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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Irmã Houda Fadoul: “Sonhamos construir uma nova Síria: aberta, livre, justa… onde todos vivam em harmonia”

Entrevista ao 7MARGENS

 | 20 Dez 2024

Irmã Houda Fadoul, da Síria. Foto Clara Raimundo

Irmã Houda Fadoul, fotografada em Roma após a conclusão do Sínodo, no qual participou com direito a voto. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS

Houda Fadoul nasceu em Damasco, na Síria, há 60 anos, e desde os 29 que vive no mosteiro Deir Mar Musa, em pleno deserto, cerca de 80 quilómetros a norte da sua cidade natal. Ali, integra a pequena comunidade monástica do rito sírio-católico fundada pelo padre jesuíta italiano Paolo Dall’Oglio, que quis fazer dela um farol de esperança numa terra em conflito. Fiel aos carismas da comunidade, e apesar de todos os desafios que tem enfrentado – da guerra ao atual momento de transição de poder, passando pelo sequestro de Dall’Oglio, de quem não tem notícias há 11 anos – “esperança” é uma das palavras que Houda mais repete quando fala ao 7MARGENS. A sua paixão pelo diálogo inter-religioso, particularmente entre cristãos e muçulmanos, terá estado na origem de ser escolhida – com grande surpresa sua – para participar nos trabalhos do Sínodo como membro das Igrejas Orientais e do Médio Oriente. Esta entrevista tem por base uma conversa que começou ainda em Roma, horas antes do seu regresso à Síria, e que prosseguiu nos últimos dias por e-mail. Uma coisa é certa: seja frente a frente ou mediada pelo ecrã de um computador, a comunicação com a irmã Houda Fadoul é sempre uma lufada de ar fresco, por contagiar de esperança também a quem a escuta.

7MARGENS – Estou curiosa… O que a fez querer integrar esta pequena comunidade que vive no meio do deserto?

Houda Fadoul – Cresci numa família católica e sempre estive muito ligada à igreja. Quando conheci Mar Musa, apaixonei-me pela vida simples que a comunidade levava e também pela grande abertura que tinham em relação ao Islão. Na parte antiga de Damasco, onde eu tinha vivido até então, não tínhamos vizinhos muçulmanos e havia desconfiança em relação ao Islão. O testemunho do fundador da comunidade, o padre Paolo Dall’Oglio, com o seu amor pelo povo muçulmano, foi muito impactante e inspirador para mim. Quis muito viver esses carismas e por isso integrei a comunidade, onde ainda hoje permaneço.

Comunidade do mosteiro Deir Mar Musa em 2022. Foto Direitos reservados

Houda Fadoul (à dta.) com os irmãos da comunidade e o mosteiro Deir Mar Musa ao fundo, em 2022. Atualmente, a comunidade é constituída por apenas cinco elementos. Foto: Direitos reservados

7M – Como é que a comunidade tem vivido a recente transição de poder no país? Imagino que sentimentos contraditórios habitem os vossos corações…

Sim, estamos muito felizes, porque esperámos durante muito tempo por esta libertação. Mas reconheço que é uma alegria misturada com um forte medo do que poderá acontecer nos próximos tempos… No entanto, esforçamo-nos para não ficar reféns desse medo. Procuramos ajudar-nos uns aos outros a ter esperança e confiança em Deus, e estamos a rezar para que finalmente haja paz e para que na Síria haja lugar e dignidade para todos. Sonhamos construir uma nova Síria: aberta, livre, justa, pacífica, com lugar para todos e onde todos vivam em harmonia. E sonhamos poder convidar aqueles que saíram a regressar a casa. Peço-lhe que reze por isso também!

7M – Que papel podem os líderes religiosos ter na construção desta nova Síria?

