Encontrei aquele
índio xucro numa agropecuária. Fora até lá para adquirir algumas galinhas
poedeiras. Treinado na lida campeira, Seu Jardel estava como sempre: pilchado,
faca à cintura. Tradicionalista que se pretende dos mais autênticos, lembrou
passagens de sua existência como peão de estância, maneando aporreados, como
cantaria Noel Guarany. Conhecedor de muitos causos da região, de longo alcance,
chegando à política, o concitei a conceder uma entrevista. Olhou-me com certa
reprovação, como se lhe houvesse proposto pisar num cadafalso.
O dono daquele
armazém se achegou na conversa e trocamos algumas impressões políticas, às
vésperas da eleição presidencial. Insisti no convite para a entrevista, mas Seu
Jardel esquivou-se como um boxeador que evita um upper. Cofiou o bigode e
negaceou. Naquele momento me veio à lembrança um livro de Abelardo Romero, cujo
nome batiza estas linhas, que tenta explicar por que raios somos tão bagunçados
e imorais. Se o relato condena os portugueses, como era de esperar, tampouco é
lisonjeiro com os índios, que identifica como decadentes e depravados.
Ao chegar no
Haiti, Colombo pensou que aportara na Índia e por isto denominou os nativos de
índios. Ao divisar mulheres nuas, cravou que estavam vestidas de inocência. Também
assim desvestidos estavam cerca de vinte autóctones que recepcionaram Cabral e
sua esquadra. Caminha os elogia como sendo uma gente boa e simples, que não
manifestou hostilidade alguma e abasteceu os portugueses de frutos, lenha e
água, além de alguns atavios.
Romero isenta o
clima, a raça e a alimentação, atribuindo nossas mazelas à formação moral do
brasileiro, dando especial relevo à nossa “falta
histórica e crônica de liberdade”. Segundo ele, não sentimos falta da
liberdade porque nascemos sem ela e porque gozamos como sucedâneo a “mais ampla e irrestrita licença para
manifestar e satisfazer os instintos primários e desprezar os valores
intelectuais e morais, não ocultando sua admiração pelos desonestos e os tolos”.
Somos assim porque assim nos fizeram a falta de liberdade, o excesso de
licenciosidade e a educação do medo. O autor também cita um sujeito chamado
Parny, que afirmou em 1773 que nos faltava “a
única coisa que valoriza as demais: a liberdade”, para então sustentar que
“sem liberdade se cria o escravo, e toda
escravidão começa no corpo, porquanto seu objetivo é a produção, mas acaba
fatalmente no espirito, que embota, embrutece, humilha e acovarda”.
Retornam agora as
imagens daquele gaudério pilchado, com gestos e ajeitos que o irmanam a
gerações ancestrais, que o mostram naquela agropecuária como se estivesse num
bolicho de estrada de chão batido, tropeiro de sacrifícios, centauro de
frustrações. Cantarolo então os versos de Noel Guarany, da satisfação com quase
nada, numa humildade transcendente que denuncia os supérfluos nossos de cada
dia: “Queria tanto dar um presente pra
prenda / Ponta de gado, fazenda, um montão de coisas mais / Dizer palavras que
sei e penso em segredo / E que só em pensar tenho medo e por isso não sou
capaz. / Eu até estive pensando em construir um ranchinho / Nem que seja
pequenininho, já dormi muito em galpão / Se ela quisesse, que coisa linda seria
/ A Deus agradeceria o meu destino de peão”.
Pois assim
constituímos nossa civilização, estaqueada em padecimentos superados com
galhardia, com os frutos agridoces da valentia e a rocinante humildade que
consola e submete o peão. Volto a Romero, ao citar outro pensador, de sobrenome
Leclerc, que no século XIX traçou um retrato psicológico do brasileiro, com bosquejos
marcantes de amenidade de caráter e horror à violência, traços que lastimou por
se confundirem com falta de energia.
Arremata com um petardo em nossa nacionalidade: “toda a nossa sabedoria política se resume na resignação diante do fato
consumado”. Quanto deste retrato pode ser transposto para o século XXI,
onde
fofoqueiros das
ruas centrais das cidades, revolucionários de boteco e pregadores de ideologias
albergados em bastas carreiras públicas “resolvem”
nossas mazelas todos os dias?
Enquanto pagava
as poedeiras, tendo Seu Jardel ao alcance da visão periférica, estaqueei no
balcão, me virei em sua direção e - ao mesmo tempo brincando e dizendo o que
penso,- perguntei quem falaria enfim o que pensa. Se um gaudério como ele - que
arrasta botas e alpargatas nos centros de cultivo da tradição, que se atavia
com lenço ao pescoço e um cinturão com a bandeira farrapa, além de ostentar uma
faca na cintura,- não abre a boca porque não quer se incomodar, então quem
gritará o grito que só é digno dos livres? Já não basta deste silêncio?
J. B. Teixeira |
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