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domingo, 26 de abril de 2020

A origem da imoralidade

Encontrei aquele índio xucro numa agropecuária. Fora até lá para adquirir algumas galinhas poedeiras. Treinado na lida campeira, Seu Jardel estava como sempre: pilchado, faca à cintura. Tradicionalista que se pretende dos mais autênticos, lembrou passagens de sua existência como peão de estância, maneando aporreados, como cantaria Noel Guarany. Conhecedor de muitos causos da região, de longo alcance, chegando à política, o concitei a conceder uma entrevista. Olhou-me com certa reprovação, como se lhe houvesse proposto pisar num cadafalso.

O dono daquele armazém se achegou na conversa e trocamos algumas impressões políticas, às vésperas da eleição presidencial. Insisti no convite para a entrevista, mas Seu Jardel esquivou-se como um boxeador que evita um upper. Cofiou o bigode e negaceou. Naquele momento me veio à lembrança um livro de Abelardo Romero, cujo nome batiza estas linhas, que tenta explicar por que raios somos tão bagunçados e imorais. Se o relato condena os portugueses, como era de esperar, tampouco é lisonjeiro com os índios, que identifica como decadentes e depravados.

Ao chegar no Haiti, Colombo pensou que aportara na Índia e por isto denominou os nativos de índios. Ao divisar mulheres nuas, cravou que estavam vestidas de inocência. Também assim desvestidos estavam cerca de vinte autóctones que recepcionaram Cabral e sua esquadra. Caminha os elogia como sendo uma gente boa e simples, que não manifestou hostilidade alguma e abasteceu os portugueses de frutos, lenha e água, além de alguns atavios.

Romero isenta o clima, a raça e a alimentação, atribuindo nossas mazelas à formação moral do brasileiro, dando especial relevo à nossa “falta histórica e crônica de liberdade”. Segundo ele, não sentimos falta da liberdade porque nascemos sem ela e porque gozamos como sucedâneo a “mais ampla e irrestrita licença para manifestar e satisfazer os instintos primários e desprezar os valores intelectuais e morais, não ocultando sua admiração pelos desonestos e os tolos”. Somos assim porque assim nos fizeram a falta de liberdade, o excesso de licenciosidade e a educação do medo. O autor também cita um sujeito chamado Parny, que afirmou em 1773 que nos faltava “a única coisa que valoriza as demais: a liberdade”, para então sustentar que “sem liberdade se cria o escravo, e toda escravidão começa no corpo, porquanto seu objetivo é a produção, mas acaba fatalmente no espirito, que embota, embrutece, humilha e acovarda”.

Retornam agora as imagens daquele gaudério pilchado, com gestos e ajeitos que o irmanam a gerações ancestrais, que o mostram naquela agropecuária como se estivesse num bolicho de estrada de chão batido, tropeiro de sacrifícios, centauro de frustrações. Cantarolo então os versos de Noel Guarany, da satisfação com quase nada, numa humildade transcendente que denuncia os supérfluos nossos de cada dia: “Queria tanto dar um presente pra prenda / Ponta de gado, fazenda, um montão de coisas mais / Dizer palavras que sei e penso em segredo / E que só em pensar tenho medo e por isso não sou capaz. / Eu até estive pensando em construir um ranchinho / Nem que seja pequenininho, já dormi muito em galpão / Se ela quisesse, que coisa linda seria / A Deus agradeceria o meu destino de peão”.

Pois assim constituímos nossa civilização, estaqueada em padecimentos superados com galhardia, com os frutos agridoces da valentia e a rocinante humildade que consola e submete o peão. Volto a Romero, ao citar outro pensador, de sobrenome Leclerc, que no século XIX traçou um retrato psicológico do brasileiro, com bosquejos marcantes de amenidade de caráter e horror à violência, traços que lastimou por se confundirem com falta de energia.  Arremata com um petardo em nossa nacionalidade: “toda a nossa sabedoria política se resume na resignação diante do fato consumado”. Quanto deste retrato pode ser transposto para o século XXI, onde

fofoqueiros das ruas centrais das cidades, revolucionários de boteco e pregadores de ideologias albergados em bastas carreiras públicas “resolvem” nossas mazelas todos os dias?

Enquanto pagava as poedeiras, tendo Seu Jardel ao alcance da visão periférica, estaqueei no balcão, me virei em sua direção e - ao mesmo tempo brincando e dizendo o que penso,- perguntei quem falaria enfim o que pensa. Se um gaudério como ele - que arrasta botas e alpargatas nos centros de cultivo da tradição, que se atavia com lenço ao pescoço e um cinturão com a bandeira farrapa, além de ostentar uma faca na cintura,- não abre a boca porque não quer se incomodar, então quem gritará o grito que só é digno dos livres? Já não basta deste silêncio?

J. B. Teixeira



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