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sábado, 5 de janeiro de 2019

A história da vida dele

Gosto de biografias. Em geral são fonte apreciável para ampliar o conhecimento de personalidades, ainda que textos desta natureza corram o risco de cumularem mais elogios que fatos. Podem sugerir protagonismo de coisas irrelevantes, exagerar feitos e omitir fracassos, mas se o biografado merece a obra o desastre nunca é total. Autobiografias, livres da bajulação, talvez sejam um gênero com maior chance de realismo, de honestidade.

Neste momento me deleito com “História da minha vida”, de Charlie Chaplin. Texto agradável, tem passagens muito divertidas, que realçam sobejamente algumas das razões pelas quais este inglês atingiu o ápice, particularmente no cinema mudo. Seus pais, artistas, viviam separados e por conta disto Chaplin foi criado pela mãe, juntamente com o meio-irmão, Sidney.

Em um dos pontos altos do texto, Chaplin narra o episódio em que sua mãe se apresenta num palco, tentando cantar. A plateia, dominada por soldados, grosseira como tendem a ser os locais que misturam arte e beberrança, tem predisposição para risadas sarcásticas e caçoadas. O teatro não é mais que um pulgueiro e Chaplin está na coxia. Tem cinco anos. A voz de sua mãe falseia, falha de vez e ela fracassa em cena. O público ri, canta em falsete e até mia ... A artista, vexada, deixa a cena e passa a discutir com seu empresário. Este, que já vira Chaplin representar para os amigos de sua mãe, em desespero sugere que o menino a substitua.

O homem leva Chaplin pela mão, dá uma explicação ao público e deixa o menino aos leões. A orquestra entra em ação e os violinos se adaptam ao tom do estreante, que entoa uma cantiga popular. Chaplin registra que uma chuva de moedas desabou sobre o palco no meio da canção. Parou de cantar e disse que recomeçaria assim que juntasse o dinheiro ... Gargalhadas. O empresário reapareceu para ajudá-lo a catar as moedas. O pequenino desconfia das intenções do adulto e o persegue, só retornando ao palco depois de certificar-se que o dinheiro fora entregue à sua mãe. O teatro veio abaixo ...

Acolhido com tamanho entusiasmo, sentiu-se à vontade e fez um pouco de tudo. Dançou, conversou com o público e até imitou sua mãe, falhando no estribilho. Nova chuva de moedas ... Quando sua mãe reapareceu no palco para levá-lo, foi muito aplaudida. Chaplin pontua o evento com poesia: “Essa noite marcou a minha primeira aparição em cena e a última de mamãe”.

Seu pai morreria aos trinta e poucos anos, acometido por problemas agravados pelo alcoolismo. O pouco que dava, a título de pensão, acabou: “Chovia a cântaros durante o funeral; os coveiros atiravam sobre o caixão as pás cheias de lama, e o esquife ressoava com brutal eco. Era macabro e horripilante, e comecei a chorar”. Situação triste, num tempo sem assistência social.

Viveram enormes dificuldades. A mãe costurava para terceiros, mas houve dias em que não tinham o que comer. Os irmãos acabaram num abrigo. A mãe? Num hospício, por vezes reclusa em sala acolchoada, tal seu nível de alienação. Vejo os órfãos como náufragos sem boia. Alguns sucumbem, mas a maioria aprende a nadar. Não tendo a quem recorrer, dão um jeito. Dependem somente de si mesmos e da providência divina. Chaplin não foi diferente.

Com seu antológico Carlitos, “Um cavalheiro, um poeta, um sonhador – sempre à espera do amor”, Chaplin descobriu que dominava com maestria as duas áreas do sentimento: percebeu que sabia fazer rir e chorar e utilizou este talento de forma transcendente. Ele menciona o livro “Senso de humor”, de Max Eastman, segundo o qual “o Homo sapiens é masoquista, gozando a dor sob várias formas, e que as plateias gostam de sofrer vicariamente”.

Chaplin concorda com isto e afirma que o humor desnuda o que é irracional nas coisas que parecem racionais e mostra o que não é importante nas coisas que parecem importantes. Deixou  preciosidades como “O Garoto”, que assisti inúmeras vezes sem fastio. O garoto, Jack Coogan,  descoberto pelo faro de Chaplin, formou com ele uma dupla comovente. O genial inglês não teve a mesma magia no cinema falado. Nem precisava. Já fizera valer a máxima segundo a qual uma imagem vale mais que mil palavras. O elegante vagabundo deixara, entre gargalhadas, o convite à compaixão. Talvez Eastman tenha razão, mas como não assistir “O Garoto” sem rir e chorar?

J. B. Teixeira



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