Rémi Brague, filósofo francês e especialista em filosofia árabe e judaica medieval, está nesta terça-feira, dia 21, em Lisboa. Às 18h30, profere uma conferência na Universidade Católica (auditório Cardeal Medeiros, edifício da Biblioteca João Paulo II), sobre o tema Europa, que cultura? Que futuro? (entrada livre).
Distinguido com o Prémio Ratzinger em Teologia e o Grande Prémio em Filosofia pela Academia Francesa, considerado um dos pensadores franceses mais importantes da actualidade, Rémi Brague é professor das universidades de Sorbonne/Paris e de Munique.
A 6 de Junho de 1994, Rémi Brague concedeu uma entrevista ao Público, disponível também no livro Deus Vem a Público (ed. Pedra Angular) e que a seguir se reproduz, onde falava da identidade europeia e antecipava já alguns dos debates que hoje estamos a viver.
A via romana
Recusa falar dos temas sobre os quais pensa que não tem nada de novo a dizer, além do discurso do homem da rua. Pensa que a especificidade da Europa é assumir culturas que lhe são anteriores e exteriores – a judaica e a grega – e transmiti-las. A isso chama a “via romana”, título do livro que publicou em 1992 e que o fez sair do estrito círculo académico, tornando-o conhecido do grande público. Mas agora admite que a melhor imagem para isso seja a do aqueduto, que vai beber numa fonte e dar de beber ao que está a seguir.
Especialista em Filosofia Árabe e Judaica, lecciona também Filosofia Grega e Romana na Sorbonne e em Munique, sendo investigador no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Social), Rémi Brague nasceu a 8 de Setembro de 1947. É desde 2009 membro da Academia Católica de França e foi, no mesmo ano, eleito para a Academia de Ciências Morais e Políticas.
Depois de outras obras, publicou no final de 1992 o livro Europe, la voie romaine(Europa, a via romana), depois traduzido em várias línguas. Nele pretende demonstrar que a cultura do continente é essencialmente “romana”. Mas a via romana que Rémi Brague caracteriza é secundária em relação às suas fontes gregas (na cultura) e judaicas (no cristianismo). O que o leva a pensar que talvez a melhor imagem para a definir seja o aqueduto.
Entrevista: Europa, uma identidade excêntrica
No seu livro Europa, a Via Romana, propõe que a civilização romana não criou nada, limitando-se a transmitir a herança grega e a herança judaica.
RÉMI BRAGUE – Sim, esse é um conceito da Europa que proponho e creio que este é o único livro que conheço que se propõe definir a Europa. Apareceu no fim de 1992, depois de o preparar durante uma dezena de anos: a ideia central data do Inverno de 1982. Portanto, não tem nada a ver com Maastricht nem com as eleições europeias.
Nem, tão-pouco, com a queda do Muro de Berlim, em 1989?
Não directamente. Tudo estava pensado antes. Gostaria simplesmente de dizer que tivemos, a partir de Maastricht e do referendo [francês sobre o Tratado da União Europeia], uma inundação de livros sobre a Europa. Mas tenho a impressão de que o meu é o único que tenta definir o que é a Europa, enquanto todos os outros supõem conhecido o sentido dessa palavra e, sobretudo, chamam à Europa não importa o quê.
Há no título, bem entendido, um jogo de palavras, no sentido da via como estrada, mas que designa também uma atitude de espírito que é, parece-me, um dinamismo, uma direcção, um avanço. Portanto, uma estrada, um caminho, mais do que uma concepção estável de um certo tesouro cultural.
Chamei-lhe romana não porque queira fazer o elogio da Roma histórica. Não era essa, de todo, a minha intenção. Como também não era dizer que a Europa latina, por exemplo, à qual você e eu pertencemos, seria mais europeia que a outra.
A minha intenção é dizer que toda a Europa é romana, na medida em que ela repete, constantemente, no decurso da sua história cultural, um acto de coragem e de humildade dos romanos que consistia em reconhecer-se inferior em relação à cultura grega.
