Trata-se duma
festa antiga, celebrada há muitos séculos e enquadra-se num peculiar contexto sócio-histórico
e cultural. Simboliza, também, diversas tradições populares. Com efeito, pese
embora a ausência de fontes
conhecidas sobre a sua origem, é verosimil que esteja relacionada com os
primórdios do povoamento. Como se sabe, no passado os gancares – os donos das
terras – mantinham as igrejas e custeavam as festas religiosas. Em
reconhecimento destes serviços prestados à comunidade e à sua devoção permitiu-se-lhes
que oferecessem dádivas ao Menino –Deus no dia da Epifania, pelas mãos de seus
filhos.
Convém observar
que inicialmente a conexão com os gancares e com aspectos de casta era bastante
forte. Aliás, é muito significativo que esta festa seja celebrada nas
localidades onde os gancares são da casta chardó, emergida da casta hindu dos
xátrias, primordialmente formada por guerreiros e como tal mais consentânea com
a representação dos Reis Magos. Assim se entende que ela seja pontificada com
solenidade nas aldeias de Verém ou Reis Magos (Bardez), Chandor (Salsete) e
Arossim, Cansaulim e Cuelim (Salsete), precisamente onde os gancares são da
casta chardó.
Actualmente, com
as transformações em curso na sociedade goesa, estas tradições vão-se esbatendo.
Assim em Verém e Chandor já nao há qualquer critério para a escolha dos
candidatos, que podem vir de todas as partes de Goa, desde que reservem o lugar
com antecipação. Nas três aldeias vizinhas de Arossim, Cansaulim e Cuelim,
segue-se com mais fidelidade o sistema antigo, mas como ao longo dos anos o
número de candidatos tem vindo a diminuir, tentou-se superar esta dificuldade
aceitando-se os filhos e netos de antigos gancares dessas três localidades, mas
residentes noutras aldeias.
Acompanhemos as
celebrações nestas últimas três aldeias, onde na verdade se festeja com maior
ritual e ostentação. A festa inicia-se em casa de cada pequeno rei mago que faz
preces junto do altar doméstico e recebe bénçãos de pais e familiares, bem como
alguns presentes.
Inicia a sua
jornada, montado num cavalo ricamente ajaezado e acompanhado dum séquito, cujos
elementos são membros da confraria – da casta chardó – e têm funções bem
definidas como transportar o estandarte que vai à frente do cortejo, a cruz
cravejada de pedras lembrando uma cruz episcopal, a coroa, o “sombreiro”, dar
assistência ao menino.... Evidentemente que os pais integram este cortejo. Um
grupo de músicos com tambores e cornetas anima a festa.
Segue sempre
pelos mesmos caminhos, mantidos pela tradição, muito rurais, entre várzeas e
por valados dos coqueiros donde se avistam camponeses nas suas lides, até ao
sopé da colina, no cimo da qual se encontra a capela de Nossa Senhora dos
Remédios, em Cuelim. Neste local, aonde convergem os outros dois reis magos,
faz-se uma pausa, durante a qual os gancares de opas brancas orquestram todo
ritual, dando a beijar a cruz e passando a coroa de cabeça para cabeça.
Seguidamente os
três reis magos sobem em fila até à dita capela. Desmontam dos cavalos no
átrio, atulhado pela multidão e são conduzidos para dentro da capela, onde
fazem as suas preces e ofertas. Depois tomam assento de honra, junto do altar
ao ar livre, debaixo dum toldo lindamente montado para a missa campal. (pandal).
Os três pequenos Reis Magos assistindo à Missa campal, junto da capela de Nossa Senhora dos Remédios, em Cuelim (Salcete).
A eucaristia
decorre num ambiente de verdadeiro fervor religioso. Depois os reis – cada qual
com a sua comitiva – descem a colina, tomam rumo da igreja paroquial de S.
Tomé, em Cansaulim, onde se detêm por uns momentos. Seguidamente voltam cada
qual para a sua aldeia, para a sua casa, onde continuam os festejos até o
pôr-do-sol.
A festa de Nossa
Senhora dos Remédios em Cuelim congrega milhares de devotos de todas as castas
e religiões que no dia 6 de Janeiro aqui acorrem para venerar a Senhora e
celebrar a Epifania. Também afluem muitos curiosos, razão porque este local
figura nos circuitos turísticos de Goa. Durante um dia inteiro a colina
torna-se um local de culto e tradição!
Igual festa tradicional
é celebrada em Chandor, na paróquia de Nossa Senhora de Belém, onde três
meninos vestidos de reis, montados em cavalos adornados e acompanhados dos seus
séquitos se dirigem à igreja para assistirem à missa solene e oferecerem os
seus presentes ao Menino-Rei. Seguidamente incorporam-se na procissão que
percorre as imediações da igreja.
Os três pequenos Reis Magos, à sua chegada à igreja e assistindo à eucaristia
Inicialmente, os
pequenos reis eram seleccionados entre os filhos dos gancares das comunidades
de Guirdolim, Cavorim e Chandor. Em 1949 este gauncarismo foi descontinuado,
mas a seguir retomado. Actualmente não existe qualquer espécie de restrição,
quer quanto à casta ou residência.
Já que a
primeira igreja a ser edificada em Goa foi a dos Reis Magos, em Bardez, em
1555, pelos franciscanos, é muito plausível que aqui se tivesse iniciado a
celebração desta festa. Os rapazes, trajados de reis, acompanhados da sua comitiva
e dum grupo de músicos, dirigem-se à igreja para assistirem à missa solene e à
procissão. Mas aqui não vêm montados em cavalos, mas deslocam-se em automóveis!
Conquanto a
“modernidade” vá paulatinamente modificando a sociedade goesa e esbatendo
algumas das suas tradições, a festa dos Reis Magos, ainda mantém aspectos
genuínos e é celebrada com muita dignidade cristã, o que realça a sacralidade
da cerimónia.
Maria de Jesus dos Mártires Lopes
Doutora em História
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