Aguarela-fogo
Algures, num fim de tarde de inverno, cinzentão, sereno,
silencioso – um convite à melancolia e às lembranças, também um apelo veemente
a um amanhã ainda frio mas soalheiro, céu azul semeado de algodão alvo aqui e
além – uma mulher nos seus quarentas, olhar perdido, rosto pensativo, arrancava
uma folha a um calendário, imagine-se, feito ainda de papel. Findara mais um
mês. No próximo inverno já seria um novo ano. E a seguir outro, outro, e mais
outro...
Ausente, cogitava
sobre a efemeridade da vida na Terra, sobre o valsar peculiar do tempo que,
rodopiando de uma forma compassada, sempre numa única e eterna direcção,
cronológica e impavidamente ia passando, indiferente àquilo que via, frio e
sincopado – tic-tac – cego àquilo que nascia, renascia e sucumbia à sua
volta...
Indolente ainda mas
decidida, tecla após tecla, ela seleccionou no seu computador e amigo de todas
as horas, o tipo, depois a cor, em seguida o tom e finalmente o brilho.
Transportando a informação à máquina das tintas, aguardou, expectante, o
resultado final. Ah, bom, lá estava o tal ocre-fogo que imaginara. Mergulhou o
pincel na poção brilhantemente conseguida e leve, cuidadosamente, rematou a
tela metálica em que tinha vindo a trabalhar nas últimas semanas.
Título – Aguarela-fogo
- . Porque de fogo era aquele pôr-do-sol a dois planos: em primeiro o
astro-rei mergulhando timidamente por entre águas verdes, tranquilas,
profundas... ; em segundo, lá longe mas não menos espectacular e mágico, o
mesmo astro-fogo adormecendo pacificamente por detrás dos cumes dos montes,
mais negros do que verdes, eles também sonolentos, serenos, como que
abandonando-se à tranquilidade da noite...
Até amanhã!
Um qualquer dia de
Março de 2005
“Vamos dançar!”
Um casal de
meia-idade voa no seu automóvel, rumo ao norte e a mais uma desejada e merecida
escapadela de alguns dias. Rodam bem acima dos cem ao longo da auto-estrada.
Fim de tarde cinzentão, silencioso, nada hospitaleiro. Aqui e além uns pingos
tímidos de chuva.
À direita ela olhava
aquela valsa, aquele rodopiar indisciplinado mas elegante dos pinheiros muito
altos, entrelaçados, vergados uns sobre os outros. A sua pista era o pinhal
frondoso, os seus pares, todos e nenhuns...
“Vamos dançar!”
Fora há duas ou três
semanas atrás, a seguir a um jantar animado e descontraído entre colegas de
profissão, amigos de longa data, que ela também dançara a valsa. Rodopiara,
imaginando-se por farrapos de segundo de saia até aos pés, luvas altas, tiara,
deslumbrante, num velho salão real. Para a esquerda, uma, duas, tantas
voltas... para a direita, outras tantas.
Parou a música.
Estacou a imaginação. Com quem dançara? Não sei.
Virando agora os seus
olhos para o lado esquerdo da auto-estrada, lá longe, bem distante mas contudo
identificável, o casario desorganizado daquela estância balnear que assistira a
toda a sua infância, adolescência, primeiro amor, romper da juventude, os
trintas... Pelo menos durante os verões.
“Vamos dançar!”
Teria quê, uns
catorze anos. Curiosamente conseguia lembrar com perfeita clareza que era mais
uma dessas manhãs cinzentas e frescas de Agosto, tão características da zona
oeste.
Praia hoje,
decididamente não! Nem mesmo que o sol consiga romper por entre aquela neblina
feia vinda do mar, lá pelo meio-dia, uma hora da tarde, como habitualmente.
Hoje, não!
Demorei muito mais
tempo do que o necessário na minha higiene matinal – recordava ela – mas o
resultado final foi espectacular, a avaliar pelos olhares embasbacados dos seus
primos e irmãs. A avaliar também pelo misto de surpresa e preocupação nos olhos
da sua mãe. Sentia-se radiante, radiosa, a “mulher” mais fascinante à
superfície da terra.
Pelo fim desse mesmo
dia sentir-se-ia uma borralheira ingénua, vulgar, infantil, idiota...
Passeara com ele,
conforme combinado, ao longo da estrada costeira, muito para além dos confins
da praia. Estafara os pés e a paciência, esborratara a maquilhagem dos olhos (o
sol irrompera finalmente lá pelas duas e tal!).
E afinal? Nada. Como
era previsível, não possuía ainda a arte de mergulhar nos silêncios dele, e
ele, mais velho e maduro, receara a ansiedade espelhada nos olhos dela.
Vamos dançar? – a
pergunta que nunca pronunciara, apenas repetira vezes sem conta dentro de si.
Mesmo assim, esperou anos pela resposta que nunca ouviu.