Mas ao mesmo tempo, os romanos aceitaram ir buscar coisas a esta cultura, aceitaram aprender, em lugar de dizer ‘Não temos nada a aprender dessa gente, eles são demasiado refinados, e a vitória política é nossa’. Eles aceitaram transmitir ao resto do mundo bens culturais que não produziram. E que foram buscar a uma cultura superior.
Que repercussões houve às suas ideias?
O livro foi objecto de diversos artigos na imprensa italiana. Um desses artigos dizia: “Rémi Brague é muito gentil, mas esquece, entre as conquistas da romanidade, o aqueduto.” E dizia isso de um modo divertido: ‘Sou um italiano do Sul’, dizia o autor, ‘somos pessoas que têm sede e, para nós, a água é preciosa e, para nós, Roma são os aquedutos’.
Descobri que a imagem do aqueduto é talvez ainda melhor que a do caminho. Num aqueduto, há um desnível: há uma fonte que está no cimo e qualquer coisa que está em baixo. Ora bem: é romana a experiência daquele que sabe que há uma fonte cultural antes dele e uma barbárie interior e exterior a irrigar. É isso que eu chamo a via romana.
Nesse seu livro, propõe uma outra ideia: o acontecimento fundador da Europa é a recusa do marcionismo. O marcionismo cultural é um perigo para a Europa da época actual?
É, em qualquer caso, um perigo que a ameaça. É uma tentação que ela deve combater. A ideia de marcionismo pode parecer um pouco esotérica. É uma alusão à história da teologia cristã, quando o dogma cristão se formou. O cristianismo é uma religião segunda, em relação à revelação que foi feita a Israel.
Então, era muito fácil dizer: ‘Os escritos do Antigo Testamento fizeram a sua época, agora estão ultrapassados, fora de moda, ‘out’, e podemos contentar-nos com a plenitude da revelação feita por Cristo’. Ora bem, a Igreja, no século II da nossa era, soube recusar esta tentação, ligada ao nome de Marcion, que queria justamente largar as amarras, cortar os laços com o Antigo Testamento.
Desde então, o cristianismo mantém, no interior de si mesmo, uma exterioridade. Mantém, no seu livro sagrado, o livro sagrado de uma outra religião que o precede. O que é absolutamente extraordinário quando pensamos nisso. Quando vamos à livraria comprar uma Bíblia, compramos os livros sagrados de duas religiões num só volume.
E o marcionismo é a recusa dessa relação?
O marcionismo é justamente esta tentação de pensar que nós não temos mais nada a aprender com quem quer que seja. Para Marcion, não tínhamos nada a aprender do judaísmo, do Antigo Testamento; para nós, será talvez que não temos nada a aprender dos clássicos – gregos e latinos –, ou talvez, mais geralmente, que não temos nada a aprender do passado.
A Europa poderia dizer: propomos ao resto do mundo não olharmo-nos e admirarmo-nos, mas olhar e admirar os valores em relação aos quais a Europa se definiu. E a questão de saber se a Europa actual é fiel ou não a esses valores é um outro problema. Porque o que a Europa transmitiu ao resto do mundo é qualquer coisa que a julga a ela mesma.
O marcionismo consiste, então, em propor-se a si mesma como modelo. A contentar-se de si e a recusar tomar emprestada, para além de si mesma, mais alto que a si mesma, o que oferecer ao resto do mundo.
Então, a Europa não se construiu com uma identidade própria, mas sobretudo na relação, no confronto com outras identidades?
Sim, é o que eu chamei no meu livro uma identidade excêntrica. Aliás, é curioso que, quando o livro foi traduzido na Alemanha, foi essa expressão que o editor escolheu como título. Porque via romana, na Alemanha, não pode designar senão uma estrada, não pode designar um ‘way’, um modo de viver, o tao chinês.
A identidade europeia consiste em ter constantemente a consciência da sua exterioridade em relação a uma fonte; a partir de quando, na história, se fala de Europa; a partir de quando a palavra Europa designa um espaço e não apenas uma direcção – o primeiro significado de Europa era o Oeste, o Ocidente, o canto em que o sol se põe, o poente, poderíamos mesmo dizer.
Quando falamos então de Europa?
