Monsenhor Alfred Xuereb, secretário dos papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco, nos conta o que aconteceu em Fevereiro de 2013, quando Joseph Ratzinger renunciou ao pontificado
Roma, 28 de Fevereiro de 2014 (Zenit.org) Anna Artymiak
"Havia o risco, pelo menos dentro do que eu podia imaginar,
de começarem muitas críticas contra o papa Bento XVI. Eles poderiam
dizer: ele começou um trabalho e não teve coragem de terminar".
"Mas o que eu vi foi o heroísmo dele justamente neste gesto: ele
não olhou para o risco de acharem que a renúncia fosse uma escolha pusilâmine; ele tinha certeza do que nosso Senhor lhe pedia naquele
momento".
Quem fala é monsenhor Alfred Xuereb, que já foi prelado de antecâmara
pontifícia no papado de João Paulo II, segundo secretário de Bento XVI e
é o actual primeiro-secretário particular do papa Francisco.
Monsenhor Georg Ratzinger, os secretários Georg Gänswein e Alfred
Xuereb e as quatro consagradas Memores Domini que cuidavam dos aposentos
pontifícios conheciam fazia tempo as intenções de renúncia de Joseph
Ratzinger.
Algumas decisões e eventos tinham sido uma antecipação silenciosa do
que estava para acontecer em 11 de Fevereiro de 2013, mas a renúncia de
Bento XVI ao papado foi uma surpresa e um choque para o mundo.
O senhor estava ciente da decisão da renúncia? Como essa decisão
foi comunicada ao senhor? Qual foi a sua reacção? Já havia sinais de que
Bento XVI estava tomando essa decisão?
Monsenhor Alfred Xuereb: Algum tempo antes, eu já estava
impressionado com o recolhimento intenso que o papa Bento XVI guardava
antes da missa na sacristia. A missa devia começar às 7h. Só que, às
vezes, o relógio soava no pátio de São Dâmaso e ele continuava em
recolhimento. Ele rezava. Houve um período em que ele se recolhia de um
modo ainda mais intenso que o habitual. Eu tinha uma sensação clara:
alguma coisa muito importante estava acontecendo no coração do papa,
havia alguma intenção particular pela qual o Santo Padre estava rezando.
Eu não sei com certeza, mas talvez aquele tenha sido o período de luta
interior que ele viveu justamente antes de tomar a decisão heróica da
renúncia. A notícia foi comunicada a nós de maneira pessoal. Eu fui
convocado por ele oficialmente e me sentei em frente à mesa dele. Não
era a primeira vez, mas eu sentia que ia receber uma comunicação muito
importante. Obviamente, ninguém esperava. Ele estava calmo, como quem já
tinha passado por uma batalha interior e superado o momento da
indecisão. Ele estava sereno como quem sabe que está dentro da vontade
do Senhor. Assim que eu ouvi a notícia, a minha primeira reacção foi:
"Não, Santo Padre! Por que o senhor não pensa um pouco mais?". Então eu
mesmo me freei e me disse: "Bom, quem sabe há quanto tempo ele não está
examinando esta decisão!”. Então voltaram à minha mente, num piscar de
olhos, aqueles momentos longos e recolhidos da oração antes da missa e
eu escutei com atenção as palavras dele. Tudo já estava decidido. Ele me
repetiu duas vezes: "Você vai continuar com o novo papa". Talvez ele
tivesse uma intuição. Não sei. No dia em que eu me despedi do papa Bento
XVI em Castel Gandolfo, chorei e lhe agradeci pela sua grande
paternidade.
Como a notícia mudou o seu dia-a-dia?
