Acredito que o filme deveria ser assistido em todos os meios clericais,
por todos os padres e bispos e debatido seriamente. É muito triste
quando a verdade nos é embaraçosa. Mas é a verdade que veio à tona, e é à
verdade que os cristãos seguem. Em mim, deixou o profundo desejo de ser
mais santo, de ser mais Igreja, de testemunhar a fé e a graça que a
Igreja me dá todos os dias.
Sou um católico reconvertido, redescobri a fé depois de
muitos anos de tergiversações e caminhadas por outras religiões e pela
falta delas. Nasci num lar católico e fui educado numa escola católica,
na qual, sob o influxo de uma empolgação pós concílio Vaticano II, na
qual o que ouvíamos nas missas e nas aulas de religião é que todas as religiões levam a Deus
e que, no fundo, aqueles de nós que estavam nos templos e ritos
católicos eram talvez menos cristãos do que aqueloutros que, embora sem
religião ou mesmo pertencentes a outras religiões, estavam engajados em
lutas sociais e ajudando a transformar o mundo de algum modo.
Acreditei nisso e, tendo completado minha graduação em Direito,
ingressei no Ministério Público, no qual passei os últimos vinte e cinco
anos empenhado na defesa de direitos difusos, colectivos, indisponíveis,
da ordem democrática e do Estado de Direito. Comprei brigas e movi
processos em defesa do meio ambiente, dos deficientes, do património
público, dos consumidores, índios, quilombolas, crianças, adolescentes,
idosos, presidiários, além de ter participado de grandes operações de
repressão ao tráfico de drogas, à sonegação e ao tráfico de pessoas, só
para dar alguns exemplos. Com tudo isso, sentia-me muito pessoalmente
justificado nas poucas missas em que participei, quando ouvia padres e
bispos invectarem contra a suposta “beatice carola” dos que perdiam
tempo rezando terços ou “adorando o santíssimo” em vez de estarem
engajados em combates, por exemplo, contra a redução da maioridade penal
ou do financiamento público de campanhas eleitorais.
De facto, somente na maturidade tive a graça de redescobrir a fé, e de perceber quão vazia é a espiritualidade meio “new age”
de quem põe sua salvação na militância social e política. Não que não
seja importantíssimo testemunhar na prática a própria fé e os princípios
cristãos, mas a verdade é que a salvação não vem pela militância
social, mas pela fé em Deus. E em Jesus Cristo, vivo no seu Corpo
Místico que é a Igreja. Num dado momento, descobri que o Estado moderno é
uma realidade que tem apenas cerca de 300 anos, e que ele não será
caminho de salvação para ninguém. Somente quem não tem fé, e falo aqui
da verdadeira fé cristã, pode defender que, de algum modo, a “luta
política” pelo controle do Estado tem valor salvífico em si mesma. Isto
não é verdade.
Nem é isto que a Doutrina Social da Igreja diz, como vim também a
descobrir recentemente. Se actuar no mundo da cultura, da política, da
família, da economia e da sociedade é a vocação primeira do leigo, esta
vocação está relacionada especificamente à busca da santidade laical,
que por seu turno decorre da graça de Deus, da qual os sacerdotes são os
administradores e mestres. E isto tudo, na maior parte do tempo, não
passa por nenhuma militância social explícita em movimentos partidários e
ideologias políticas, mas no caminho firme e recto de quem testemunha a
sua própria fé nas realidades seculares. O Estado é um espaço
importantíssimo de convívio e debate social, mas não é em si mesmo
veículo de redenção, individual e colectiva. A Igreja é. Neste sentido,
nós leigos esperamos da nossa hierarquia eclesial que seja realmente
dispensadora da graça e mestra de santidade, e não uma espécie de
vanguarda de causas políticas a serem estatalmente implementadas por via
legislativa e judiciária, sob um discurso irenista de tolerância
religiosa (que é necessária, essencial mesmo, mas tampouco tem valor
salvífico em si mesma).
