Visitava
uma pessoa na UTI, da qual não sairia com vida. Perambulei pelo hospital, que
parece mesmo nossa existência. Por seus corredores, embalados pelo quotidiano,
vamos sorrindo aqui e às vezes sofrendo
ali. Num corredor respira-se o fim, no outro festeja-se vidas novas. Naquela
noite de vigília e apreensão conversei com um rapaz que se tornara pai duas
horas antes. Seu filho teve complicações pós-parto, felizmente superadas.
Estampava a alegria da primeira paternidade e repetiu inúmeras vezes que não
sabia como expressá-la. Com nítidas limitações de linguagem, cada vez mais
comuns no tempo das escritas tatibitati, por certo não seria pela poesia que o
faria. A poesia precisa de palavras e estas, bem, estas andam muito
maltratadas.
O que
o rapaz desejava dizer? Olhava para o alto, confessando ansiedade e
arrependimento pela filmagem do parto. Teria sido a filmagem responsável pelo
susto, pela complicação respiratória do recém-nascido? Nada disse a ele. Porque
se o fizesse perguntaria se o registo em seu coração não seria suficiente. O
nascimento é algo transcendente, que não combina com a exposição, salvo para
benefício da ciência. A era do espetáculo é puro aborrecimento e invade
qualquer território. É preciso registar que “estive aqui”, imperativo provar que “vi o fulano” e indispensável comprovar que “abracei beltrano”.
Mal
consigo imaginar um centro obstétrico com gravação de vídeo. E faço tal
afirmação ancorado na experiência de ter assistido o nascimento de minhas
filhas. O rapaz seguia sacudindo a cabeça, agradecendo a Deus, sempre repetindo
que não sabia como traduzir tanta alegria. Dei a ele uma mãozinha: sugeri que acabara
de nascer a primeira pessoa pela qual daria, sem vacilar, a própria vida. Sei
não, mas acho que a frase ricocheteou em seu casco ...
Quando
retornei à área de espera da UTI escutei um familiar a lastimar os padecimentos
de sua mãe. Ela não merece sofrer, martelava. Ora, quem merece? É uma pergunta
que não nos cabe responder e sequer deveríamos formulá-la. Não está sob nossa
jurisdição, digamos assim, e não teríamos alcance para entender a resposta.
Dias
depois, retornando de uma viagem de final de semana, nos deparamos com a morte
da cachorra mais velha de nossa casa. Já vinha claudicando há muito, perdera a
mobilidade e suas escaras denotavam falência múltipla. Nossa caçula viu de
longe o que acontecera e passou a indagar. Ela não vai mais comer? Não, minha
filha. Ela está dormindo? Sim, foi dormir com teu avô, lá no Céu. Ela não vai
mais abrir os olhos? Não ...
Voltou
a formular as mesmas perguntas um pouco mais tarde. Inútil tentar evitar que
perceba que a morte existe. Inútil e de certa forma perverso, porque os
pequeninos precisam conviver com a realidade última, que pode e deve
transformar suas vidas. Ou não seria bem diferente se fôssemos feitos de
matéria incorruptível? Ou agiríamos da mesma forma se não existissem os vermes,
tão desagradáveis quanto necessários? Ora, é óbvio que se as coisas não fossem
como são, o hospital da vida seria provavelmente um manicómio.
Para
mitigar a apreensão da filha propus a solução que considero a mais saudável,
herdada da casa paterna: providenciaremos uma nova cachorra, que será sua amiga
fiel. Mas e a morte em si, com seu significado cruamente brutal e suas representações
macabras? Melhor lembrar que era tratada como irmã por São Francisco.
Diria
que a morte é apenas mais um ou o último dos problemas da existência. Nossos
filhos ainda serão apresentados a outra categoria de embaraços, brotados na
sementeira do pecado original: a versão humana da luta pela sobrevivência. Groucho
Marx, em sua cáustica, histriônica e também sábia autobiografia sentencia que
na selva em que vivemos, “A melhor maneira de
sobreviver é esperar que seu rival caia de quatro”.
Groucho lastima
que assim seja a humanidade e vai além: “Ninguém
fica completamente infeliz com o fracasso do seu melhor amigo”. Por mais
terrível que pareça, não é lá muito difícil detectar nesta frase um fundo de
verdade. Basta recordar a inveja entre vizinhos, colegas e mesmo entre
parentes. Afinal, da semente à árvore do mal é um passo quando o jardineiro
chama-se Caim.
J. B. Teixeira |
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