Para mim, mudou muito. Eu tinha crises de choro, era muito difícil me
afastar do papa Bento XVI. No dia 11 de Fevereiro de 2013, na Sala do
Consistório, eu estava sentado em um banquinho, ao lado. Enquanto ele
lia, eu chorava. A pessoa que estava do meu lado me dava cotoveladas e
me dizia: "Controle-se, eu também estou emocionado". Eu fiquei
impressionado com as expressões dos cardeais que estavam na minha
frente. Me lembro do cardeal Giovanni Battista Re, que não conseguia
acreditar nos seus ouvidos. Na mesa, naquele dia, nós conversamos sobre
isso e eu disse: "Mas, Santo Padre, o senhor permaneceu muito
tranquilo". "Sim", ele respondeu, com um sim decidido. A decisão estava
tomada. O parto tinha acontecido. Agora cabia a nós aderir àquela grande
escolha que ele tinha feito: uma escolha de governo, que, no começo,
podia parecer a escolha de um abandono do governo. Muitos cardeais,
depois do consistório, alguns porque não tinham ouvido bem, outros
porque não falam bem o latim, abordaram os cardeais Angelo Sodano e
Giovannni Battista Re para entender melhor o que o papa Bento XVI tinha
dito. O Santo Padre continuou sereno até o último dia, quando partiu
para Castel Gandolfo.
Nem todo mundo entendeu as razões da renúncia...
O papa Bento XVI estava convencido do que nosso Senhor lhe pedia
naquele momento. “Eu não tenho mais forças para continuar a minha
missão”, ele disse. “A minha missão acabou, eu renuncio em favor de
outro que tenha mais forças do que eu e leve a Igreja adiante”. Porque a
Igreja não é do papa Bento, mas de Cristo.
Muita gente começou a enviar ao papa Bento XVI o que ele chamou de "sinais comoventes de atenção, amizade e oração"...
Eu me lembro muito bem. Depois de 28 de Fevereiro de 2013, começaram a
chegar a Castel Gandolfo milhares de cartas. Era impressionante. Antes
não chegavam tantas. Todo mundo correu para escrever para o papa. Mas o
bonito era ver que as pessoas anexavam alguma coisa à carta: um objeto
artesanal, uma partitura, um calendário, um desenho. Como se as pessoas
quisessem dizer "Obrigado por tudo o que você fez, nós apreciamos o
sacrifício que você fez por nós; queremos não só expressar estes
sentimentos, mas lhe dar algo de nosso". Entre essas cartas, vinham
muitas de crianças. Eu enchia uma prateleira com as cartas que chegavam.
Naturalmente, o papa não tinha tempo de olhar todas elas, porque eram
milhares. Uma noite, passando ao lado da prateleira, eu falei: "Veja,
Santo Padre, estas são as cartas que chegaram hoje. Muitas delas são de
crianças". Ele se virou para mim e disse: "Essas são cartas muito
bonitas". Essa ternura com as crianças me comoveu muito. O papa sempre
teve um carácter terno. Talvez, ele quisesse acrescentar: "Ao contrário
das cartas que me preocupam, que trazem problemas". Eu acho que elas
eram uma espécie de antídoto, uma carícia para ele, que o ajudaram a se
sentir querido.
O senhor estava com o papa Bento XVI durante o conclave. Como o papa emérito viveu aqueles dias?
Ele viveu com muita expectativa o conclave, a eleição. Ele estava
ansioso para saber quem ia ser o sucessor. Para mim foi comovente o
telefonema que o novo pontífice fez imediatamente ao papa Bento XVI. Eu
estava ao lado dele e passei o telefone. Que emoção ouvir Bento XVI
dizendo: "Eu lhe agradeço, Santo Padre, por ter pensado em mim. Eu lhe
prometo desde agora a minha obediência. Eu lhe prometo a minha oração".
Ouvir essas palavras de uma pessoa que eu tinha acompanhado durante
tanto tempo e que era o meu papa, ouvir isso me despertou uma emoção
muito forte.
E depois, chegou a hora da despedida...
