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sábado, 14 de junho de 2014

"Não brinco de Papa-pároco, mas gostaria de ser lembrado como um bom rapaz"

Nova entrevista com Francisco a um jornal: desta vez o jornal catalão "La Vanguardia", ao qual o Papa fala de reforma da Cúria, Terra Santa, diálogo inter-religioso, copa do mundo e do desejo de redimir Pio XII


Roma, 13 de Junho de 2014 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio


Não brilha pela originalidade a nova entrevista com Francisco realizada pelo jornal catalão "La Vanguardia". Muitas das respostas do Pontífice ao repórter – recebido segunda-feira passada no Vaticano, um dia após a invocação de paz com os presidentes de Israel e da Palestina - são ideias já expressas em discursos ou homilias em Santa Marta, ou também pontos chaves do pontificado bergogliano. Como a denúncia da perseguição dos cristãos “mais dura do que aquela dos primeiros séculos”, ou da terrível “cultura do descartável", que caracteriza o sistema económico mundial, cujo centro “colocamos no dinheiro”.

Não há como negar, no entanto, que a presente entrevista tenha algumas jóias memoráveis, que revelam novas facetas daquela humanidade do Papa argentino que tanto atrai os fiéis e que desconcerta alguns insiders da Igreja e do Vaticano. Por exemplo, como a resposta para a pergunta: "Você se sente um pároco ou o chefe da Igreja?" à qual Bergoglio responde: "A dimensão do pároco é a que mais mostra a minha vocação. Servir as pessoas é algo que trago dentro. Desligo a luz para não gastar muito dinheiro... São as coisas que um pároco faz”. Mas, acrescenta, “me sinto também Papa”, graças à ajuda de colaboradores "muito profissionais" que "me ajudam a cumprir o meu dever”.

"Não brinco de ser o Papa-pároco. Seria imaturo”, diz Francisco. Por exemplo, "quando chega um Chefe de Estado, tenho que encontra-lo com dignidade e o protocolo que merece”. O mesmo “protocolo” com o qual o Papa admite ter “não poucos problemas”, mas que, porém, devem ser respeitados. Em alguns casos, nem sempre. O protocolos de segurança, por exemplo, muitas vezes são um obstáculo para o impulso natural do Santo Padre de aproximar-se das pessoas.

"Eu sei que alguma coisa poderia acontecer, mas está nas mãos de Deus", admite, e lembra quando "no Brasil tinham preparado um papa-móvel fechado, com vidros blindados, que me impediam de cumprimentar as pessoas e dizer-lhes que eu as amo". De fato, deixando os responsáveis da segurança loucos, o Pontífice escolheu um jeep aberto: "Teria me sentido trancado em uma lata de sardinhas - explica - Para mim isto é um muro. É verdade que qualquer coisa poderia acontecer, mas confiem. Realmente, na minha idade, não tenho muito a perder”.

A humanidade do Papa transparece também em outras respostas, como a questão sobre o time que vai torcer na copa: "Os brasileiros pediram-me para me manter neutro – brinca Francisco - e eu mantenho a minha palavra, porque Brasil e Argentina sempre foram antagónicos". Ou quando expressa toda a sua preocupação com o tratamento que a Europa dá aos idosos e jovens, especialmente, vítimas de um fenómeno do desemprego, que já atingiu cerca de 75 milhões de pessoas. “Uma barbaridade”, segundo o Papa, que protesta contra um sistema económico “que não está mais em pé” e que se equilibra com "economias idólatras". "Não é mais possível fazer uma Terceira Guerra Mundial", então, “fazem pequenas guerras locais”, denuncia o Pontífice, assim, “fabricam e vendem armas...”.

Simpática a passagem em que o entrevistador diz ao Papa que “alguém disse que ele é um revolucionário”. Francisco ri e responde, citando uma canção italiana de Iva Zanicchi, atribuída erroneamente à “grande Mina Mazzini": “Prendi questa mano zingara, e dimmi che destino avrò…”. (Tome esta mão, cigana, e diga-me qual destino terei...”. Então explica que, do seu ponto de vista, a revolução "é ir às raízes": "Nunca é possível intervir na vida, a não ser olhando para trás, sem saber de onde eu venho, que nome tenho, que nome cultural ou religioso tenho".

Para um cristão, por exemplo, as suas raízes estão na Terra Santa: "Tudo começou lá - disse o Papa - É como ‘o céu e a terra’, uma prévia do que nos espera na outra vida, na Jerusalém celeste". Além disso, para o bispo de Roma, "não é possível ser verdadeiramente cristão, se não se reconhece a própria raiz judaica”. Seria necessário, neste sentido, uma análise mais profunda do diálogo inter-religioso. "Compreendo que é uma ‘batata quente’ - diz -, mas é possível agir como irmãos. Todos os dias rezo o Ofício Divino com os Salmos de Davi [...] A minha oração é judaica, e depois, tenho a Eucaristia, que é cristã".

Símbolo do vínculo de Francisco com o mundo judaico é a sua sólida amizade com o rabino Abraham Skorka, que menciona na entrevista recordando o abraço histórico em frente ao Muro das Lamentações, juntamente com o representante islâmico Omar Abu. "Gosto muito de ambos – afirma - e gostaria que esta amizade entre nós fosse vista como um testemunho”.

