1. Ler e escutar
Infelizmente ainda temos muitos analfabetos, não apenas da escrita, mas sobretudo da vida. Mesmo na escrita quase todos nós vemos e lemos, mas não o que importa para a nossa vida e muita coisa não entendemos, porque não sabemos escutar, ouvir com atenção, gostando de quem nos escreve e fala, simpatizando com o nosso interlocutor, amando o que nos diz e sobretudo quem nos diz. Na multiplicidade dos interlocutores e das mensagens também é difícil discernir a quem devemos prestar atenção. Por isso gostaria de partilhar alguns pensamentos sobre o nosso modo de leitura, tomando como livro aquele que desde há milhares de anos ajudou milhões, digo, biliões de pessoas de todas as línguas e em todo o mundo a descobrir o essencial da vida, levando os leitores a pautá-la por esse livro. Refiro-me à Bíblia, o conjunto de livros inspiradores da vida do povo israelita desde as suas origens até Jesus Cristo e os seus apóstolos, um repositório de sabedoria atribuída a Deus que interpela, orienta e corrige o sentido do caminho histórico desse povo e dos discípulos de Jesus por todo o mundo. Mesmo que tenhamos muitas dúvidas acerca de muitas coisas que lhe são atribuídas ou que foram mal entendidas, há motivo mais que suficiente para lhe prestarmos atenção, tentando ler, escutar, dialogar com ele, compreender a sua mensagem, confrontá-la com a nossa vida e discernir a sua importância para a nossa vida pessoal e comunitária.
Infelizmente ainda temos muitos analfabetos, não apenas da escrita, mas sobretudo da vida. Mesmo na escrita quase todos nós vemos e lemos, mas não o que importa para a nossa vida e muita coisa não entendemos, porque não sabemos escutar, ouvir com atenção, gostando de quem nos escreve e fala, simpatizando com o nosso interlocutor, amando o que nos diz e sobretudo quem nos diz. Na multiplicidade dos interlocutores e das mensagens também é difícil discernir a quem devemos prestar atenção. Por isso gostaria de partilhar alguns pensamentos sobre o nosso modo de leitura, tomando como livro aquele que desde há milhares de anos ajudou milhões, digo, biliões de pessoas de todas as línguas e em todo o mundo a descobrir o essencial da vida, levando os leitores a pautá-la por esse livro. Refiro-me à Bíblia, o conjunto de livros inspiradores da vida do povo israelita desde as suas origens até Jesus Cristo e os seus apóstolos, um repositório de sabedoria atribuída a Deus que interpela, orienta e corrige o sentido do caminho histórico desse povo e dos discípulos de Jesus por todo o mundo. Mesmo que tenhamos muitas dúvidas acerca de muitas coisas que lhe são atribuídas ou que foram mal entendidas, há motivo mais que suficiente para lhe prestarmos atenção, tentando ler, escutar, dialogar com ele, compreender a sua mensagem, confrontá-la com a nossa vida e discernir a sua importância para a nossa vida pessoal e comunitária.
É meu propósito ajudar a ler alguns textos significativos da Bíblia, sobretudo nestas semanas de preparação para a Páscoa, a que os cristãos dão o nome de Quaresma, que começa na quarta-feira a seguir ao dia de Carnaval e se prolonga durante 6 semanas, usando um método de leitura muito praticado na história espiritual dos cristãos desde há dois mil anos e proposto pelos grandes mestres e testemunhas da vida cristã como muito útil para o crescimento na identificação com o ideal cristão, a pessoa de Jesus Cristo. Chama-se método da leitura orante da Bíblia, também conhecido pela expressão latina de lectio divina, e que consta de quatro etapas fundamentais: leitura atenta; reflexão sobre o sentido geral do texto e em particular de algumas palavras e expressões menos compreensíveis à primeira vista; diálogo com o autor invisível do texto, que para os crentes é Deus que interpela o seu povo; e, por fim, tentar ver a nossa vida com os olhos de Deus, ou seja, tornando-a mais coerente e transparente de acordo com o texto lido, reflectido, rezado e aplicado.
2. Obstáculos a uma vida com sentido
Na brevidade desta nota vou tomar um texto proposto pela Igreja para o primeiro domingo da Quaresma, no evangelho de S. Mateus 4, 1-11, sobre os obstáculos que Jesus teve de vencer, para cumprir a sua missão e que os autores dos evangelhos colocam no princípio da sua vida pública, após ter recebido o baptismo de João Baptista. Todo o projecto de vida que não pactua com os parâmetros do ter, do poder ou da vaidade humana tem de superar muitas tentações, de que as de Jesus são modelo.