Eu continuei com ele mais dois ou três dias depois da eleição do papa
Francisco. O dia que eu tinha que ir embora, eu me lembro de cada
minuto, porque foi, se é que eu posso usar essa palavra, dilacerante
para mim. Eu vivi quase seis anos acompanhando uma pessoa que me queria
bem como um pai, que me permitiu uma confidencialidade sempre
respeitosa, mas muito íntima, e agora tinha chegado o dia de me afastar
dele. O papa Bento tinha escrito uma carta belíssima, da qual ele me deu
uma cópia que eu conservo como uma joia, declarando para o novo papa
alguns dos meus pontos fortes; eu acho que ele quis evitar escrever os
meus defeitos; e assegurando que me deixava livre. Eu me lembro até do
jeito que eu fiz as malas. Me diziam: "Depressa, o papa precisa de você,
ele está abrindo as cartas sozinho. Não tem ninguém ajudando. Mande as
suas coisas para baixo rápido". Eu não sabia nada do que estava
acontecendo na Casa Santa Marta, nem sabia que o papa Francisco não
tinha secretário. E aí veio o momento tocante em que eu entrei no
escritório do papa Bento para me despedir pessoalmente. Depois teríamos o
almoço, mas eu me despedi naquele momento. Eu estava chorando e falei
do jeito que pude: "Santo Padre, é muito difícil para mim me afastar do
senhor. Muito obrigado por tudo o que o senhor me deu". A minha gratidão
não era porque ele me permitiu trabalhar com o novo papa, como se
alguém escreveu, mas pela sua grande paternidade. O papa Bento, naqueles
momentos, não se emocionou. Ele se levantou, eu me ajoelhei, como de
costume, para beijar o anel. Ele me deixou beijar o anel, mas levantou a
mão e me deu a sua bênção. Foi assim que nos despedimos. Depois tivemos
o almoço, mas eu não consegui dizer uma palavra.
Como foi que aconteceu a sua nomeação como segundo secretário do papa Bento XVI?
Eu já trabalhava como prelado de antecâmara, que tem a função de
acompanhar as personalidades que o Santo Padre recebe em audiência
privada na biblioteca. Um dia me disseram: "O papa precisa falar com
você". Foi um impacto quando eu me vi sentado na mesma cadeira em que,
durante anos, primeiro com João Paulo II e depois com o próprio Bento
XVI, eu convidava as pessoas a se sentarem ao lado da mesa do papa.
Bento XVI queria falar comigo pessoalmente e me disse palavras
belíssimas: "Como você sabe, monsenhor Mietek está voltando para a
Ucrânia. Nós ficamos muito contentes com ele e eu achei que você poderia
substituí-lo. Eu sei que você esteve na Alemanha, então você também
sabe um pouco de alemão". Eu respondi que tinha estado em Münster, que
tinha trabalhado num hospital que o papa me disse que conhecia. Ele
conhecia também a região onde morávamos e a paróquia, e até mesmo o
pároco, porque ele tinha morado nas proximidades e dado aulas por lá.
Ele conhecia dois professores, o professor Pieper e o teólogo Pasha. Por
causa da guerra, a casa dele tinha sido destruída e ele ficou hospedado
com as mesmas pessoas que depois me alojaram. O Santo Padre também
disse algo sobre Malta e acrescentou: "Naturalmente, agora cada um terá
as suas tarefas". Então eu percebi que tinha que começar logo. E comecei
de imediato.
Imagino que, daquela vez, o senhor fez as malas com alegria...
E com emoção! Com muita emoção.
O papa Bento XVI continuou a tradição de João Paulo II de levar
para a oração pessoal as muitas intenções que ele recebia através da
secretaria?
Sim, João Paulo II já fazia isso e era uma tarefa de mons. Mietek.
Ele foi o meu predecessor, por assim dizer. Eu herdei essa tarefa. Era
um trabalho muito bonito. As intenções chegavam quase todos os dias.
Muitas não chegavam até nós pela secretaria particular, mas directamente
na Secretaria de Estado. Lá elas eram respondidas dizendo que o papa
iria incluí-las na intenção geral durante a oração. Bento XVI se
impressionava muito: quantas doenças, várias que nós nem conhecíamos, e
quantas famílias vivendo o drama da doença! Ele pensava não só na pessoa
doente, mas também na família toda, que, dia e noite, Natal e Páscoa,
inverno e verão, tinha que cuidar dos seus doentes, alguns em situação
muito grave. Quantas famílias em angústia, porque eram recém-nascidos,
crianças pequenas... E quando chegava alguma intenção de oração de Malta
ou da minha cidade, ele me perguntava: "Essas pessoas você conhece?".