Falámos de Europa como constituindo uma unidade a partir de Carlos Magno. E quem era Carlos Magno? Digamos que era um chefe de bando que teve sorte, um chefe de bando germânico que soube conseguir tomar o poder, mas que constantemente sonhava em fazer também no Ocidente o que se fazia em Bizâncio, no Leste.
Ele quis criar um Império Romano do Ocidente porque sentiu que era inferior cultural, economicamente e em todos os planos, ao Império Grego. Esse é um gesto, uma atitude profundamente europeia: saber-se já excêntrico. Se olharmos o mapa do mundo, estamos habituados a ver a Europa no centro do mundo; quando a Europa se formou, não havia Novo Mundo. E depois, o centro do mundo – cultural, económico, político – estava em Bizâncio ou em Bagdad. A Europa sentiu-se sempre longe de tudo, periférica, excêntrica.
E essa experiência acabou por ser decisiva?
Há, na experiência cultural europeia, uma transposição desta experiência geográfica. A Europa é o lugar onde nos apercebemos de que não éramos gregos. E então dissemo-nos: ‘Está bem, não somos gregos, estamos separados da fonte, não somos tão pouco judeus.’ Há um facto que se deve sublinhar: nem Atenas nem Jerusalém – as duas cidades símbolo da cultura europeia – nem uma nem outra se encontram na Europa.
Ora bem, ser europeu é saber-se exterior, é saber-se destinado a tentar co-pensar esta experiência de exterioridade e inferioridade por um retornoàs fontes, que são fontes exteriores. É isso que há de notável na experiência europeia e que a distingue de um retornoàs fontes em que se insiste em outras civilizações.
As outras civilizações procuram regressar às suas próprias fontes, à restituição de uma pureza primitiva. A Europa, por seu lado, vai para além de si mesma. É o que eu chamo, no meu sistema de conceitos, um renascimento. O que é próprio dos renascimentos europeus é a procura, fora da Europa, de elementos com que se alimentarem.
Segundo esse conceito de apropriação, como podemos ler o crescimento de fenómenos como o racismo e a xenofobia? Não é contraditório com o que diz?
Totalmente. A Europa tem um contributo a dar ao resto do mundo. O problema que é preciso colocar não é saber se a Europa, tal como existe actualmente, deve acolher dentro das suas fronteiras tais ou tais povos alógenos.A minha pergunta é saber se temos alguma coisa a dar ao resto do mundo, se temos qualquer coisa a transmitira essas gentes, estejam eles fora das fronteiras da União Europeia ou dentro delas. O problema de saber se eles estão fora ou dentro não é muito importante. Importante é saber se temos qualquer coisa para lhes dar.
O problema da imigração é o problema da educação que podemos dar. Acreditamos ainda suficientemente no Estado de Direito? Acreditamos ainda suficientemente no cristianismo, sejamos nós crentes ou não, mas falando em termos de valores? Acreditamos suficientemente no que a Europa trouxepara continuar a propor isso ao resto do mundo? O resto são problemas técnicos, para os quais não tenho competência particular.
Mas para isso é preciso falar também de uma identidade comum ou, pelo menos, de um mínimo denominador comum a toda a Europa. Podemos falar nesses termos, quando nos referimos à Europa do Atlântico aos Urais?
Eu verifico que o que se chamou Europa, no passado, era a cristandade católica – e isto não é uma reivindicação, entendo por cristandade católica a cristandade antes da Reforma. Ou seja, a Europa de Lisboa a Zagreb, e de Nápoles a Estocolmo – apenas para evitar que se chame Europa não importa seja a que for, porque também podemos dizer que os japoneses estão muito europeizados.
Depende do que entendemos por Europa. Na História, o que a si mesmo se chamou Europa – o espaço no interior do qual as pessoas diziam ‘nós somos europeus’, o espaço que foi chamado ‘Europa’ pelos seus vizinhos, fosse Bizâncio ou o Islão – foi sempre esse espaço.
