Há o risco de que a nova encíclica seja mais recordada pela curiosidade de ter sido escrita a quatro mãos do que por ressaltar que a construção cristã se alicerça na fé
Roma, 09 de Julho de 2013
Há encíclicas que se tornaram especialmente “famosas” pelo seu conteúdo. Por exemplo, a Rerum Novarum (1891), que iniciou uma verdadeira revolução na doutrina social da Igreja, e a Humanae Vitae (1968),
que ratificou a não licitude da contraconcepção mediante métodos
artificiais. Outras passarão à história pelo carácter inédito da sua
génese. É o caso da Lumen Fidei, que acaba de ser apresentada
em Roma. O texto escrito “a quatro mãos” (aceno de Francisco à paixão do
cardeal Ratzinger pela música) tem de inédito o fato de que os seus
dois protagonistas vivem: um papa emérito e outro reinante.
Não seria um caso sem precedentes caso Bento XVI já tivesse falecido. A primeira encíclica do próprio Ratzinger (Deus caritas est) utiliza
material inédito do falecido João Paulo II. A novidade, portanto, não é
que apareçam outros papas citados nas notas, como fonte, mas que
apareçam dois como co-autores. É o que expressamente afirma Francisco no
começo da encíclica: que Bento XVI “já tinha completado
praticamente uma primeira redacção desta carta encíclica sobre a fé. A
ele agradeço de coração e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu
precioso trabalho, acrescentando ao texto algumas contribuições”.
É curioso que o primeiro anúncio desta encíclica sobre a fé tenha
sido feito em pleno escândalo Vatileaks, um ano atrás, em Agosto de
2012. O texto seria uma análise sobre a virtude teologal que faltava no
grupo da esperança (encíclica Spe Salvi) e da caridade (encíclica Caritas in veritate ):
ou seja, a fé. Muitas águas já rolaram sob as pontes do Rio Tibre desde
então. A renúncia de Bento XVI fazia pensar que a carta seria publicada
como um trabalho privado do próprio papa emérito. Porém, praticamente
coincidindo com a viagem de Francisco à ilha de Lampedusa, veio à luz a
encíclica revisada por ele, mas escrita por Bento. Há quem compare esta
parceria com o gesto nobre de Neymar no terceiro golo brasileiro em cima
da Espanha, na recente final da Copa das Confederações, ao deixar a bola
passar para que seu companheiro Fred concretizasse a jogada que outros
jogadores tinham começado.
Deste modo, e empregando os termos de Piero Schiavazzi, “dois faróis
se acenderam na Itália: o primeiro, uma luz sobre a fé, junto ao Tibre; e
o outro, em favor dos pobres do mar, nas praias da ilha de Lampedusa.
Ambos foram acesos pelo papa Francisco”. Todo um símbolo.
Se no século XX todos os recordes em matéria de encíclicas foram
batidos por Pio XI, que escreveu nada menos que 41, Francisco acaba de
bater o recorde de papa que publica uma encíclica em menos tempo após a
eleição: quatro meses. Ainda mais veloz que João Paulo II, que aos cinco
meses de pontificado escreveu sua programática Redemptor hominis.
Aliás, a Lumen Fidei também é programática? Sim e não.
Sim, porque, desde que foi eleito, o papa Bergoglio vem insistindo na
centralidade da fé para qualquer actuação verdadeiramente cristã. Não,
porque, para Francisco, o programático do seu pontificado provavelmente
seja o que está escrito na última parte da encíclica, aquela que parece
ter sido elaborada pelo próprio Francisco, e que diz: “A luz da fé não
nos leva a esquecer dos sofrimentos do mundo. Quantos homens e mulheres
de fé receberam a luz das pessoas que sofrem! São Francisco de Assis, do
leproso; a beata Madre Teresa de Calcutá, dos seus pobres”.
Esta encíclica corre um perigo: o de passar à história mais pela sua
génese peculiar do que pelo conteúdo excepcional; o risco de ser
lembrada mais como “aquela que foi escrita a quatro mãos” do que aquela
que reconduziu cinquenta anos do concílio Vaticano II à ênfase nos
alicerces de toda construção cristã: a fé.
Talvez, por isso, no ato de apresentação, insistiu-se naquilo que a
própria encíclica proclama: que o Vaticano II foi, antes de qualquer
outra coisa, “um concílio sobre a fé”.
in
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