pedindo que quando fosse ordenado sacerdote iria para a Ilha de Páscoa acompanhar um capuchinho alemão que estava ali há 40 anos. Mas os planos do Senhor eram outros. O arcebispo de Washington requisitou-o para a sua Diocese dado que só tinham ali um sacerdote que falasse espanhol e queria que o irmão Sean se encarregasse da crescente comunidade hispânica na capital dos EUA.
Foi nesse momento quando se converteu no director do Centro Católico Hispânico, “nele tratávamos de cobrir as necessidades pastorais e materiais de milhares de refugiados que fugiam das guerras da América Central”. Vinte anos esteve dedicado a eles chegando a ser inclusive vigário episcopal da Arquidiocese de Washington para as comunidades hispânicas, portuguesas e haitianas.
Uma história que lhe marcou a vida
Com respeito a este cardeal O´Malley conta uma história que reflecte o que se vivia nesses anos. “Durante a minha primeira semana no Centro Católico Hispânico, tive uma experiência que nunca esquecerei”, conta 30 anos depois. Um camponês salvadorenho entrou no centro e pediu para ver o sacerdote. Mostrou-lhe uma carta e começou a chorar amargamente. Era um papel da sua mulher, que o acusava de tê-la abandonado e aos seus seis filhos. Que morriam de fome esperando que lhes enviasse dinheiro dos EUA.
Este homem trabalhava de sol a sol, partilhava a habitação com outros dez salvadorenhos e comia os restos dos pratos sujos para não gastar dinheiro na comida e poder enviar todo à família. “Disse-me que cada semana punha todo o dinheiro que tinha ganho num sobrescrito e o enviava fielmente à sua esposa, mas que até agora, seis meses depois, ela não tinha recebido nenhuma das suas cartas”. Perguntei-lhe como fazia o envio e este camponês explicou que metia o dinheiro num sobrescrito, punha os selos necessários e depois o deixava “nessa caixa de correio da esquina”.
Ao escutar isto, O´Malley espreitou pela janela para ver a caixa de correio azul. “O problema – conta - era que não se tratava de uma caixa de correio, mas sim que era uma original caixa de lixo”. Por isso, o cardeal arcebispo de Boston afirma que “o triste episódio fez-me ver claro o difícil que é ser um estrangeiro em terra estranha, onde não falas a língua, nem conheces os costumes, onde tudo é novo e diferente e onde todo o ambiente pode ser muito hostil”. Nunca esqueceu esse facto e por isso teve uma especial atenção aos imigrantes ibero-americanos.
O sentido de humor do cardeal
O cardeal O´Malley tem um grande sentido de humor e não é difícil escutá-lo a contar anedotas da sua própria vida em intervenções ou homilias. Entre elas há uma que destaca e onde pagou a “praxe” uma vez ordenado.
Pouco depois de sair do seminário foi nomeado capelão de uma cadeia: “eu estava muito nervoso. Não sabia o que dizer pelo que agarrei num livro que se chamava ‘Como escrever um sermão’ e que dizia que falaria aos horizontes dos ouvintes”. Esta passagem inspirou-o para falar aos presos das grandes escapatórias bíblicas como a de Daniel, São Pedro ou São Paulo. Evidentemente conseguiu a atenção total e absoluta dos presos durante a homilia. E claro ele se foi muito contente e satisfeito para casa. Mas o problema foi quando na manhã seguinte o chamaram mais que zangados e lhe contaram que se tinham escapado seis reclusos durante a noite.
Sean O´Malley é um pastor que como ficou acreditado conhece a realidade dos mais pobres e também da cultura ibero-americana. Para mais ainda, foi bispo nas Ilhas Virgens no Caribe e teve que bailar com a mais feia nas dioceses podres pelos casos de abusos. Um bispo forjado na adversidade, plenamente fiel ao Magistério, querido pelos seus fiéis e próximo com os seus problemas. E além disso, consciente dos problemas e os desafios deste mundo. E também papável.
Do cardeal O´Malley, um dos principais papáveis, fala-se da sua luta contra a pedofilia e a limpeza que fez nestas dioceses. Mas é menos conhecido o seu trabalho durante décadas com os hispânicos e o seu amor pela herança espanhola na América.
Actualizado 4 de Março de 2013
Javier Lozano / ReL
O cardeal estadunidense Sean O´Malley, arcebispo de Boston, aparece nas apostas como um dos favoritos para suceder a Bento XVI. Na América do Norte aparecem depois os cardeais Ouellet e Dolan, num discreto segundo plano, onde sempre gostaram de estar.
Nas análises sobre este frade capuchinho destaca-se, e com razão, a sua exemplar actuação nos escândalos dos abusos sexuais de alguns sacerdotes. Assim o viu e valorizou a Santa Sé, que o foi transferindo para Dioceses gravemente salpicadas por estes factos e que foi resolvendo até chegar a Boston, epicentro deste problema. Ali ganhou a próprios e estranhos com o seu bom fazer e sem ceder nos valores não negociáveis.
Muito mais que um lutador contra os abusos
Por tudo isto, O´Malley é conhecido, valorizado e analisado durante estes dias pela sua firmeza nestes casos de abusos. Mas a sua valia vai muito mais além. A sua grande implicação na causa pró-vida, a sua proximidade na atenção aos fiéis ou o seu agudo sentido de humor são só alguns aspectos mais deste cardeal. Mas o que é menos conhecido e do que se fala mais bem pouco é do seu amor aos latino-americanos e ao espanhol. De facto, dedicou boa parte da sua vida sacerdotal à atenção dos ibero-americanos que emigraram para os Estados Unidos. Foi testemunha do seu brutal crescimento, do papel que jogam na Igreja nos EUA e sobretudo dos seus sofrimentos e desenraizamento.