Verifico apenas que a Grécia, por exemplo – e isto vai chocar, já chocou – não se considerou nunca como fazendo parte da Europa. Considerou-se sempre, a partir da sua conversão, que é bem anterior à da França ou de Portugal, como fazendo parte da cristandade, isso é evidente. Considerou-se como fazendo parte do mundo romano, a tal ponto que os bizantinos se chamavam a si mesmos romanos, não se chamavam gregos, isso para eles era um insulto, grego queria dizer pagão. Mas nunca Bizâncio se chamou a si mesma Europa.
Isso deixou consequências até hoje…
É isso que explica que, depois da queda de Bizâncio, muita água passou debaixo das pontes, mas os países herdeiros de Bizâncio conservam uma relação ambivalente com a Europa: uma atitude de exterioridade, de tentação, de aversão ao mesmo tempo; uma atitude muito ambígua, muito complicada, que fez com que eles se tenham decidido chamar-se a si mesmos europeus e dizer que pertenciam à Europa apenas numa data muito recente. O que varia segundo os períodos: por exemplo, a escolha da escrita latina pela Roménia, que escrevia em cirílico, no século XVII, é qualquer coisa de muito importante.
Mas é preciso introduzir aqui nuances. Não quero, com o que digo, excluir ninguém da Europa. Verifico apenas, como historiador, que há regiões que actualmente denominamos como europeias e que o fizeram apenas muito tarde.
Isso é verdade também para outras regiões que não estão tão presentes no seu livro e na sua reflexão como a Escandinávia, os celtas ou o Leste?
No meu livro, nenhuma região é privilegiada ou desfavorecida em relação a outras. Digo muito claramente que a Escandinávia, a Hungria, a Polónia, a Croácia, a Irlanda, são tão europeias quanto a França, a Itália, a Espanha, Portugal, etc.
Às questões de línguas, de etnias, como dizemos, não lhes dou nenhuma importância. O que é importante para mim são as tradições culturais. Por exemplo, os holandeses são de certo modo muito mais europeus que nós. Não esqueçamos que foram eles que nos devolveram o cristianismo.
Os valores europeus desenvolveram-se depois do Renascimento e das Luzes também porque havia uma certa homogeneidade europeia. Hoje, isso não existe no continente. Ainda é possível aprofundar e desenvolver os valores europeus?
Eu sou apenas um filósofo, não sou economista, politólogo ou geopolítico. E também não sou profeta. Numa palavra, não sou mais do que um filósofo, uma pessoa que tenta descrever a realidade.
Não sou sequer o que em Paris chamamos um intelectual. Um intelectual é alguém que lhe diz o que se deve pensar, alguém que lhe traz a solução dos problemas, que lhe diz ‘é preciso fazer isto ou aquilo’. Contento-me em colocar nas mãos dos meus concidadãos – europeus e outros – os instrumentos com que eles possam forjar as suas próprias opiniões.
Sobre problemas como o que me coloca, não tenho mais competência que qualquer outra pessoa. Tentei falar, neste livro, unicamente sobre o que tenho qualquer coisa mais a dizer aos meus contemporâneos. Do resto, permito-me calar.
Direi apenas talvez que, diante da situação actual, me pergunto se não teria feito melhor, em lugar de escrever um livro sobre a Europa, escrever um sobre a Suméria ou sobre o antigo Egipto. Porque me pergunto se a Europa não estará em vias de desaparecer. Não sou de um grande optimismo. Quando vejo o que se passou na Bósnia, pergunto-me o que se passaria se a Europa existisse. Se ela existisse, não aconteceria nada como aquilo.
Bósnia e desmembramento da União Soviética: não é possível ultrapassar as divisões através da tradição comum da Europa?
As divisões podem ser ultrapassadas. A minha ideia vai contra o fechamento da Europa sobre si mesma. Não temos que anexar à Europa pessoas que não querem necessariamente entrar nela. Se eles pedem para entrar, se aceitam viver connosco, construir connosco qualquer coisa de comum, é preciso dizer-lhes que sim. Mas é preciso que a decisão venha deles. Não temos que decidir que a Europa vai até aos Urais ou Vladivostoque. São as pessoas que habitam nessas regiões que devem ver se desejam fazer qualquer coisa connosco.
