Páginas

sábado, 5 de janeiro de 2019

Encontro de culturas em Goa: a festa dos Reis Magos

Trata-se duma festa antiga, celebrada há muitos séculos e enquadra-se num peculiar contexto sócio-histórico e cultural. Simboliza, também, diversas tradições populares. Com efeito, pese embora a ausência de fontes conhecidas sobre a sua origem, é verosimil que esteja relacionada com os primórdios do povoamento. Como se sabe, no passado os gancares – os donos das terras – mantinham as igrejas e custeavam as festas religiosas. Em reconhecimento destes serviços prestados à comunidade e à sua devoção permitiu-se-lhes que oferecessem dádivas ao Menino –Deus no dia da Epifania, pelas mãos de seus filhos.

Convém observar que inicialmente a conexão com os gancares e com aspectos de casta era bastante forte. Aliás, é muito significativo que esta festa seja celebrada nas localidades onde os gancares são da casta chardó, emergida da casta hindu dos xátrias, primordialmente formada por guerreiros e como tal mais consentânea com a representação dos Reis Magos. Assim se entende que ela seja pontificada com solenidade nas aldeias de Verém ou Reis Magos (Bardez), Chandor (Salsete) e Arossim, Cansaulim e Cuelim (Salsete), precisamente onde os gancares são da casta chardó.

Actualmente, com as transformações em curso na sociedade goesa, estas tradições vão-se esbatendo. Assim em Verém e Chandor já nao há qualquer critério para a escolha dos candidatos, que podem vir de todas as partes de Goa, desde que reservem o lugar com antecipação. Nas três aldeias vizinhas de Arossim, Cansaulim e Cuelim, segue-se com mais fidelidade o sistema antigo, mas como ao longo dos anos o número de candidatos tem vindo a diminuir, tentou-se superar esta dificuldade aceitando-se os filhos e netos de antigos gancares dessas três localidades, mas residentes noutras aldeias.

Acompanhemos as celebrações nestas últimas três aldeias, onde na verdade se festeja com maior ritual e ostentação. A festa inicia-se em casa de cada pequeno rei mago que faz preces junto do altar doméstico e recebe bénçãos de pais e familiares, bem como alguns presentes.

Inicia a sua jornada, montado num cavalo ricamente ajaezado e acompanhado dum séquito, cujos elementos são membros da confraria – da casta chardó – e têm funções bem definidas como transportar o estandarte que vai à frente do cortejo, a cruz cravejada de pedras lembrando uma cruz episcopal, a coroa, o “sombreiro”, dar assistência ao menino.... Evidentemente que os pais integram este cortejo. Um grupo de músicos com tambores e cornetas anima a festa.

Segue sempre pelos mesmos caminhos, mantidos pela tradição, muito rurais, entre várzeas e por valados dos coqueiros donde se avistam camponeses nas suas lides, até ao sopé da colina, no cimo da qual se encontra a capela de Nossa Senhora dos Remédios, em Cuelim. Neste local, aonde convergem os outros dois reis magos, faz-se uma pausa, durante a qual os gancares de opas brancas orquestram todo ritual, dando a beijar a cruz e passando a coroa de cabeça para cabeça.

Seguidamente os três reis magos sobem em fila até à dita capela. Desmontam dos cavalos no átrio, atulhado pela multidão e são conduzidos para dentro da capela, onde fazem as suas preces e ofertas. Depois tomam assento de honra, junto do altar ao ar livre, debaixo dum toldo lindamente montado para a missa campal. (pandal).

Os três pequenos Reis Magos assistindo à Missa campal, junto da capela de Nossa Senhora dos Remédios, em Cuelim (Salcete).

A eucaristia decorre num ambiente de verdadeiro fervor religioso. Depois os reis – cada qual com a sua comitiva – descem a colina, tomam rumo da igreja paroquial de S. Tomé, em Cansaulim, onde se detêm por uns momentos. Seguidamente voltam cada qual para a sua aldeia, para a sua casa, onde continuam os festejos até o pôr-do-sol.

A festa de Nossa Senhora dos Remédios em Cuelim congrega milhares de devotos de todas as castas e religiões que no dia 6 de Janeiro aqui acorrem para venerar a Senhora e celebrar a Epifania. Também afluem muitos curiosos, razão porque este local figura nos circuitos turísticos de Goa. Durante um dia inteiro a colina torna-se um local de culto e tradição!

Igual festa tradicional é celebrada em Chandor, na paróquia de Nossa Senhora de Belém, onde três meninos vestidos de reis, montados em cavalos adornados e acompanhados dos seus séquitos se dirigem à igreja para assistirem à missa solene e oferecerem os seus presentes ao Menino-Rei. Seguidamente incorporam-se na procissão que percorre as imediações da igreja.

Os três pequenos Reis Magos, à sua chegada à igreja e assistindo à eucaristia

Inicialmente, os pequenos reis eram seleccionados entre os filhos dos gancares das comunidades de Guirdolim, Cavorim e Chandor. Em 1949 este gauncarismo foi descontinuado, mas a seguir retomado. Actualmente não existe qualquer espécie de restrição, quer quanto à casta ou residência.

Já que a primeira igreja a ser edificada em Goa foi a dos Reis Magos, em Bardez, em 1555, pelos franciscanos, é muito plausível que aqui se tivesse iniciado a celebração desta festa. Os rapazes, trajados de reis, acompanhados da sua comitiva e dum grupo de músicos, dirigem-se à igreja para assistirem à missa solene e à procissão. Mas aqui não vêm montados em cavalos, mas deslocam-se em automóveis!

Conquanto a “modernidade” vá paulatinamente modificando a sociedade goesa e esbatendo algumas das suas tradições, a festa dos Reis Magos, ainda mantém aspectos genuínos e é celebrada com muita dignidade cristã, o que realça a sacralidade da cerimónia.

Maria de Jesus dos Mártires Lopes
Doutora em História



Sem comentários:

Enviar um comentário