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domingo, 20 de janeiro de 2019

A saga dos adultos

Visitava uma pessoa na UTI, da qual não sairia com vida. Perambulei pelo hospital, que parece mesmo nossa existência. Por seus corredores, embalados pelo quotidiano, vamos sorrindo aqui  e às vezes sofrendo ali. Num corredor respira-se o fim, no outro festeja-se vidas novas. Naquela noite de vigília e apreensão conversei com um rapaz que se tornara pai duas horas antes. Seu filho teve complicações pós-parto, felizmente superadas. Estampava a alegria da primeira paternidade e repetiu inúmeras vezes que não sabia como expressá-la. Com nítidas limitações de linguagem, cada vez mais comuns no tempo das escritas tatibitati, por certo não seria pela poesia que o faria. A poesia precisa de palavras e estas, bem, estas andam muito maltratadas.

O que o rapaz desejava dizer? Olhava para o alto, confessando ansiedade e arrependimento pela filmagem do parto. Teria sido a filmagem responsável pelo susto, pela complicação respiratória do recém-nascido? Nada disse a ele. Porque se o fizesse perguntaria se o registo em seu coração não seria suficiente. O nascimento é algo transcendente, que não combina com a exposição, salvo para benefício da ciência. A era do espetáculo é puro aborrecimento e invade qualquer território. É preciso registar que “estive aqui”, imperativo provar que “vi o fulano” e indispensável comprovar que “abracei beltrano”.

Mal consigo imaginar um centro obstétrico com gravação de vídeo. E faço tal afirmação ancorado na experiência de ter assistido o nascimento de minhas filhas. O rapaz seguia sacudindo a cabeça, agradecendo a Deus, sempre repetindo que não sabia como traduzir tanta alegria. Dei a ele uma mãozinha: sugeri que acabara de nascer a primeira pessoa pela qual daria, sem vacilar, a própria vida. Sei não, mas acho que a frase ricocheteou em seu casco ...

Quando retornei à área de espera da UTI escutei um familiar a lastimar os padecimentos de sua mãe. Ela não merece sofrer, martelava. Ora, quem merece? É uma pergunta que não nos cabe responder e sequer deveríamos formulá-la. Não está sob nossa jurisdição, digamos assim, e não teríamos alcance para entender a resposta.

Dias depois, retornando de uma viagem de final de semana, nos deparamos com a morte da cachorra mais velha de nossa casa. Já vinha claudicando há muito, perdera a mobilidade e suas escaras denotavam falência múltipla. Nossa caçula viu de longe o que acontecera e passou a indagar. Ela não vai mais comer? Não, minha filha. Ela está dormindo? Sim, foi dormir com teu avô, lá no Céu. Ela não vai mais abrir os olhos? Não ...

Voltou a formular as mesmas perguntas um pouco mais tarde. Inútil tentar evitar que perceba que a morte existe. Inútil e de certa forma perverso, porque os pequeninos precisam conviver com a realidade última, que pode e deve transformar suas vidas. Ou não seria bem diferente se fôssemos feitos de matéria incorruptível? Ou agiríamos da mesma forma se não existissem os vermes, tão desagradáveis quanto necessários? Ora, é óbvio que se as coisas não fossem como são, o hospital da vida seria provavelmente um manicómio.

Para mitigar a apreensão da filha propus a solução que considero a mais saudável, herdada da casa paterna: providenciaremos uma nova cachorra, que será sua amiga fiel. Mas e a morte em si, com seu significado cruamente brutal e suas representações macabras? Melhor lembrar que era tratada como irmã por São Francisco.

Diria que a morte é apenas mais um ou o último dos problemas da existência. Nossos filhos ainda serão apresentados a outra categoria de embaraços, brotados na sementeira do pecado original: a versão humana da luta pela sobrevivência. Groucho Marx, em sua cáustica, histriônica e também sábia autobiografia sentencia que na selva em que vivemos, “A melhor maneira de sobreviver é esperar que seu rival caia de quatro”.

Groucho lastima que assim seja a humanidade e vai além: “Ninguém fica completamente infeliz com o fracasso do seu melhor amigo”. Por mais terrível que pareça, não é lá muito difícil detectar nesta frase um fundo de verdade. Basta recordar a inveja entre vizinhos, colegas e mesmo entre parentes. Afinal, da semente à árvore do mal é um passo quando o jardineiro chama-se Caim.

J. B. Teixeira



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