Pedro tinha uns invulgares olhos verdes iguaizinhos aos dela, sem tirar nem pôr… e sempre aquele mesmo olhar de espanto que dava nas vistas! Fazia dez anos naquele dia 31 de dezembro! E ela queria vê-lo pela última vez…
Ao assinar a declaração de entrega do filho para adoção,
Elizabeth tinha-se comprometido a não mais voltar a procurá-lo, mas agora que
pressentia a proximidade do seu fim, queria vê-lo, mesmo que à distância, uma
última vez. Apesar de ser quase noite, usava óculos escuros e um lenço na
cabeça, puxando uma franja para a testa e uns cabelos desgrenhados para a cara,
para que ninguém notasse a flagrante semelhança entre os dois… vira-o de mão
dada com a mãe adotiva, atravessar a rua, enquanto o pai arrumava o carro.
Há muito tempo que Elizabeth os redescobrira e passava frequentemente à porta do prédio onde viviam ali na zona das Amoreiras. Em certa ocasião, o filho Pedro até pedira aos pais para lhe darem uma esmola… e fora ele próprio entregar-lhe o dinheiro na mão… Elizabeth de cabeça baixa agradecera… sem coragem para o olhar nos olhos… fazia de conta que era cega e assim ninguém lhe via os olhos verdes, grandes e sempre abertos como que espantados…
Sim, e tinha razão porque toda a sua vida só podia ser
de espanto, admiração por tanta aventura vivida no seu corpo tão franzino, que
aos 40 e poucos anos mais parecia uma velha de 60…
Elizabeth ficara órfã muito cedo. Nascida em
Inglaterra, de pai português e mãe inglesa, fora institucionalizada por não ter
família que a acolhesse… aos 16 anos começara a trabalhar. Por ser muito
bonita, infelizmente logo choveram as piores ‘ofertas de trabalho’, que ela
aceitara na ânsia de ser independente e sobreviver… em breve perceberia o seu
enorme erro! Não era amada, era explorada por outros, usada por todos… e após o
primeiro aborto, outros se seguiram… um dia, porém, um jovem pintor inglês,
idealista e meio ‘hippie’, apaixonou-se por ela e ela por ele. Levou-a para
longe, muito longe! Andaram por diferentes países, procurando algum trabalho…
até que foram viver para a Colômbia; aí logo lhes ofereceram trabalho na
agricultura, mas de repente estavam no cultivo de folhas de coca e caíram nas
mãos de traficantes de cocaína que lhes prometeram mundos e fundos e surgiu a
tentadora 'proposta' de 'dinheiro fácil' que lhes poderia mudar a vida:
correios de droga! Por que não???
Apesar dos perigos e riscos, a pobreza em que viviam e a ideia de que seria só uma vez e já ficariam capazes de sobreviver sozinhos e recomeçar a vida noutro país, levou-os a aceitar o desafio tão tentador… correu ‘bem’ da primeira vez, só mais uma… e foram duas vezes com sucesso, mas à terceira foram apanhados… ele no Brasil e ela em Portugal… levados para a prisão e separados para sempre… mas ela estava grávida e o Pedro nasceu… Depois, com ajuda de uma associação de apoio a mães solteiras e de uma artista de teatro que trabalhava nas prisões, Elizabeth saiu e encontrou acolhimento numa instituição. Porém, meses depois estava na rua, por causa da maldita droga… queria emendar-se, mas não conseguia… e a Segurança Social acabou por lhe retirar o bebé … foi um desgosto, mas Elizabeth, que agora vivia de prostituição, sabia que aquilo não era vida para o seu filho. Alguém o poderia amar melhor do que ela e dar-lhe não só carinho, mas muito melhores condições de vida… e entregou-o voluntariamente, quase com uma sensação de alívio. Do pai não mais tivera notícias… mas sabia como eram as prisões no Brasil…
Com fome, sede e frio, dias antes, Elizabeth caminhara
ao acaso pelas ruas e em noite de Natal entrara na Basílica da Estrela, atraída
pelas luzes e cânticos da Missa do Galo. Permanecera sentada na pedra fria a um
canto, junto de um altar lateral. Ali ficara e algumas pessoas tinham-lhe dado
esmola, discretamente, até dentro da igreja. Um casal chegara atrasado com uma
criança pela mão e sentara-se no último banco. O menino ficou a olhar para ela
e voltou- se várias vezes… ela reparou que ele estava sempre a pegar no braço
do pai para ver as horas no seu relógio de pulso. Elizabeth sentiu o coração
acelerar, levantou-se e devagar, sem ruído, aproximou-se e reconheceu-o de
imediato pelos olhos verdes muito abertos de espanto…
Pelo rosto abaixo caíram-lhe grandes lágrimas… depois afastou-se e esperou à porta da igreja. À saída, Pedro olhou-a fixamente, lembrou-se que já alguma vez a vira e lhe dera dinheiro, e de novo pediu aos pais dinheiro para lhe dar… o pai deu-lhe uma nota de cinco euros, mas Pedro, sem que os pais dessem conta meteu a mão no bolso e aos cinco euros juntou a nota de vinte que o padrinho lhe dera para comprar alguma coisa que ele gostasse… aproximando-se de Elizabeth, meteu-lhe as notas na mão. Elizabeth inclinou-se de imediato e beijou-lhe a mão… sem dizer uma palavra, tão comovida ficara…
Agora, naquele dia, à porta do restaurante, Elizabeth
ia olhando pelos vidros e apercebeu-se de que o almoço estava a chegar ao fim. Viu-os
levantarem-se da mesa e beijarem-se, encaminhando-se para a porta.
Do saco de plástico velho que trazia consigo,
Elizabeth retirou um presente bem embrulhado… e quando o menino ia a passar
junto dela, levantou-se, tocou-lhe ao de leve no braço e disse apenas: -
‘Pedrinho, muitos parabéns! Toma um presente! És lindo! Deus te guarde! Sê
sempre um bom menino como agora, desejo-te muitas felicidades e aos teus pais
também!’
Depois partiu a toda a pressa, sem se voltar para trás
uma única vez e dobrou a esquina da rua, deixando o casal e a criança
estupefatos…
Pedrinho abriu o embrulho e cheio de espanto, viu o relógio que tanto desejava…
Fátima Fonseca |
Sem comentários:
Enviar um comentário