Nova entrevista com Francisco a um jornal: desta vez o jornal catalão "La Vanguardia", ao qual o Papa fala de reforma da Cúria, Terra Santa, diálogo inter-religioso, copa do mundo e do desejo de redimir Pio XII
Roma, 13 de Junho de 2014 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio
Não brilha pela originalidade a nova entrevista com
Francisco realizada pelo jornal catalão "La Vanguardia". Muitas das
respostas do Pontífice ao repórter – recebido segunda-feira passada no
Vaticano, um dia após a invocação de paz com os presidentes de Israel e
da Palestina - são ideias já expressas em discursos ou homilias em Santa
Marta, ou também pontos chaves do pontificado bergogliano. Como a
denúncia da perseguição dos cristãos “mais dura do que aquela dos
primeiros séculos”, ou da terrível “cultura do descartável", que
caracteriza o sistema económico mundial, cujo centro “colocamos no
dinheiro”.
Não há como negar, no entanto, que a presente entrevista tenha
algumas jóias memoráveis, que revelam novas facetas daquela humanidade
do Papa argentino que tanto atrai os fiéis e que desconcerta alguns
insiders da Igreja e do Vaticano. Por exemplo, como a resposta para a
pergunta: "Você se sente um pároco ou o chefe da Igreja?" à qual
Bergoglio responde: "A dimensão do pároco é a que mais mostra a minha
vocação. Servir as pessoas é algo que trago dentro. Desligo a luz para
não gastar muito dinheiro... São as coisas que um pároco faz”. Mas,
acrescenta, “me sinto também Papa”, graças à ajuda de colaboradores
"muito profissionais" que "me ajudam a cumprir o meu dever”.
"Não brinco de ser o Papa-pároco. Seria imaturo”, diz Francisco. Por
exemplo, "quando chega um Chefe de Estado, tenho que encontra-lo com
dignidade e o protocolo que merece”. O mesmo “protocolo” com o qual o
Papa admite ter “não poucos problemas”, mas que, porém, devem ser
respeitados. Em alguns casos, nem sempre. O protocolos de segurança, por
exemplo, muitas vezes são um obstáculo para o impulso natural do Santo
Padre de aproximar-se das pessoas.
"Eu sei que alguma coisa poderia acontecer, mas está nas mãos de
Deus", admite, e lembra quando "no Brasil tinham preparado um papa-móvel
fechado, com vidros blindados, que me impediam de cumprimentar as
pessoas e dizer-lhes que eu as amo". De fato, deixando os responsáveis
da segurança loucos, o Pontífice escolheu um jeep aberto: "Teria me
sentido trancado em uma lata de sardinhas - explica - Para mim isto é um
muro. É verdade que qualquer coisa poderia acontecer, mas confiem.
Realmente, na minha idade, não tenho muito a perder”.
A humanidade do Papa transparece também em outras respostas, como a
questão sobre o time que vai torcer na copa: "Os brasileiros pediram-me
para me manter neutro – brinca Francisco - e eu mantenho a minha
palavra, porque Brasil e Argentina sempre foram antagónicos". Ou quando
expressa toda a sua preocupação com o tratamento que a Europa dá aos
idosos e jovens, especialmente, vítimas de um fenómeno do desemprego,
que já atingiu cerca de 75 milhões de pessoas. “Uma barbaridade”,
segundo o Papa, que protesta contra um sistema económico “que não está
mais em pé” e que se equilibra com "economias idólatras". "Não é mais
possível fazer uma Terceira Guerra Mundial", então, “fazem pequenas
guerras locais”, denuncia o Pontífice, assim, “fabricam e vendem
armas...”.
Simpática a passagem em que o entrevistador diz ao Papa que “alguém
disse que ele é um revolucionário”. Francisco ri e responde, citando uma
canção italiana de Iva Zanicchi, atribuída erroneamente à “grande Mina
Mazzini": “Prendi questa mano zingara, e dimmi che destino avrò…”. (Tome
esta mão, cigana, e diga-me qual destino terei...”. Então explica que,
do seu ponto de vista, a revolução "é ir às raízes": "Nunca é possível
intervir na vida, a não ser olhando para trás, sem saber de onde eu
venho, que nome tenho, que nome cultural ou religioso tenho".
Para um cristão, por exemplo, as suas raízes estão na Terra Santa:
"Tudo começou lá - disse o Papa - É como ‘o céu e a terra’, uma prévia
do que nos espera na outra vida, na Jerusalém celeste". Além disso, para
o bispo de Roma, "não é possível ser verdadeiramente cristão, se não se
reconhece a própria raiz judaica”. Seria necessário, neste sentido, uma
análise mais profunda do diálogo inter-religioso. "Compreendo que é uma
‘batata quente’ - diz -, mas é possível agir como irmãos. Todos os dias
rezo o Ofício Divino com os Salmos de Davi [...] A minha oração é
judaica, e depois, tenho a Eucaristia, que é cristã".
Símbolo do vínculo de Francisco com o mundo judaico é a sua sólida
amizade com o rabino Abraham Skorka, que menciona na entrevista
recordando o abraço histórico em frente ao Muro das Lamentações,
juntamente com o representante islâmico Omar Abu. "Gosto muito de ambos –
afirma - e gostaria que esta amizade entre nós fosse vista como um
testemunho”.
