Num panorama de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, a atenção mundial tem estado virada para a política envolvente destas dinâmicas, tentando procurar um contexto histórico-político e social de origem desta conflitualidade.
É óbvio que, para os leitores, o título deste artigo poderá parecer um pouco desajustado, porque hoje já não se fazem guerras em torno de ícones religiosos e da própria confissão religiosa de sociedades. Pelo menos, para nós, europeus, o conceito de guerra santa é muito distante, quer no tempo, quer no espaço. No entanto, o tom provocatório deste título abre um enorme espaço, deveras, uma “caixa de Pandora”, que nos poderá permitir perceber melhor o que está por detrás das relações que, desde tempos primordiais, tem tido um impacto importante na formulação das sociedades e dos países da Europa de Leste.
Para além de um conflito armado já existente no leste da Ucrânia, e o risco de uma invasão russa, existe um outro conflito: trata-se da concorrência entre as Igrejas Ortodoxa Russa e Ucraniana.
Em 2019, a Igreja Ortodoxa Ucraniana tornou-se oficialmente autocéfala, através do Thomos (“Decreto”) patriarcal, do Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I. No entanto, conforme ditam os cânones ortodoxos, a autocefalia de uma Igreja Ortodoxa, para se considerar completa, deve ser reconhecida por todas as outras Igrejas Ortodoxas. Neste panorama, a Igreja Ortodoxa Ucraniana não teve o reconhecimento do Patriarcado de Moscovo, que continua a ter a adesão de algumas das principais paróquias da Ucrânia e uma comunidade aderente numerosa, não sendo, ainda assim, superior à da Igreja Ortodoxa Ucraniana.
Obviamente que para a Rússia, país com um poder político baseado em valores conservadores e religiosos e onde a ligação entre a Igreja e o Estado é muito presente, haver uma Igreja autocéfala na Ucrânia, país do qual Moscovo precisa como seu aliado próximo e totalmente alinhado com as suas conceções, é um perigo. Um perigo para Moscovo que para os ucranianos representa uma oportunidade de reforçar a sua luta constante para a autodeterminação da sua nação.
Por detrás das razões puramente políticas nesta situação, existe também um conjunto de fatores culturais e religiosos. Assim, neste espaço, tentarei acrescentar uma envolvente religiosa a uma conflitualidade evidente e permanente em duas sociedades (a ucraniana e a russa), partindo de um evento histórico, ocorrido em meados do séc. XII: o sequestro do Teótoco de Vladimir (ou Nossa Senhora de Vladimir), que estava exposto em Kyiv [Kiev].
No séc. XII, a Europa de Leste era dominada por um poderoso império Rus (ou Ruteniano, conforme a tradução latinizada da palavra), que se prolongava desde o Mar Báltico até ao Mar Negro e servia de comunicação entre os povos nórdico e a poderosa capital bizantina, Constantinopla.
Internamente, tratava-se de uma aliança de ducados, sob a hegemonia do grão-ducado de Kyiv, que era escolhido de entre os vários duques por uma assembleia (Vitche). Este esquema político, onde não havia propriamente o direito de sucessão hereditário, levava a que os momentos de escolha do novo grão-duque levassem a muitos confrontos e guerras civis.
Em 1149, o trono do grão-ducado de Kyiv é tomado por Jorge I de Kyiv, também conhecido por Jorge Longímano (Iuri Dolgorukii) que ocupa o lugar de grão-duque até 1150 e depois, desde 1155 até 1157, ano em que morre. Nesse ano, é escolhido um novo grão-duque, Izaslav III, que fica no poder até 1169, ano em que o filho de Jorge Longímano, André I de Vladimir, conhecido por André de Bogoliubovo, duque de Vladimir-Susdália, um ducado muito longínquo (até essa altura, considerado como uma colónia do Império Ruteniano) ataca Kyiv, destrói grande parte da cidade e sequestra o Teótoco de Vyshgorod (Nossa Senhora da Cidade Alta de Kyiv), de onde este vai para Vladimir, a capital do Ducado de André I, onde passa a ser denominado e mundialmente conhecido como Teótoco de Vladimir.
Será pertinente contextualizar de que se trata o Teótoco de Vladimir. A própria palavra “Teótoco”, do grego, significa “Portadora de Deus” ou “Mãe de Deus” e o ícone em questão é, de acordo com as crenças cristãs ortodoxas, o primeiro ícone a ser feito na História, desenhado pelo apóstolo Lucas Evangelista, numa placa retirada de uma mesa sob a qual Nossa Senhora e Jesus Cristo se sentavam.
Por volta de 450, este ícone viajou de Jerusalém para Constantinopla e já por volta de 1156, o Patriarca de Constantinopla, Lucas Crisoberges, enviou o ícone ao grão-duque Jorge Longímano.
Traçado o caminho feito pelo ícone, que atualmente está na Galeria de Tretyakov, em Moscovo, é importante explicar a sua importância para a Rússia e para a Ucrânia.
Antes de atacar e destruir Kyiv, em 1162, André de Bogoliubovo enviou uma embaixada a Constantinopla, capital do Império Bizantino, com o objetivo de obter o direito de criar a sua própria sé metropolitana independente em Vladimir, com o reverendo Teodoro como metropolita, algo que lhe foi negado. Após ter atacado Kyiv, André não permaneceu na cidade, mas proclamou-se grão-duque e voltou para Vladimir, querendo, desta forma, tornar Vladimir na capital do imenso Império Ruteniano e, assim, fazer com que o metropolita de Kyiv tivesse que ir para Vladimir, tornando a cidade no centro religioso do cristianismo ortodoxo Ruteniano.
É perfeitamente legítimo questionar a ligação consequencial de um acontecimento do séc. XII, num país que hoje só existe na memória e em relatos literários, com o risco da escalada de uma nova guerra global entre a Ucrânia e a Rússia. E de facto, esta situação não o explica. O que realmente aqui se traz à discussão é o momento chave em que se formularam as pretensões políticas de uma sociedade (diga-se russa) face ao pensamento político de outra (neste caso, evidentemente, a ucraniana).
Contudo, este impacto não se vê só na construção política de uma sociedade, mas também na formulação das estratégias de expansão que a Igreja Ortodoxa Russa tem na Ucrânia. A Igreja Ortodoxa Russa, contrariamente à sua própria retórica, nasceu no século XVIII, quando Pedro I da Rússia venceu uma guerra contra o Império Otomano e obrigou o sultão a pressionar o Patriarca de Constantinopla para este emitir o Thomos, através do qual a própria obteve a autocefalia. Porém, assume a sua formulação com o Batismo da Ruténia, em 988, pelo grão-duque de Kyiv, Volodymyr, o Grande. Assim, Moscovo procura uma retórica civilizacional contínua no espaço e no tempo, de uma sociedade russa moderna que tem as suas raízes numa sociedade cita, ainda do período pré-Clássico (no séc. VIII a.C.), passa pelo período Ruteniano, formula-se na Rússia Imperial, na URSS e, finalmente, renasce com a Federação Russa.
Através de uma interpretação deste facto histórico, das suas consequências e do seu impacto, segue-se uma questão importante que pode ser colocada como conclusão deste artigo: Serão as nossas crenças, crenças humanas, fortes o suficiente para nos fazer entrar em conflito com outros homens simplesmente pela busca da verdade absoluta?
Vitaliy Venislavskyy nasceu na Ucrânia, vive em Portugal e estuda no mestrado Interuniversitário de História Militar, em Lisboa.
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