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quarta-feira, 10 de julho de 2013

Lumen Fidei: uma luz de dois faróis

Há o risco de que a nova encíclica seja mais recordada pela curiosidade de ter sido escrita a quatro mãos do que por ressaltar que a construção cristã se alicerça na fé


Roma, 09 de Julho de 2013


Há encíclicas que se tornaram especialmente “famosas” pelo seu conteúdo. Por exemplo, a Rerum Novarum (1891), que iniciou uma verdadeira revolução na doutrina social da Igreja, e a Humanae Vitae (1968), que ratificou a não licitude da contraconcepção mediante métodos artificiais. Outras passarão à história pelo carácter inédito da sua génese. É o caso da Lumen Fidei, que acaba de ser apresentada em Roma. O texto escrito “a quatro mãos” (aceno de Francisco à paixão do cardeal Ratzinger pela música) tem de inédito o fato de que os seus dois protagonistas vivem: um papa emérito e outro reinante.

Não seria um caso sem precedentes caso Bento XVI já tivesse falecido. A primeira encíclica do próprio Ratzinger (Deus caritas est) utiliza material inédito do falecido João Paulo II. A novidade, portanto, não é que apareçam outros papas citados nas notas, como fonte, mas que apareçam dois como co-autores. É o que expressamente afirma Francisco no começo da encíclica: que Bento XVI “já tinha completado praticamente uma primeira redacção desta carta encíclica sobre a fé. A ele agradeço de coração e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, acrescentando ao texto algumas contribuições”.

É curioso que o primeiro anúncio desta encíclica sobre a fé tenha sido feito em pleno escândalo Vatileaks, um ano atrás, em Agosto de 2012. O texto seria uma análise sobre  a virtude teologal que faltava no grupo da esperança (encíclica Spe Salvi) e da caridade (encíclica Caritas in veritate ): ou seja, a fé. Muitas águas já rolaram sob as pontes do Rio Tibre desde então. A renúncia de Bento XVI fazia pensar que a carta seria publicada como um trabalho privado do próprio papa emérito. Porém, praticamente coincidindo com a viagem de Francisco à ilha de Lampedusa, veio à luz a encíclica revisada por ele, mas escrita por Bento. Há quem compare esta parceria com o gesto nobre de Neymar no terceiro golo brasileiro em cima da Espanha, na recente final da Copa das Confederações, ao deixar a bola passar para que seu companheiro Fred concretizasse a jogada que outros jogadores tinham começado.

Deste modo, e empregando os termos de Piero Schiavazzi, “dois faróis se acenderam na Itália: o primeiro, uma luz sobre a fé, junto ao Tibre; e o outro, em favor dos pobres do mar, nas praias da ilha de Lampedusa. Ambos foram acesos pelo papa Francisco”. Todo um símbolo.

Se no século XX todos os recordes em matéria de encíclicas foram batidos por Pio XI, que escreveu nada menos que 41, Francisco acaba de bater o recorde de papa que publica uma encíclica em menos tempo após a eleição: quatro meses. Ainda mais veloz que João Paulo II, que aos cinco meses de pontificado escreveu sua programática Redemptor hominis. 

Aliás, a Lumen Fidei também é programática? Sim e não. Sim, porque, desde que foi eleito, o papa Bergoglio vem insistindo na centralidade da fé para qualquer actuação verdadeiramente cristã. Não, porque, para Francisco, o programático do seu pontificado provavelmente seja o que está escrito na última parte da encíclica, aquela que parece ter sido elaborada pelo próprio Francisco, e que diz: “A luz da fé não nos leva a esquecer dos sofrimentos do mundo. Quantos homens e mulheres de fé receberam a luz das pessoas que sofrem! São Francisco de Assis, do leproso; a beata Madre Teresa de Calcutá, dos seus pobres”. 

Esta encíclica corre um perigo: o de passar à história mais pela sua génese peculiar do que pelo conteúdo excepcional; o risco de ser lembrada mais como “aquela que foi escrita a quatro mãos” do que aquela que reconduziu cinquenta anos do concílio Vaticano II à ênfase nos alicerces de toda construção cristã: a fé. 

Talvez, por isso, no ato de apresentação, insistiu-se naquilo que a própria encíclica proclama: que o Vaticano II foi, antes de qualquer outra coisa, “um concílio sobre a fé”.



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