Foi com este espírito que fui, com meu filho adolescente, assistir ao filme “Spotlight – Segredos Revelados”,
esta semana. Com o espírito de um filho recém retornado à casa, que se
sente no dever de saber quais calúnias se levantam contra sua mãe
redescoberta. Imaginei que veria mais um amontoado de agressões e
mentiras contra a Igreja, como aquelas que vi tantas vezes em aulas de
religião e de história, ou mesmo durante meu curso universitário, ou
simplesmente nos círculos estatais que frequento. Tive uma surpresa.
O filme tem um roteiro muito bem escrito, e é muito bem interpretado e
dirigido. E, além de tudo, é verossímil. Não é um libelo antieclesial,
mas um profundo questionamento aos filhos da Igreja. O que aconteceu com
a Igreja naquele momento, ou melhor, como algo assim pode acontecer sob
os olhos de todos, num ambiente eclesial de primeiro mundo, sob uma
arquidiocese antiga, consolidada e rica, dirigida por um Cardeal de
renome, em pleno final do século XX?
Não quero, como diz o meu filho, dar “spoiler” sobre o filme, ou
seja, revelar cenas e passagens, surpresas para quem não assistiu ainda.
Mas, em determinada altura, um personagem que é um ex-padre, e que
conversa ao telefone com um repórter, afirma que “a raiz de todos os
problemas sexuais do clero está no celibato”. E diz mais, que seis por
cento do clero é pedófilo e cinquenta por cento não vive efectivamente o
celibato. Isto chamou muito a atenção do meu jovem filho, que me
questionou a respeito, ao final da sessão. Eu tive oportunidade de dizer
a ele que, de tantas qualidades e questionamentos que o filme traz,
este é um dos poucos trechos em que uma ideologia anti-eclesial e anti-sacerdotal fica explícita: o problema fulcral, disse eu, não está
no celibato, mas na sua violação pelos maus sacerdotes. Dizer o
contrário é deturpar os fatos para defender uma tese anti-celibato. Eu
disse ainda a ele que certamente cem por cento do clero não seria capaz
de viver o celibato sem ajuda da graça divina, e os que não o fazem
certamente não sofreram de falta de graça, mas de excesso de humanidade.
Há um outro desvio ideológico, no filme, que quero comentar: o
esforço que os personagens fazem para desvincular a questão da pedofilia
desses sacerdotes da sua conotação homossexual. O próprio filme, no
entanto, mostra a esmagadora maioria de casos de homossexualidade,
embora, é claro, a pedofilia heterossexual não seja nem um pouco menos
grave. Mas não representa um cenário estatisticamente relevante nos
casos que o próprio filme retrata.
Outra cena bastante desagradável é quando o Cardeal Law entrega um
exemplar do Catecismo da Igreja Católica ao director do jornal Boston
Globe, que é judeu, não e de Boston e está recém empossado no cargo – o
gesto é retratado como um proselitismo cooptador de um prelado
arrogante. Aquele que, segundo o filme deixa entender, comprovadamente
não viveria em conformidade com o que diz acreditar. É muito triste ver o
Catecismo retratado assim.
Assisti ao filme com uma enorme sensação de vergonha. Ouvi
comentários maliciosos e confirmatórios pela plateia, do tipo; “está
vendo o que é a Igreja?” ou “esses padres precisam casar”. Pessoalmente,
acho que o filme deveria ser assistido em todos os meios clericais, por
todos os padres e bispos, quiçá até mesmo na CNBB. E debatido.
Seriamente. É muito triste quando a verdade nos é embaraçosa. Mas é a
verdade que veio à tona, e é à verdade que os cristãos seguem. Em mim,
deixou o profundo desejo de ser mais santo, de ser mais Igreja, de
testemunhar a fé e a graça que a Igreja me dá todos os dias. Pelos
inúmeros padres santos, diáconos santos, bispos santos, que tantas vezes
me ensinaram a verdade, me trouxeram a Eucaristia e o perdão
sacramental na confissão, em vez de promover um “activismo” social
político-partidário e o relativismo religioso.
in
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