Na serra, lá bem no
alto, eles enterraram os pés na neve alta e envolvente, por vezes traiçoeira,
saciaram a sede dos sentidos com aquele combinado, há tanto tempo esquecido, de
frio gélido e branco, ofuscante a perder de vista que nos invade pelos olhos,
pelo nariz, pela boca...
Abençoada natureza.
Abençoados os que a sabem sentir na pele e na alma. E com ela se deixam
transportar a outros mundos, outros lugares, em mágicos sentires, sabores,
odores... Outros amores...
Em boa verdade já era
avó. Já tivera a alegria suprema de se ver prolongada em duas novas vidas – uma
ela primeiro, um ele escassos meses mais tarde. E, estranhamente, cada vez se
sentia mais criança, mais ignorante, também ignorada, mais distante do amanhã
que não adivinhava e simultaneamente mais embalada pelo passado.
"Vamos dançar!”
Voaram céleres
aqueles minutos mágicos. A música parou. O par estacou. Tudo era nada. Ninguém.
Ela demorou algum
tempo a descer à realidade, muito tempo a serenar o bater acelerado do coração.
“Já acordaste na
floresta?”
“Naturalmente que
sim. Ao nascer do sol. E também já adormeci na praia. Ao pôr-do-sol. Sobre
areias douradas e macias, quentes, perfumadas, antigas... Embalada pelo vaivém
das ondas (tic-tac), as eternas senhoras do areal. Inebriada também por mil
beijos, mil abraços doces e salgados por salpicos arrojados, sinais de marés
por instantes exaltadas. Despertada também, como na floresta, pelo romper
radioso de um novo dia.”
31 de Janeiro de 2025
Confortavelmente
recostada na sua cama de quase toda uma vida, só, repousada, ela revivia com
deleite, com carinho, sem mágoa ou melancolia, as suas recordações, os seus
amores, sensações, dores, ilusões e desilusões – as suas memórias, os seus
retratos a sépia.
Era um fim de tarde
invernoso, de um cinzento plácido, macilento, monótono. Surgia no entanto de
quando em vez no horizonte um tímido raio de sol. Ao longe, por detrás das
montanhas que ela tanto amava pela sua imponência e majestade, um belo e nítido
arco-íris despontava. Mais adiante, como que perdida, uma nuvem chorava a sua
ira persistindo em regar alguns, poucos metros, de todo aquele verde-cinza.
Caiu por instantes
num sono reparador. Sonhou. Ao acordar olhou uma última vez através da janela
recortada na parede em frente da cama, engenhosamente emoldurada por uma
cortina entre o amarelo, o laranja e o ocre.
Anoitecera. Já não
lhe era possível fantasiar, recordar, sonhar a partir do arco-íris multicor.
Nem tão pouco rever naquela nuvem obstinada o ardor da sua juventude. A chuva
caía agora com força. Compassada e freneticamente. Tic-tac, tic-tac, tic-tac,
tic-tac, ...
Fechou de novo os
olhos cansados. Desta vez à vida.
Algures, alguém
relembrou a frase perdida no tempo e na memória – “Vamos dançar!”
31
de Janeiro de 2115
Naquela sala, única
naquela casa de campo, longe, muito longe do bulício alucinante da cidade, um
refúgio no meio do nada, há uma tela metálica em branco. Nua, vazia,
inexplicavelmente fria.
A mulher segura o
pincel por entre os dedos cansados e, cuidadosamente, começa a espalhar aquele
laranja vivo, estonteante, mais avermelhado agora, quase amarelo ali.
Após horas e horas de
trabalho, longas mas curtas pelo prazer com que as viveu, ela dá uma última
olhada ao quadro antes de o assinar. Título – Em tons de valsa. Mensagem
– o nascer do sol em toda a sua pujança de vida e cor. A promessa de um novo
renascer. Cenário – um frondoso pinhal a perder de vista, acordado pela
persistência dos primeiros raios de luz, Entrelaçados, vergados pelo vento
matinal que os sacode, estremunhados, os pinheiros, do alto da sua imponência
esbelta, parecem iniciar, timidamente, os primeiros passos de uma valsa eterna.
A mulher de idade
sorri, preenchida. Levanta-se vagarosamente. Respira fundo e encaminha-se para o
seu quarto. O sono irá ser decerto tranquilo.
Afinal o valsar do
tempo faz sentido. Afinal os ponteiros do relógio valsam sempre na mesma
direcção, é certo, e nunca voltam para trás. Mas, por vezes, como que
hipnotizados pela monotonia do seu próprio movimento, caem na distracção.
Desfazem o rodopio, mudam de direcção. Ou não?
Vamos dançar? – pergunta o
silêncio ansioso dos olhos dela.
“Vamos dançar!” – reclama
ele, bem alto, para que todos possam testemunhar o seu arrojo.
Desce então a cortina
sobre o palco de Moliére. Descansa finalmente o ponto. Reaparecem uma última
vez os actores, mão na mão, personagens secretos de mil vidas vividas ou sonhadas. Os
aplausos, esses, são silenciosos. Apenas se ouve, em surdina, um trecho de
Strauss – uma das suas mais belas valsas.
Margarida Haderer |
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