Dias atrás
conversava com uma senhora avançada em anos, com uma lucidez que talvez nem
tivesse na juventude. Expunha a ela uma situação que vivi de perto, ainda que
como observador, e numa determinada altura ela sentenciou que o perdão
resolvera o imbróglio. Chegara o tempo do perdão, reforçou. E o disse com a
autoridade de quem padeceu muito e perdoou ainda mais. Esta senhora tem
formação espiritual para compreender em profundidade a caridade como alicerce
do amor e de uma sociedade mais justa. Admirável, deixará saudade quando se
for.
É comum que as
pessoas restrinjam o sentido de caridade à ajuda material, à esmola. É como
olhar a linha do horizonte com antolhos, ou o céu do fundo de um poço. A
caridade não é uma virtude teologal à toa. Opera entre amigos, quando se releva
uma indelicadeza, entre cônjuges, quando não se agrava uma impaciência, entre
patrão e empregado, quando aquele compreende os limites deste e quando este
procura entender as preocupações que por vezes maltratam quem empreende. Pode
até obrar entre inimigos, quando uma das partes abre o peito e deixa de lado
seus rancores. Lato senso, portanto, a caridade é tempero fundamental no panelão
civilizatório. Mas a caridade, bela e indispensável, não deve infantilizar-se,
resvalando para o sentimentalismo. Seria cair na tentação de fazer justiça com
as próprias pieguices.
Numa manhã de
domingo, num supermercado próximo de minha casa, a funcionária que pesa legumes
esticou a cabeça e me disse que um sujeito estava a roubar nas gôndolas. Falou
que é reincidente, que coloca inúmeras coisas sob seu casaco, inclusive bebida
alcoólica. Perguntei como procediam em tais situações constrangedoras. Me
respondeu que este cidadão, quando acusado, não nega que rouba. Retruca apenas
que não tem dinheiro. Como reagir diante disto?
Conheci um
paulista que trabalhou, na década de 50, nas minas de carvão do nosso estado.
Viveu extrema penúria, que a juventude suporta. Me contou que por vezes tomava
assento num boteco, com o estômago nas costas. Nada pedia, porque não tinha
crédito. Mas beber, bebia. Porque, segundo ele, nem todos alcançam um pedaço de
pão, mas nunca falta quem cacife um copo de cachaça. Não virou alcoólatra por
pouco. Encarvoado até o último, foi resgatado pela formação que teve na casa
paterna, que nem a pátina dos anos sepulta. Voltou para São Paulo e tocou a
vida, a ponto de virar diretor industrial de uma empresa média. Não tinha
cultura, mas sobejava experiência. Sabia lidar com as pessoas, suas mazelas e fazia
a coisa andar.
Não faz muito os
veículos de comunicação relataram um caso no mínimo bizarro. Um camarada deixou
na porta de uma emissora de rádio um cartão de banco que, segundo ele,
encontrara na rua, com a respectiva senha. Acompanhava o cartão devolvido um
bilhete, explicando que uma certa importância em espécie fora sacada para
comprar alimentos. É uma história singela que a muitos certamente comoveu. A
própria vítima teria dito que não registraria a ocorrência na polícia. O que
pensar? Esta reação pode ser entendida como caridade ou leniência com o erro?
Estaríamos diante
de uma metáfora do bom ladrão? Não. O bom ladrão bíblico, cujos delitos
desconhecemos, não mereceu a adjetivação porque fez bom uso daquilo de que se
apropriou indevidamente. Seu valor, no pleno sofrimento da morte de cruz, foi o
arrependimento. Na última hora, nos últimos momentos. Sua atitude, brotada de
sua consciência, mereceu o perdão e a promessa gloriosa de que naquele dia
mesmo estaria no reino dos céus. Há muitos que não entendem isto. Talvez sejam os mesmos que não admitem o
acolhimento do filho pródigo e se sintam lesados, como o filho que permaneceu
junto ao pai. O bom ladrão é como um filho pródigo. É aquele que se arrepende. Seu
antípoda, o que não se arrepende, não pode ser perdoado. É o caso lapidar de
quem rejeita o próprio Espírito Santo, o pecado sem remissão.
A impunidade é
uma chaga, pela qual respondem os poderes da república. A lei é necessidade
civilizatória e sua aplicação uma exigência da vida social. Quando deixamos de
lado as coisas simples e certas, empurramos camelos pelo buraco da agulha. Não
estou a apregoar chibatadas para o ladrão. Para delitos leves, penas leves, mas
alguma pena. A demagogia esquerdóide deseducou o povo e a leniência direitóide,
movida a sentimento de culpa, ambas com a benção de certos membros criativos do
judiciário, fizeram enormes estragos. Temos
vários problemas graves, a começar pela corrupção e pelo modelo político
patrimonialista, mas o coitadismo e o desprezo pelos valores morais estão
certamente entre os Top Five de nosso infortúnio.
J. B. Teixeira |
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