Gosto de biografias.
Em geral são fonte apreciável para ampliar o conhecimento de personalidades,
ainda que textos desta natureza corram o risco de cumularem mais elogios que
fatos. Podem sugerir protagonismo de coisas irrelevantes, exagerar feitos e
omitir fracassos, mas se o biografado merece a obra o desastre nunca é total.
Autobiografias, livres da bajulação, talvez sejam um gênero com maior chance de
realismo, de honestidade.
Neste momento me
deleito com “História da minha vida”,
de Charlie Chaplin. Texto agradável, tem passagens muito divertidas, que
realçam sobejamente algumas das razões pelas quais este inglês atingiu o ápice,
particularmente no cinema mudo. Seus pais, artistas, viviam separados e por
conta disto Chaplin foi criado pela mãe, juntamente com o meio-irmão, Sidney.
Em um dos pontos
altos do texto, Chaplin narra o episódio em que sua mãe se apresenta num palco,
tentando cantar. A plateia, dominada por soldados, grosseira como tendem a ser
os locais que misturam arte e beberrança, tem predisposição para risadas
sarcásticas e caçoadas. O teatro não é mais que um pulgueiro e Chaplin está na
coxia. Tem cinco anos. A voz de sua mãe falseia, falha de vez e ela fracassa em
cena. O público ri, canta em falsete e até mia ... A artista, vexada, deixa a
cena e passa a discutir com seu empresário. Este, que já vira Chaplin
representar para os amigos de sua mãe, em desespero sugere que o menino a
substitua.
O homem leva
Chaplin pela mão, dá uma explicação ao público e deixa o menino aos leões. A
orquestra entra em ação e os violinos se adaptam ao tom do estreante, que entoa
uma cantiga popular. Chaplin registra que uma chuva de moedas desabou sobre o
palco no meio da canção. Parou de cantar e disse que recomeçaria assim que juntasse
o dinheiro ... Gargalhadas. O empresário reapareceu para ajudá-lo a catar as
moedas. O pequenino desconfia das intenções do adulto e o persegue, só
retornando ao palco depois de certificar-se que o dinheiro fora entregue à sua
mãe. O teatro veio abaixo ...
Acolhido com
tamanho entusiasmo, sentiu-se à vontade e fez um pouco de tudo. Dançou,
conversou com o público e até imitou sua mãe, falhando no estribilho. Nova
chuva de moedas ... Quando sua mãe reapareceu no palco para levá-lo, foi muito
aplaudida. Chaplin pontua o evento com poesia: “Essa noite marcou a minha primeira aparição em cena e a última de mamãe”.
Seu pai morreria
aos trinta e poucos anos, acometido por problemas agravados pelo alcoolismo. O
pouco que dava, a título de pensão, acabou: “Chovia a cântaros durante o funeral; os coveiros atiravam sobre o
caixão as pás cheias de lama, e o esquife ressoava com brutal eco. Era macabro
e horripilante, e comecei a chorar”. Situação triste, num tempo sem
assistência social.
Viveram enormes
dificuldades. A mãe costurava para terceiros, mas houve dias em que não tinham
o que comer. Os irmãos acabaram num abrigo. A mãe? Num hospício, por vezes
reclusa em sala acolchoada, tal seu nível de alienação. Vejo os órfãos como
náufragos sem boia. Alguns sucumbem, mas a maioria aprende a nadar. Não tendo a
quem recorrer, dão um jeito. Dependem somente de si mesmos e da providência
divina. Chaplin não foi diferente.
Com seu
antológico Carlitos, “Um cavalheiro, um
poeta, um sonhador – sempre à espera do amor”, Chaplin descobriu que
dominava com maestria as duas áreas do sentimento: percebeu que sabia fazer rir
e chorar e utilizou este talento de forma transcendente. Ele menciona o livro “Senso de humor”, de Max Eastman, segundo
o qual “o Homo sapiens é masoquista,
gozando a dor sob várias formas, e que as plateias gostam de sofrer
vicariamente”.
Chaplin concorda
com isto e afirma que o humor desnuda o que é irracional nas coisas que parecem
racionais e mostra o que não é importante nas coisas que parecem importantes. Deixou
preciosidades como “O Garoto”, que assisti inúmeras vezes sem fastio. O garoto, Jack
Coogan, descoberto pelo faro de Chaplin,
formou com ele uma dupla comovente. O genial inglês não teve a mesma magia no
cinema falado. Nem precisava. Já fizera valer a máxima segundo a qual uma
imagem vale mais que mil palavras. O elegante vagabundo deixara, entre
gargalhadas, o convite à compaixão. Talvez Eastman tenha razão, mas como não
assistir “O Garoto” sem rir e chorar?
J. B. Teixeira |
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