Entrevista com o cardeal alemão cujo livro recém-lançado percorre séculos de história da Igreja a fim de entender o seu rosto e missão
Roma, 05 de Junho de 2014 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio
Um passeio através dos séculos para quem quer compreender o
mundo e a Igreja de hoje: poderia ser esta a síntese do novo livro do
cardeal Walter Brandmüller, que reúne os seus escritos publicados no
Osservatore Romano ao longo das últimas décadas. “Eventos eloquentes: o
agir da Igreja na história” é o título da obra do purpurado que, durante
muito tempo, presidiu o Comité Pontifício das Ciências Históricas.
O livro fala de espaços entre pontificados, concílios, excomunhões e
conclaves, desenhando o rosto e a missão da Igreja e aprofundando "na
realidade concreta", não só na ideia generalizada que existe dela.
Nesta entrevista concedida a ZENIT, o prudente e reservado
Brandmüller, de 85 anos, prefere não falar do seu colega de universidade
Joseph Ratzinger, que "ainda vive e eu o respeito", nem expressar um
parecer sobre o pontificado do sucessor, Bergoglio, porque "eu sou um
historiador: falo do passado e não do presente ou do futuro". E sobre a
história e o passado, ele tem muito a dizer e recordar.
ZENIT: Eminência, quais são os "eventos eloquentes" de que fala o seu livro?
Card. Brandmüller: São muitos. A relação entre a Igreja e a arte, a
presença de Giovanni Hus no Concílio de Constança, a visita a Roma de
Martinho Lutero em 1510 durante o Concílio de Trento, a relação entre
Galileu Galilei e a Igreja. Mas também o papel da Igreja católica na
Alemanha comunista, os pontífices alemães, etc.
ZENIT: Por que repassar os séculos de história da Igreja hoje?
Card. Brandmüller: Eu acho que este livro, em nossos dias, poderia
ter pouca sorte. Hoje o interesse da maioria, inclusive no governo da
Igreja, está voltado ao presente, ou melhor, ao futuro. “Sim”, eles
dizem, “temos que estudar a história eclesiástica”, mas não são muitos
os que consideram esta disciplina realmente importante. São muitos, por
outro lado, os que a consideram um "antiquário", que preserva as
curiosidades, que conta episódios edificantes, às vezes extravagantes e
divertidos, mas que, no geral, não é muito útil para resolver os
problemas de hoje. Este pensamento é sintomático dessas heresias
filosóficas muito difundidas, como o utilitarismo e o pragmatismo, que
são correntes intelectuais realmente destrutivas, em especial quando
invadem o pensamento teológico e a atitude pastoral.
ZENIT: A introdução do livro diz: "Quem conhece o passado
concreto da Igreja percebe a realidade vital...". Certas problemáticas,
certos desafios e lacunas da Igreja de hoje podem ser resolvidos à luz
do passado?
Card. Brandmüller: Absolutamente sim. A Igreja, no percurso dos
séculos, põe em prática, realiza o seu próprio ser. No fim das contas, a
natureza de uma coisa não pode ser conhecida se não for através da sua
atuação. Por isso, a natureza da Igreja também não pode ser conhecida se
prescindimos da sua actuação ao longo da história.
ZENIT: Nos seus estudos, o senhor encontrou um fio condutor em todos estes séculos?
Card. Brandmüller: O fio condutor é sempre o mesmo: a genuína missão
da Igreja. A transmissão autêntica da verdade do Evangelho e da graça de
Cristo à humanidade em todos os séculos através dos sacramentos. A
maneira de a Igreja realizar a sua missão é uma coisa que podemos
estudar levando a sério os resultados da pesquisa histórica.
ZENIT: E o que a pesquisa histórica diz: a Igreja cumpriu sempre a sua missão?
Card. Brandmüller: Sempre mais ou menos! (ri). Não é um percurso homogéneo. Há momentos de grandes prestações religiosas, mas muitos
outros períodos de decadência. A vida é assim...
ZENIT: O momento actual, por exemplo, no pontificado de
Francisco: para os seus olhos de historiador, que momento é este para a
Igreja católica?
Card. Brandmüller: Precisamente porque eu sou um historiador, eu me
ocupo do passado, não do presente. Tudo está em movimento agora, tudo
está aberto... Serão os meus colegas do próximo século que vão dar um
parecer.
ZENIT: E os últimos 50 anos desde o Concílio Vaticano II, como podemos defini-los quanto à vida da Igreja?
Card. Brandmüller: (Ri) Teríamos muitas coisas para dizer... No livro
há um estudo meu que se concentra em particular nos conflitos de
interpretação pós-conciliar. Estas décadas foram certamente muito
agitadas, demais, por problemas que, em grande parte, ainda esperam uma
resolução.
ZENIT: Seria culpa também do "concílio da media", de que falava Bento XVI?
Card. Brandmüller: Sim, também, mas não é um traço distintivo do
Vaticano II. Também no Concílio Vaticano I os jornalistas da época
publicaram notícias inexactas e tiveram um papel de grande relevância.
ZENIT: Por que acontecem essas distorções dos ensinamentos conciliares?
Card. Brandmüller: Talvez por causa de um falso conceito do que é a
Igreja. Se a Igreja é definida como o Cristo místico presente na
história, uma realidade humano-divina, com certeza se interpreta de
outra maneira o concílio. Um concílio ecuménico como o Vaticano II é a actuação do sumo Magistério da Igreja, cujos documentos são de valor
decisivo para a Igreja. Mas muitos o consideraram e interpretaram sempre
só como uma realidade histórica, humana, sociológica, política e assim
por diante.
ZENIT: Cinquenta anos não bastaram para se compreender e pôr em ação os ensinamentos conciliares?
Card. Brandmüller: Não, o Concílio Vaticano II ainda está longe de
ser realizado na vida da Igreja. É necessário ainda estudar os
documentos de forma mais profunda para depois colocá-los em prática.
ZENIT: Na sua opinião, é possível que Francisco abra um Concílio Vaticano III?
Card. Brandmüller: Possível é tudo, mas eu acho que não… Em todo
caso, não falamos de futuro. Como eu lhe dizia, sou um historiador.
Prefiro falar do passado.
(05 de Junho de 2014) © Innovative Media Inc.
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