Ainda a propósito dos judeus, o Papa reiterou sua forte condenação ao anti-semitismo, que - observa - "geralmente se esconde mais nas correntes políticas de direita do que de esquerda”, junto com a ideia maluca de que o Holocausto nunca existiu. Precisamente sobre a Shoah, Bergoglio confirma a sua intenção de abrir os arquivos do Vaticano que datam desse período histórico dramático. Em particular, a preocupação é a de "resgatar" a figura de Pio XII, condenado pelos historiadores de todo o mundo por causa da sua "ineficiência" durante os horrores da Segunda Guerra Mundial.

"Sobre o pobre Pio XII já se tem falado de tudo”, afirma Francisco, “porém, é preciso recordar que antes era visto como um grande defensor dos hebreus. Escondeu muitos deles nos conventos de Roma e de outras cidades italianas, também na residência de verão de Castel Gandolfo. Ali, na casa do Papa, em sua cama, nasceram 42 crianças, filhos de judeus e de outros perseguidos refugiados lá". "Não quero dizer que Pio XII não tenha cometido erros, eu mesmo cometo vários...”, acrescenta o Papa, no entanto, o papel de Pacelli “deve ser visto segundo o contexto da época. Era melhor, por exemplo, que ficasse calado e evitasse que mais judeus fossem mortos, ou que falasse?". Além disso, o Papa afirma que tem uma "urticária existencial” quando escuta “que todos estão contra a Igreja e Pio XII, esquecendo as grandes potências”. “Você sabia – pergunta ao jornalista – que conheciam perfeitamente a rede ferroviária dos nazistas que levavam os judeus aos campos de concentração? Eles tinham fotos. No entanto, não bombardearam os trilhos do trem. Por quê? Seria bom que nós falássemos um pouco "de tudo".

Talvez fosse útil mencionar também a situação no Oriente Médio, onde ainda se  pratica a violência em nome de Deus. Uma "contradição" muito "séria" e "grave", de acordo com o Santo Padre: "Um grupo fundamentalista, embora não matasse ninguém, mesmo que não batesse em ninguém, é, de qualquer forma, violento”, afirma.

O foco então se move para a "Invocação da paz" de domingo passado com os presidentes Peres e Abbas, um evento que - admite Francisco - "não foi fácil de organizar": "Aqui, no Vaticano, estava o 99% das pessoas que diziam que não teria sido organizado e depois aquele 1% cresceu. Eu sentia que estávamos sendo empurrados para algo que nunca tinha acontecido e gradualmente tomou forma. Não foi um ato político, mas religioso: a abertura de uma janela para o mundo".

Com o olhar para o Oriente Médio, o Papa recorda depois o recente abraço com “o meu irmão Bartolomeu I”, e os esforços realizados pela Igreja, “desde o Concílio Vaticano II”, para aproximar-se da Igreja ortodoxa. “Desejavam que Bartolomeu estivesse comigo em Jerusalém e ali nasceu a ideia de que também ele participasse da oração de paz no Vaticano”, diz. "Para ele foi um ato arriscado porque poderiam tê-lo censurado, por isso foi preciso que fizéssemos esse gesto de humildade, e para nós foi preciso porque é inconcebível que nós cristãos estejamos divididos, é um pecado histórico que temos que reparar”.

Entre as deficiências da Igreja que devem ser reparadas está também aquela de uma, às vezes, pouca pobreza e humildade. Dois princípios "no coração do Evangelho", diz o Papa ", no sentido teológico não sociológico". "Não podemos compreender o Evangelho sem a pobreza, que é muito diferente o pauperismo. Eu creio que Jesus quer que nós, os bispos, não sejamos príncipes, mas servos".
Também se falou da reforma da Cúria, que - explica - não vem de alguma "iluminação" ou "projecto pessoal que eu tirei da manga”: “O que estou fazendo está de acordo com o que tinha sido falado nas Congregações Gerais", as reuniões pré-conclave para discutir os problemas da Igreja. Um ponto fundamental era que “o próximo Papa deveria ter tido uma relação estreita e contínua com o exterior, isto é, com uma equipe de consultores que não moram no Vaticano". E é assim que foi criado o Conselho dos Oito, formado por oito cardeais de todos os continentes que se reunirão no próximo dia 1 de Julho.

Com a mente no momento do Conclave, Bergoglio também lembra que no final de 2012, ele havia apresentado sua renúncia ao Papa Bento XVI depois de 75 anos. "Escolhi um quarto em uma" casa de repouso para anciãos em Buenos Aires", e disse, 'Quero vir morar aqui’. Vou trabalhar como sacerdote e darei uma mão nas paróquias. Este teria sido o meu futuro antes de me tornar Papa”.

Mas quem mudou o curso dos acontecimentos foi aquele "grande gesto" feito pelo Papa Bento XVI, que, de acordo com o seu sucessor, "abriu uma porta, criou uma instituição: os eventuais papas eméritos”. Hoje, diz, “vivemos muito tempo, chegamos a uma idade onde não podemos seguir adiante com as coisas. Eu vou fazer o mesmo, pedindo ao Senhor que me ilumine quando chegar a hora, eu vou pedir a Deus para me dizer o que eu tenho que fazer".

E depois que tiver chegado o momento, “como eu gostaria de ser lembrado na história?", pergunta o repórter. "Não pensei nisso – responde o Papa – mas gosto de quando se lembra de alguém e se diz: ‘Era um bom rapaz, fez o que podia, não era tão ruim’”. (Trad.TS)

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