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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Três rostos para a liberdade


 | 14 Ago 19
De facto, para quem o sabe fazer, o cinema é mesmo uma arte muito simples: basta uma câmara, um ponto de partida e pessoas que se vão cruzando e dialogando. E temos um filme, quase sempre um magnífico filme.
Vem isto a propósito do último trabalho do iraniano Jafar Panahi: Três Rostos. Como é do conhecimento de muitos, Jafar Panahi está proibido de filmar e de sair do Irão (em 2010 foi preso e acusado de fazer propaganda contra o Governo do Irão e a República islâmica). Mas ele não acatou a proibição, arranjando maneira de filmar e fazer com que os seus filmes saiam do país e possam ser vistos. E são sempre uma revelação. Depois de Táxi, aqui vai o convite para não perderem esta pérola. Para quem gosta realmente de cinema, de um cinema artesanal, simples, humano, cheio de pessoas e das suas vidas, ora mais dramáticas, ora mais felizes, cheio das cores e das marcas de um país com tradições que, afinal, não são assim tão diferentes de todas as outras.
O filme começa com a gravação de um vídeo, num telemóvel, por Marziyeh que está disposta a tudo para conseguir ser atriz, até a simular um suicídio. O seu objectivo é fazer ir à sua aldeia a mais famosa atriz do Irão, Benhnaz Jafari, para convencer a sua família a deixá-la ir para o Conservatório, em Teerão. O vídeo é enviado para o telemóvel de Panahi que o faz chegar a Jafari.
Muito intrigada e preocupada, ela faz a viagem no jipe de Panahi, com ele ao volante, como em Táxi. Não vai ser fácil a tarefa. É de uma grande viagem que se trata até uma remota aldeia junto da fronteira com o Azerbaijão para tentar desvendar o mistério daquele vídeo.

Pelo caminho vão conhecer – e, portanto, dar-nos a ver – a hospitalidade, a generosidade, a desconfiança, as tradições, os costumes e preconceitos de um Irão rural, muito afastado da capital. Como lhe é habitual, Panahi vai mostrando os problemas e males da sociedade iraniana muito fechada e tradicionalista: todos reconhecem e aplaudem a actriz, Behnaz Jafari, mas à filha da terra, Marziyeh, que quer seguir o mesmo caminho, chamam-lhe pejorativamente “saltimbanca” e não aceitam essa sua vontade.


Uma das singularidades do filme é que cada um faz dele próprio. É como se não houvesse personagens: a actriz é mesmo ela, o realizador é mesmo ele, como que esbatendo a linha entre a realidade e a ficção. Com este artifício, Panahi consegue um filme virtuoso e belo, marcado pela denúncia da realidade e pela coragem e bondade do seu olhar.
Sobressai neste filme, uma vez mais, a condição da Mulher num Irão ainda muito pouco capaz de reconhecer a sua dignidade. Os três rostos do filme são, de facto, Marziyeh, Jafari e Shahrzad, uma actriz do tempo pré-revolução, que vive naquela aldeia, completamente à margem, e da qual nunca veremos o rosto. Passado, presente e futuro. É por aqui que se move o realizador, deixando-nos, no final, apesar do pára-brisas estilhaçado, um caminho em aberto. Não se pode desistir da liberdade.
Se alguém viu o magnífico O Sabor da Cereja, de Kiarostami, encontrará neste Três Rostos muitas rimas e evocações. E a viagem não é menos importante, a par da inteligência e do humanismo.

3 Faces – 3 Rostos, de Jafar Panahi
Drama, M/14, Irão, 2018.
Prémio de melhor argumento no Festival de Cinema de Cannes

Manuel Mendes é padre católico e pároco de Matosinhos; o texto foi inicialmente publicado na revista Mensageiro de Santo António, de Julho-Agosto de 2019.


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