Os líderes religiosos têm um papel muito importante no estabelecer de pontes. O que muitos estão a fazer é encontrar-se com os responsáveis do novo grupo no poder e depois transmitir aos fiéis o que aconteceu nesse encontro e que frutos gerou. Isso ajuda as pessoas a compreenderem quais as intenções deste grupo e a serem pacientes… Porque as coisas precisam de tempo e temos de ser todos nós, sírios, a construir a nova Síria. Cada um de nós é responsável pelo futuro. Também nós, na nossa comunidade, procuramos dar esperança às pessoas, ajudá-las a serem pacientes, a não julgarem este novo grupo no poder e a darem-lhes uma oportunidade de governar.

Comunidade de Mar Musa com o padre Paollo Dall'Oglio ao centro. Foto DR

A comunidade de Mar Musa com o padre Paollo Dall’Oglio (ao centro), cujo testemunho de amor pelo povo muçulmano atraiu Houda. Foto: Direitos reservados

7M – A vossa comunidade tem também apostado muito em formar as novas gerações para o diálogo inter-religioso…

Sim, nós temos dois projetos principais em curso: um deles é a escola de música, na qual estão inscritas 63 crianças dos seis aos 18 anos, que todas as sextas-feiras têm aulas com professores que vêm de Damasco. Este projeto é muito importante porque, por um lado, aprender e fazer música é uma forma de ajudar as crianças a ultrapassar os traumas da guerra e, por outro lado, porque há professores cristãos e professores muçulmanos, o que proporciona esse encontro muito saudável entre as duas religiões. O outro projeto é o do jardim de infância, frequentado atualmente por 170 crianças, em que apenas sete são cristãs, e cujos educadores e auxiliares são também cristãos e muçulmanos. As crianças experimentam juntas a alegria de aprender, desenvolver os seus talentos artísticos, passear e brincar…  E é um importante local de encontro e convivência para toda a população. Assim, penso que estamos a contribuir para criar uma nova geração que não terá uma mentalidade fundamentalista, que compreenderá que faz parte da nossa identidade crescermos juntos, na diversidade, e sem violência.

7M – Essa foi umas das mensagens que procurou transmitir nas assembleias do Sínodo em que participou?

Sim, falei muito sobre isto, especialmente nos pequenos círculos. Porque acho que, no Ocidente, e também no Oriente, existe uma imagem deformada do Islão. E a minha experiência pessoal é a de que realmente podemos, não apenas conviver, como ser unidos. De resto, foi essa união que salvou a minha comunidade durante anos de guerra. Houve períodos em que não podíamos sair do mosteiro, por causa dos ataques, e os pastores da região, muçulmanos – que estavam proibidos de se deslocarem -, iam ao mosteiro todos os dias levar-nos pão, leite e tâmaras. Alguns chegaram até a passar algumas noites no mosteiro, para que nos sentíssemos mais seguros.

7M – O que acha que levava os pastores do deserto a arriscarem as suas vidas para ajudar uma comunidade cristã a sobreviver?

O facto de nos conhecerem e de saberem que os amávamos… Antes da guerra, organizávamos workshops para promover o diálogo entre muçulmanos e cristãos. Mas não colocávamos a religião no título, para não afastar ninguém. Colocávamos, por exemplo, “respeitar os outros”. E depois conversávamos profundamente sobre esse tema, o que muitas vezes nos levava à religião, claro. Ao fim do dia, nós tínhamos a missa e os muçulmanos faziam as suas orações. Juntávamo-nos novamente ao jantar e a seguir entoávamos cânticos religiosos… A união era algo que conseguíamos tocar.

Oração no mosteiro Deir Mar Musa. Foto Direitos reservados

Um momento de oração no mosteiro Deir Mar Musa. Foto: Direitos reservados

7M – Considera que foi por essa experiência de diálogo inter-religioso num contexto tão adverso que recebeu o convite para participar neste Sínodo?

Confesso que não sei… Fiquei muito surpreendida quando o nosso patriarca me convidou! Mas fiquei muito feliz por ter esta oportunidade. Era a única mulher da Síria e foi uma enorme alegria poder partilhar as minhas experiências com os restantes membros e poder trabalhar em grupo, juntamente com o Espírito Santo, para fazer algo bom para a Igreja, para todas as Igrejas, e para o mundo.