Este cardeal estadunidense de origens irlandesas considera vital para a sua vida sacerdotal a devoção e a vivência da fé dos povos hispânicos. “Teve o privilégio de trabalhar ali durante vinte anos, o que eu chamo a lua-de-mel do meu sacerdócio e minha vida como religioso. A fé, a alegria, o sentido de celebração, a centralidade da família e a comunidade, o sentido de generosidade e sacrifício, a religiosidade popular e a piedade mariana enriqueceram certamente a minha vida e a minha vocação”, contou monsenhor O´Malley durante o congresso Ecclesia na América.
Doutorado em literatura espanhola
A sua vocação sempre foi de serviço ao outro. O seu lema episcopal assim o disse: “Fazei o que Ele lhes diga”. E já como frade capuchinho quis obedecer à chamada do Senhor através da sua Igreja. Fi-lo depois do chamamento de João XXIII, que pedia à Igreja dos EUA e Canadá o “dízimo”. Quer dizer, que enviassem dez por cento dos seus sacerdotes à América Latina. “Ainda que eu fosse só um jovem seminarista, sentia que o Santo Padre estava falando-me a mim, e comecei a preparar-me para o dia em que pudesse ir trabalhar para a América Latina” assim aprendeu espanhol na perfeição. Nesse tempo também estudou alemão, português, hebreu e grego.
Sem dúvida, a sua estreita vinculação ao mundo ibero-americano é ainda muito maior. Na Universidade Católica de Estados Unidos doutorou-se em literatura espanhola e portuguesa e pode estudar os místicos espanhóis.
Encarregado dos hispânicos e portugueses
Quando recebeu a ordenação diaconal recebeu uma carta do pai geral pedindo que quando fosse ordenado sacerdote iria para a Ilha de Páscoa acompanhar um capuchinho alemão que estava ali há 40 anos. Mas os planos do Senhor eram outros. O arcebispo de Washington requisitou-o para a sua Diocese dado que só tinham ali um sacerdote que falasse espanhol e queria que o irmão Sean se encarregasse da crescente comunidade hispânica na capital dos EUA.
Foi nesse momento quando se converteu no director do Centro Católico Hispânico, “nele tratávamos de cobrir as necessidades pastorais e materiais de milhares de refugiados que fugiam das guerras da América Central”. Vinte anos esteve dedicado a eles chegando a ser inclusive vigário episcopal da Arquidiocese de Washington para as comunidades hispânicas, portuguesas e haitianas.
Uma história que lhe marcou a vida
Com respeito a este cardeal O´Malley conta uma história que reflecte o que se vivia nesses anos. “Durante a minha primeira semana no Centro Católico Hispânico, tive uma experiência que nunca esquecerei”, conta 30 anos depois. Um camponês salvadorenho entrou no centro e pediu para ver o sacerdote. Mostrou-lhe uma carta e começou a chorar amargamente. Era um papel da sua mulher, que o acusava de tê-la abandonado e aos seus seis filhos. Que morriam de fome esperando que lhes enviasse dinheiro dos EUA.
Este homem trabalhava de sol a sol, partilhava a habitação com outros dez salvadorenhos e comia os restos dos pratos sujos para não gastar dinheiro na comida e poder enviar todo à família. “Disse-me que cada semana punha todo o dinheiro que tinha ganho num sobrescrito e o enviava fielmente à sua esposa, mas que até agora, seis meses depois, ela não tinha recebido nenhuma das suas cartas”. Perguntei-lhe como fazia o envio e este camponês explicou que metia o dinheiro num sobrescrito, punha os selos necessários e depois o deixava “nessa caixa de correio da esquina”.
Ao escutar isto, O´Malley espreitou pela janela para ver a caixa de correio azul. “O problema – conta - era que não se tratava de uma caixa de correio, mas sim que era uma original caixa de lixo”. Por isso, o cardeal arcebispo de Boston afirma que “o triste episódio fez-me ver claro o difícil que é ser um estrangeiro em terra estranha, onde não falas a língua, nem conheces os costumes, onde tudo é novo e diferente e onde todo o ambiente pode ser muito hostil”. Nunca esqueceu esse facto e por isso teve uma especial atenção aos imigrantes ibero-americanos.
O sentido de humor do cardeal
O cardeal O´Malley tem um grande sentido de humor e não é difícil escutá-lo a contar anedotas da sua própria vida em intervenções ou homilias. Entre elas há uma que destaca e onde pagou a “praxe” uma vez ordenado.
Pouco depois de sair do seminário foi nomeado capelão de uma cadeia: “eu estava muito nervoso. Não sabia o que dizer pelo que agarrei num livro que se chamava ‘Como escrever um sermão’ e que dizia que falaria aos horizontes dos ouvintes”. Esta passagem inspirou-o para falar aos presos das grandes escapatórias bíblicas como a de Daniel, São Pedro ou São Paulo. Evidentemente conseguiu a atenção total e absoluta dos presos durante a homilia. E claro ele se foi muito contente e satisfeito para casa. Mas o problema foi quando na manhã seguinte o chamaram mais que zangados e lhe contaram que se tinham escapado seis reclusos durante a noite.
Sean O´Malley é um pastor que como ficou acreditado conhece a realidade dos mais pobres e também da cultura ibero-americana. Para mais ainda, foi bispo nas Ilhas Virgens no Caribe e teve que bailar com a mais feia nas dioceses podres pelos casos de abusos. Um bispo forjado na adversidade, plenamente fiel ao Magistério, querido pelos seus fiéis e próximo com os seus problemas. E além disso, consciente dos problemas e os desafios deste mundo. E também papável.
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