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sábado, 28 de dezembro de 2024

Encontro de fim de ano

Escondida junto dos caixotes do lixo, à porta do movimentado restaurante da rua de Campolide, Elizabeth esperava ver o filho… era aquele o dia dos seus anos!

Pedro tinha uns invulgares olhos verdes iguaizinhos aos dela, sem tirar nem pôr… e sempre aquele mesmo olhar de espanto que dava nas vistas! Fazia dez anos naquele dia 31 de dezembro! E ela queria vê-lo pela última vez…

Ao assinar a declaração de entrega do filho para adoção, Elizabeth tinha-se comprometido a não mais voltar a procurá-lo, mas agora que pressentia a proximidade do seu fim, queria vê-lo, mesmo que à distância, uma última vez. Apesar de ser quase noite, usava óculos escuros e um lenço na cabeça, puxando uma franja para a testa e uns cabelos desgrenhados para a cara, para que ninguém notasse a flagrante semelhança entre os dois… vira-o de mão dada com a mãe adotiva, atravessar a rua, enquanto o pai arrumava o carro.

Há muito tempo que Elizabeth os redescobrira e passava frequentemente à porta do prédio onde viviam ali na zona das Amoreiras. Em certa ocasião, o filho Pedro até pedira aos pais para lhe darem uma esmola… e fora ele próprio entregar-lhe o dinheiro na mão… Elizabeth de cabeça baixa agradecera… sem coragem para o olhar nos olhos… fazia de conta que era cega e assim ninguém lhe via os olhos verdes, grandes e sempre abertos como que espantados…

Sim, e tinha razão porque toda a sua vida só podia ser de espanto, admiração por tanta aventura vivida no seu corpo tão franzino, que aos 40 e poucos anos mais parecia uma velha de 60…

Elizabeth ficara órfã muito cedo. Nascida em Inglaterra, de pai português e mãe inglesa, fora institucionalizada por não ter família que a acolhesse… aos 16 anos começara a trabalhar. Por ser muito bonita, infelizmente logo choveram as piores ‘ofertas de trabalho’, que ela aceitara na ânsia de ser independente e sobreviver… em breve perceberia o seu enorme erro! Não era amada, era explorada por outros, usada por todos… e após o primeiro aborto, outros se seguiram… um dia, porém, um jovem pintor inglês, idealista e meio ‘hippie’, apaixonou-se por ela e ela por ele. Levou-a para longe, muito longe! Andaram por diferentes países, procurando algum trabalho… até que foram viver para a Colômbia; aí logo lhes ofereceram trabalho na agricultura, mas de repente estavam no cultivo de folhas de coca e caíram nas mãos de traficantes de cocaína que lhes prometeram mundos e fundos e surgiu a tentadora 'proposta' de 'dinheiro fácil' que lhes poderia mudar a vida: correios de droga! Por que não???

Apesar dos perigos e riscos, a pobreza em que viviam e a ideia de que seria só uma vez e já ficariam capazes de sobreviver sozinhos e recomeçar a vida noutro país, levou-os a aceitar o desafio tão tentador… correu ‘bem’ da primeira vez, só mais uma… e foram duas vezes com sucesso, mas à terceira foram apanhados… ele no Brasil e ela em Portugal… levados para a prisão e separados para sempre… mas ela estava grávida e o Pedro nasceu… Depois, com ajuda de uma associação de apoio a mães solteiras e de uma artista de teatro que trabalhava nas prisões, Elizabeth saiu e encontrou acolhimento numa instituição. Porém, meses depois estava na rua, por causa da maldita droga… queria emendar-se, mas não conseguia… e a Segurança Social acabou por lhe retirar o bebé … foi um desgosto, mas Elizabeth, que agora vivia de prostituição, sabia que aquilo não era vida para o seu filho. Alguém o poderia amar melhor do que ela e dar-lhe não só carinho, mas muito melhores condições de vida… e entregou-o voluntariamente, quase com uma sensação de alívio. Do pai não mais tivera notícias… mas sabia como eram as prisões no Brasil…

Com fome, sede e frio, dias antes, Elizabeth caminhara ao acaso pelas ruas e em noite de Natal entrara na Basílica da Estrela, atraída pelas luzes e cânticos da Missa do Galo. Permanecera sentada na pedra fria a um canto, junto de um altar lateral. Ali ficara e algumas pessoas tinham-lhe dado esmola, discretamente, até dentro da igreja. Um casal chegara atrasado com uma criança pela mão e sentara-se no último banco. O menino ficou a olhar para ela e voltou- se várias vezes… ela reparou que ele estava sempre a pegar no braço do pai para ver as horas no seu relógio de pulso. Elizabeth sentiu o coração acelerar, levantou-se e devagar, sem ruído, aproximou-se e reconheceu-o de imediato pelos olhos verdes muito abertos de espanto…

Pelo rosto abaixo caíram-lhe grandes lágrimas… depois afastou-se e esperou à porta da igreja. À saída, Pedro olhou-a fixamente, lembrou-se que já alguma vez a vira e lhe dera dinheiro, e de novo pediu aos pais dinheiro para lhe dar… o pai deu-lhe uma nota de cinco euros, mas Pedro, sem que os pais dessem conta meteu a mão no bolso e aos cinco euros juntou a nota de vinte que o padrinho lhe dera para comprar alguma coisa que ele gostasse… aproximando-se de Elizabeth, meteu-lhe as notas na mão. Elizabeth inclinou-se de imediato e beijou-lhe a mão… sem dizer uma palavra, tão comovida ficara…

Agora, naquele dia, à porta do restaurante, Elizabeth ia olhando pelos vidros e apercebeu-se de que o almoço estava a chegar ao fim. Viu-os levantarem-se da mesa e beijarem-se, encaminhando-se para a porta.

Do saco de plástico velho que trazia consigo, Elizabeth retirou um presente bem embrulhado… e quando o menino ia a passar junto dela, levantou-se, tocou-lhe ao de leve no braço e disse apenas: - ‘Pedrinho, muitos parabéns! Toma um presente! És lindo! Deus te guarde! Sê sempre um bom menino como agora, desejo-te muitas felicidades e aos teus pais também!’

Depois partiu a toda a pressa, sem se voltar para trás uma única vez e dobrou a esquina da rua, deixando o casal e a criança estupefatos…

Pedrinho abriu o embrulho e cheio de espanto, viu o relógio que tanto desejava…


Fátima Fonseca




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