Ainda a propósito dos judeus, o Papa reiterou sua forte condenação ao
anti-semitismo, que - observa - "geralmente se esconde mais nas
correntes políticas de direita do que de esquerda”, junto com a ideia
maluca de que o Holocausto nunca existiu. Precisamente sobre a Shoah,
Bergoglio confirma a sua intenção de abrir os arquivos do Vaticano que
datam desse período histórico dramático. Em particular, a preocupação é a
de "resgatar" a figura de Pio XII, condenado pelos historiadores de
todo o mundo por causa da sua "ineficiência" durante os horrores da
Segunda Guerra Mundial.
"Sobre o pobre Pio XII já se tem falado de tudo”, afirma Francisco,
“porém, é preciso recordar que antes era visto como um grande defensor
dos hebreus. Escondeu muitos deles nos conventos de Roma e de outras
cidades italianas, também na residência de verão de Castel Gandolfo.
Ali, na casa do Papa, em sua cama, nasceram 42 crianças, filhos de
judeus e de outros perseguidos refugiados lá". "Não quero dizer que Pio
XII não tenha cometido erros, eu mesmo cometo vários...”, acrescenta o
Papa, no entanto, o papel de Pacelli “deve ser visto segundo o contexto
da época. Era melhor, por exemplo, que ficasse calado e evitasse que
mais judeus fossem mortos, ou que falasse?". Além disso, o Papa afirma
que tem uma "urticária existencial” quando escuta “que todos estão
contra a Igreja e Pio XII, esquecendo as grandes potências”. “Você sabia
– pergunta ao jornalista – que conheciam perfeitamente a rede
ferroviária dos nazistas que levavam os judeus aos campos de
concentração? Eles tinham fotos. No entanto, não bombardearam os trilhos
do trem. Por quê? Seria bom que nós falássemos um pouco "de tudo".
Talvez fosse útil mencionar também a situação no Oriente Médio, onde
ainda se pratica a violência em nome de Deus. Uma "contradição" muito
"séria" e "grave", de acordo com o Santo Padre: "Um grupo
fundamentalista, embora não matasse ninguém, mesmo que não batesse em
ninguém, é, de qualquer forma, violento”, afirma.
O foco então se move para a "Invocação da paz" de domingo passado com
os presidentes Peres e Abbas, um evento que - admite Francisco - "não
foi fácil de organizar": "Aqui, no Vaticano, estava o 99% das pessoas
que diziam que não teria sido organizado e depois aquele 1% cresceu. Eu
sentia que estávamos sendo empurrados para algo que nunca tinha
acontecido e gradualmente tomou forma. Não foi um ato político, mas
religioso: a abertura de uma janela para o mundo".
Com o olhar para o Oriente Médio, o Papa recorda depois o recente
abraço com “o meu irmão Bartolomeu I”, e os esforços realizados pela
Igreja, “desde o Concílio Vaticano II”, para aproximar-se da Igreja
ortodoxa. “Desejavam que Bartolomeu estivesse comigo em Jerusalém e ali
nasceu a ideia de que também ele participasse da oração de paz no
Vaticano”, diz. "Para ele foi um ato arriscado porque poderiam tê-lo
censurado, por isso foi preciso que fizéssemos esse gesto de humildade, e
para nós foi preciso porque é inconcebível que nós cristãos estejamos
divididos, é um pecado histórico que temos que reparar”.
Entre as deficiências da Igreja que devem ser reparadas está também
aquela de uma, às vezes, pouca pobreza e humildade. Dois princípios "no
coração do Evangelho", diz o Papa ", no sentido teológico não
sociológico". "Não podemos compreender o Evangelho sem a pobreza, que é
muito diferente o pauperismo. Eu creio que Jesus quer que nós, os
bispos, não sejamos príncipes, mas servos".
Também se falou da reforma da Cúria, que - explica - não vem de
alguma "iluminação" ou "projecto pessoal que eu tirei da manga”: “O que
estou fazendo está de acordo com o que tinha sido falado nas
Congregações Gerais", as reuniões pré-conclave para discutir os
problemas da Igreja. Um ponto fundamental era que “o próximo Papa
deveria ter tido uma relação estreita e contínua com o exterior, isto é,
com uma equipe de consultores que não moram no Vaticano". E é assim que
foi criado o Conselho dos Oito, formado por oito cardeais de todos os
continentes que se reunirão no próximo dia 1 de Julho.
Com a mente no momento do Conclave, Bergoglio também lembra que no
final de 2012, ele havia apresentado sua renúncia ao Papa Bento XVI
depois de 75 anos. "Escolhi um quarto em uma" casa de repouso para
anciãos em Buenos Aires", e disse, 'Quero vir morar aqui’. Vou trabalhar
como sacerdote e darei uma mão nas paróquias. Este teria sido o meu
futuro antes de me tornar Papa”.
Mas quem mudou o curso dos acontecimentos foi aquele "grande gesto"
feito pelo Papa Bento XVI, que, de acordo com o seu sucessor, "abriu uma
porta, criou uma instituição: os eventuais papas eméritos”. Hoje, diz,
“vivemos muito tempo, chegamos a uma idade onde não podemos seguir
adiante com as coisas. Eu vou fazer o mesmo, pedindo ao Senhor que me
ilumine quando chegar a hora, eu vou pedir a Deus para me dizer o que eu
tenho que fazer".
E depois que tiver chegado o momento, “como eu gostaria de ser
lembrado na história?", pergunta o repórter. "Não pensei nisso –
responde o Papa – mas gosto de quando se lembra de alguém e se diz: ‘Era
um bom rapaz, fez o que podia, não era tão ruim’”. (Trad.TS)
(13 de Junho de 2014) © Innovative Media Inc.
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