O perigo para a Europa são os europeus. O perigo é que os europeus crêem que já são europeus e que não têm que fazer um esforço para o ser cada vez mais. Como se bastasse ter nascido num dado espaço para beneficiar automaticamente de todas as riquezas que implica a herança cultural europeia.
É preciso assumir a herança e isso exige um esforço, uma conquista sobre si mesmo, e sobretudo não se considerar um privilegiado, um abastado a quem restaria apenas usufruir sossegadamente do que possui.
O processo de construção europeia, que começou para reconciliar a França e a Alemanha, pode assemelhar-se de algum modo à construção dos Estados Unidos ou são processos completamente diferentes?
Os Estados Unidos têm, em relação à Europa, uma vantagem: a de saber que a população americana vem de fora. E isso é uma experiência profundamente europeia: o que somos vem de fora. Temos talvez muita tendência, naquilo que se chama, geograficamente falando, a Europa, a esquecer isso. Os americanos estão constantemente a lembrá-lo e estão muito conscientes disso. É, para eles, uma oportunidadede ‘europeidade’.
A segunda coisa que importa reforçar é que, quando a Comunidade Europeia foi construída, não foi por razões económicas mas por razões políticas, em particular para pôr fim à guerra.
Se as pessoas que construíram a Europa no início, nos anos 50, decidiram colocar em comum o carvão e o aço, não foi para poder fabricar tanques mais potentes ou viaturas maiores, mas para cortar na raiz as possibilidades de rivalidades económicas e, portanto, o risco de guerra. E penso que fizeram muito bem em começar por aí.
Mas hoje a dimensão económica prevalece sobre todas as outras…
Sim, é o que toda a gente diz. Verifico apenas que o modo como a França e a Alemanha se reconciliaram e, além deles, muitos outros países – porque temos todos que fazer o nosso exame de consciência e pedir perdão uns aos outros – esse modo é um exemplo para o resto do mundo. Foi um japonês que mo disse, e que me disse que gostaria de fazer o mesmo com os coreanos. Parece ridículo mas somos, para o resto do mundo, um exemplo do que se pode fazer.
Qual é o lugar da tradição espiritual nesta herança comum? Os fundamentalismos não mostram hoje que as religiões e as espiritualidades são hoje mais factor de divisão que de unidade?
Isso exigiria uma grande resposta. A própria ideia de fundamentalismo não é um conceito.O que chamamos fundamentalismo no protestantismo (vem daí o sentido original da palavra), o integrismo na Igreja Católica, o fundamentalismo no judaísmo ou no Islão são quatro fenómenos totalmente diferentes, e que importa distinguir muito cuidadosamente.
Uma primeira medida higiénica para opensamento é renunciar a esse termo, deixar de falar de fundamentalismos para analisar do que se trata em cada caso. O fundamentalismo protestante é um literalismo, é ver o texto da Bíblia literalmente falando, como se todos os textos da Bíblia tivessem um valor de documento, quase como um documento de polícia, de descrição da realidade.
O integrismo católico é uma vontade de manter, como o nome indica, a integridade duma mensagem que se pensa que foi pervertida ou mesmo perdida. Mas dirige-se ao conjunto dos católicos e não tem pretensões políticas.
E quanto ao judaico e ao islâmico?
Os Lubavitch, por exemplo, procuram converter o conjunto do povo judaico à prática dos mandamentos e à prática literal do modo como os mandamentos foram interpretados. Mas não se dirige senão a Israel. Não fazem proselitismo. Os cristãos fazem proselitismo e não podem deixar de o fazer. Tal como os muçulmanos.
No fundamentalismo muçulmano não há distinção entre o espiritual e o temporal, entre o religioso e o político. Uma tal distinção é blasfemadora para um muçulmano, uma vez que suporia que haveria domínios que poderiam, por assim dizer, escapar a Deus.
No cristianismo não é de todo o caso. Nenhum domínio escapa a Deus, mas todo o domínio político passa pela mediação da moral. Não há um sistema político cristão. Há uma moral cristã que se aplica ao domínio político.
Misturar todos estes fenómenos parece-me conduzir exclusivamente à confusão. Portanto, é melhor renunciarmos ao termo fundamentalismo.
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