7M – O que é que a marcou mais durante as assembleias do Sínodo, e o que é que de mais importante levou consigo para a Síria?

Penso que as palavras-chave foram “escutar” e “amar”. E senti realmente que, através do método da conversação no Espírito, conseguimos escutar e amar o que escutávamos. Trouxe esse método comigo, para a comunidade, para as Igrejas, para as famílias, para todos. Tenho dito que deve ser um estilo de vida. Outra coisa que me marcou muito foi a celebração penitencial [a 1 de outubro deste ano]. Foi muito importante que o Papa nos tenha ajudado a ver os nossos pecados e a pedir perdão por eles. Mas também a perdoar aqueles que nos magoaram a nós.

Irmã Houda Fadoul na aula sinodal, outubro de 2024. Foto Synod.va

A irmã Houda Fadoul durante os trabalhos na aula sinodal, em outubro deste ano. Foto © Synod.va

7M – Tem procurado implementar a sinodalidade na Igreja Católica Siríaca? De que modo?

Sim, tenho ido a muitas comunidades, em várias dioceses, falar sobre a sinodalidade. E também falo dela aos grupos que recebemos no mosteiro, sejam peregrinos, grupos de jovens, escuteiros, e mesmo muçulmanos. Tento sempre falar da sinodalidade, mesmo que de uma forma indireta.

7M – E quais têm sido as reações?

A maior parte das pessoas revela entusiasmo. Mas por vezes, da parte da hierarquia da Igreja, o entusiasmo não é assim tão grande… Acho que alguns têm medo de perder poder. E outros não compreendem ainda o que significa a sinodalidade.

7M – Têm medo também de que a mulher assuma um papel mais relevante?

Penso que esse problema não se coloca na Síria, e falo da minha experiência pessoal. Em geral, as mulheres na Síria têm os mesmos direitos que os homens. E na Igreja, eu fui durante dez anos a superiora do mosteiro, onde havia mulheres e homens. E foi uma experiência sinodal. Todos me respeitavam, e eu também pedia opiniões e ajuda aos meus irmãos padres, sobretudo aos mais velhos, porque tinham mais experiência que eu… E atravessámos momentos muito difíceis, com o rapto do nosso fundador, e depois também do padre Jacques Mourad, em maio de 2015 [libertado após 5 meses de prisão), e a destruição do Mosteiro de Mar Elian pelo ISIS em agosto do mesmo ano. Não foi fácil para mim assumir a liderança e a responsabilidade, mas senti que todos procuraram ajudar-me e que os meus dons eram reconhecidos.

Irmã Houda Fadoul na vigília ecuménica em Roma, 11 outubro 2024. Foto Synod.va

A irmã Houda Fadoul durante a vigília ecuménica que teve lugar em Roma, a 11 de outubro 2024. Foto © Synod.va

7M – O padre Paolo Dall’Oglio continua desaparecido, já lá vão 11 anos… Têm esperança de que esteja vivo e possa agora ser libertado?

Não sabemos nada sobre ele, mas não perdemos a esperança. Continuamos a rezar por ele e pelo seu regresso!

7M – E como vai ser o Natal no mosteiro?

Comemoramos o Natal no dia 24 de dezembro e em geral há muitas pessoas que se juntam a nós no mosteiro. À meia noite, saímos da igreja para iniciar a missa ao redor do fogo como símbolo para receber Cristo, nossa luz, e voltamos para dentro para continuarmos a missa. No final, tornamos a sair e ficamos reunidos à volta da fogueira, a beber chocolate quente e a conversar alegremente. Este ano, em particular, o nosso Natal será de feliz esperança para o nosso país e de solidariedade com todas as pessoas que sofrem, em especialmente os mais pobres e os que vivem no meio da guerra. Rezando e desejando um mundo onde toda a humanidade viva pacificamente e em união. Rezem também por nós!



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