Limito-me a enunciá-las, com uma breve alusão às nossas, no caso de optarmos por uma vida em prol dos outros, sobretudo dos pobres, e procurarmos ser transparentes e coerentes, numa fidelidade incondicional ao amor compassivo e misericordioso, mesmo em relação com os que nos rejeitam.
Em primeiro lugar, perante a fome e a penúria, Jesus recusa usar o seu poder para satisfazer as suas necessidades materiais, respondendo com a afirmação de que nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Quer isto dizer que Jesus não apenas proclamou as bem-aventuranças, mas viveu-as. O ter bens materiais não foi a sua finalidade de vida. Por isso proclamou: felizes os pobres porque é deles o Reino dos céus.
E nós, como reagimos perante as nossas penúrias e sobretudo as dos pobres? Usamos todos os meios, até a violência, para ter mais, mesmo à custa dos outros, dos que são ainda mais pobres do que nós? Ao denunciarmos as desigualdades pensamos apenas em nós mesmos? Onde vamos buscar as energias para nos mantermos fiéis aos valores em que acreditamos? Será possível ser feliz no desprendimento e na pobreza?
Uma segunda tentação de Jesus foi a da temeridade e vanglória: Se és Filho de Deus, lança-te do alto desta muralha, pois Deus não vai permitir que te magoes... Ao que Jesus responde com a afirmação da sua confiança em Deus, não nas suas próprias forças e habilidades, mas sem o atrevimento de exigir que Deus use o seu poder para as nossas loucuras e ambições. Por isso Jesus reafirma a sua fidelidade ao seu projecto de desprendimento de todo o poder, para ser em tudo igual a nós, com as palavras: Não tentarás o Senhor teu Deus. Preferiu gloriar-se nas suas fraquezas, na loucura da cruz, como o fará e escreverá S. Paulo na carta aos Coríntios.
Muitas vezes vivemos como se Deus não existisse, mas perante alguns desafios com que somos confrontados, nas crises, na doença, nas guerras, ficamos escandalizados por Deus não intervir. Onde estava Deus perante o holocausto do povo judeu pelos nazistas, assim pergunta o escritor Erich Wesel. E onde está Deus nos nossos comportamentos, nas nossas escolas, nas famílias, na sociedade, nos tempos de crise, assim perguntou a filha de Billy Graham a uma entrevistadora na TV dos Estados Unidos da América do Norte, que desafiava a sua fé em Deus perante o terrorismo, sobretudo o ataque às torres gémeas de Nova Iorque. Só nos lembramos de Deus nas nossas impotências ou procuramos escutar e seguir a sua Palavra?
Por fim, Jesus resiste à tentação do domínio político sacrificando todos os valores pelos quais se fez homem: a verdade da criação, o amor incondicional de Deus pelas suas criaturas, a justiça, a misericórdia, o perdão, o serviço e a fidelidade até ao dom da vida, fidelidade essa que lhe custaria a vida, como veremos ao longo de toda a sua vida pública, que nesta Quaresma queremos tornar presente nas nossas leituras, reflexões, celebrações e propostas de seguimento no tempo actual. Por isso Jesus reafirma que só a Deus devemos adorar e prestar culto.
E nós, pessoalmente, nas nossas famílias, nas escolas, na sociedade, nas empresas, na economia, na política, que valores transcendentes proclamamos e procuramos implementar? A mentira, a injustiça, a corrupção, a doutrina maquiavélica de que os fins justificam os meios, por mais falsos e injustos que sejam, parecem reinar nos projectos pessoais, familiares, comunitários, culturais, laborais, empresariais, financeiros e políticos, a nível de Portugal, da Europa e das relações intercontinentais.
Perante esta leitura actualizada da Bíblia, sobretudo do trecho que é proclamado nas missas do primeiro domingo da Quaresma sentimos a força e actualidade profética destes escritos antigos. Ao constatar a força das tentações e obstáculos que sente quem deseja ter um projecto de vida de acordo com o proposto pela Bíblia e vivido por Jesus, constatamos a nossa debilidade e fragilidade. Mas, ao mesmo tempo, vemos que é possível. Não apenas porque Jesus o viveu, mas muitos depois dele também, fascinados por Ele e confiantes no poder de Deus através da sua Palavra, do apoio da comunidade crente na Igreja, da oração e da própria vida orientada para o serviço, o amor, a ajuda a quem precisa do nosso testemunho de fé, de confiança, de alegria, de generosidade, de compromisso com a verdade, a justiça, a solidariedade. Faz-nos bem reler, tentar compreender, meditar e aplicar estes textos sagrados. Façamo-lo de modo especial durante esta Quaresma.
† António Vitalino, Bispo de Beja
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