Algumas vezes eu conhecia, outras vezes não. Mas o que me impressionava
era que, depois de alguns dias, e várias vezes depois de rezar o terço
nos jardins, o papa se virava para mim e perguntava: "Teve alguma
notícia do senhor -e dizia o sobrenome-, de quem você me falou?". Em
alguns casos, infelizmente, eu tive que dizer que a pessoa tinha
falecido, e sempre me emocionava porque o Santo Padre se recolhia e
recitava o “Descansem em paz”. E ele me convidava a rezar também. O
papa, que tinha mil coisas, mil pensamentos, considerava a sua oração
pelos enfermos como um ministério pastoral importantíssimo. Eu deixava
no genuflexório dele os papéis com os nomes das pessoas que tinham
pedido orações. O genuflexório tinha uma espécie de caixinha. Eu sei que
ele os folheava frequentemente. Eles ficavam lá e eu nunca os retirava
até que ele me dissesse.
Já está próxima a canonização de João Paulo II. Bento XVI costumava recordar o papa antecessor?
Sim, claro. Ele o chamava de “o papa”. Quando ele dizia “o papa”, no
começo, eu não entendia. Ele se considerava alguém que estava
colaborando com o papa. Eu acho que ele serviu fielmente ao papa não só
porque sabia o que significa teologicamente "o Sucessor de Pedro", mas
também por causa da veneração particularíssima pelo papa, que ele tinha
aprendido no ambiente religioso da Baviera. Neste sentido, para ele,
servir ao papa foi um grande presente.
Da sua posição, como você via essa relação de amizade entre João Paulo II e o cardeal Ratzinger?
Eu participei só uma vez nas reuniões que o cardeal Ratzinger teve
com João Paulo II, precisamente na sessão plenária da Congregação para a
Doutrina da Fé, da qual ele era prefeito. Eu só posso confirmar o que
já era conhecido de todos, ou seja, que João Paulo II tinha uma
confiança grandíssima no cardeal Ratzinger, recorria a ele para pedir
pareceres e também para planear ou corrigir documentos importantes. O
próprio fato de que João Paulo II não aceitou, por diversas vezes, os
pedidos de renúncia do cardeal Ratzinger, que já tinha completado 75
anos de idade, quer dizer que ele não queria perder um homem de
confiança, um colaborador tão importante. Aqui eu vejo mais um aspecto
da santidade de João Paulo II, a sua grande visão. Ele enxergava muito à
frente e, talvez, previa que o cardeal Ratzinger seria o seu sucessor.
Como vocês viveram a beatificação de João Paulo II?
O papa Bento estava muito feliz. Podíamos ver isso também na missa,
no jeito que ele fez a homilia e no modo como ele pronunciou a frase
"Agora ele é beato!". Bastaria rever o vídeo dessa pequena parte para
ver o quanto ele estava feliz!
Monsenhor Alfred Xuereb nasceu em Malta em 1958. Seu serviço à Santa
Sé começou sob o pontificado de João Paulo II, em 2001, na Primeira Secção da Secretaria de Estado. Mais tarde, ele se tornou colaborador de
dom James Harvey na Prefeitura da Casa Pontifícia. Em Setembro de 2003,
assumiu a função de prelado de antecâmara pontifícia, ou seja, o cargo
responsável pela apresentação ao papa dos convidados recebidos em
audiências privadas no Palácio Apostólico. Neste período, mons. Alfred
Xuereb teve a oportunidade de conhecer João Paulo II mais de perto. A
partir de Setembro de 2007, ele desempenhou ao lado de mons. Georg
Gänswein a função de segundo secretário de Bento XVI. Antes dele, o
cargo era do polaco Mieczysław Mokrzycki, agora arcebispo de Lviv, na
Ucrânia. Após a eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio ao trono de
Pedro, ele se tornou o primeiro secretário particular do papa Francisco.
Esta entrevista foi originalmente publicada em polaco no blog católico Stacja 7 (www.stacja7.pl).
(28 de Fevereiro de 2014) © Innovative Media Inc.
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