Trecho da entrevista que o Papa Francisco concedeu à Civilta Cattolica, publicado pelas revistas dos Jesuítas semana passada.
Brasília, 23 de Setembro de 2013
Depois de uma semana de distorções das palavras do Papa
Francisco na grande media, merecendo os mais disparates comentários e
reflexões, parece ser que já chegou a hora de ler o que realmente o Papa
Francisco falou sobre os temas “homossexualidade e aborto” na
entrevista que concedeu ao Pe. Antonio Spadaro, SJ, diretor da revista
Civilta Cattolica, semana passada.
Para o leitor atento, não deixou de surpreender que em uma
entrevista de 6 horas de duração, com 27 páginas, com quase 11 mil
palavras, somente 67 palavras do Papa tenham sido tomadas pela imprensa
internacional, tiradas totalmente do seu contexto, e causado certo
desconforto e desconfiança com relação ao Pontífice.
Já sabemos que não é de hoje que isso acontece com as palavras de um
Papa, porém, fica difícil, com essa prática jornalística tendenciosa,
saber o que realmente o Santo Padre disse ou não disse.
Fazer, por si mesmo, uma leitura pausada, se possível em voz alta, e
sublinhando as partes essenciais desse trecho abaixo da entrevista - se
possível ler toda a entrevista - parece ser um exercício um tanto quanto
necessário nesse momento. Assim fazendo, poder-se-á notar a infinita
distância entre o que o Papa disse e o que dizem que ele disse.
O texto completo da entrevista encontra-se oficialmente nas revistas dos jesuítas. Em português pode ser lido clicando aqui.
***
A Igreja? Um hospital de campanha...
O Papa Bento XVI, ao anunciar a sua renúncia ao Pontificado, retratou
o mundo de hoje como sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões
de grande relevância para a vida da fé, que requerem vigor, seja do
corpo, seja da alma. Pergunto ao Papa, também à luz daquilo que acabou
de me dizer: «De que é que a Igreja tem maior necessidade neste momento
histórico? São necessárias reformas? Quais são os seus desejos para a
Igreja dos próximos anos? Que Igreja “sonha”?»
O Papa Francisco, tomando o incipit da minha pergunta, começa por
dizer: «O Papa Bento teve um acto de santidade, de grandeza, de
humildade. É um homem de Deus», demonstrando um grande afecto e uma
enorme estima pelo seu predecessor.
«Vejo com clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais
precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração
dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha
depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o
colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois
podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é
necessário começar de baixo».
A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos
preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro anúncio: “Jesus
Cristo salvou-te”. E os ministros da Igreja devem ser, acima de tudo,
ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo, corre sempre o
risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos
dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu
cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o
mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente “isto não é
pecado” ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser acompanhadas, as
feridas têm de ser curadas».
«Como estamos a tratar o povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e
Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu
cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa,
levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o
pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é,
vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do
Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de
caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas
noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e
não funcionários ou clérigos de Estado. Os bispos, em particular, devem
ser capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo, de
tal modo que ninguém fique para trás, mas também para acompanhar o
rebanho que tem o faro para encontrar novos caminhos».
«Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas
abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos,
que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a
frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou
fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e
avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia,
coragem».
Reflicto naquilo que o Papa está a dizer e refiro o facto que existem
cristãos que vivem em situações não regulares para a Igreja ou, de
qualquer modo, em situações complexas, cristãos que, de um modo ou de
outro, vivem feridas abertas. Penso nos divorciados recasados, casais
homossexuais, outras situações difíceis. Como fazer uma pastoral
missionária nestes casos? Em que insistir? O Papa faz sinal de ter
compreendido o que pretendo dizer e responde.
«Devemos anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa
nova do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de
doença e de ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas
homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como
a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto. Durante o
voo de regresso do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é
de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para
julgá-la. Dizendo isso, eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião
tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas,
mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida
pessoal não é possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório,
perguntou-me se aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com
uma outra pergunta: “Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa
homossexual, aprova a sua existência com afecto ou rejeita-a,
condenando-a?” É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no
mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos
acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhar com
misericórdia. Quando isto acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote
a dizer a coisa mais apropriada».
«Esta é também a grandeza da confissão: o facto de avaliar caso a
caso e de poder discernir qual é a melhor coisa a fazer por uma pessoa
que procura Deus e a sua graça. O confessionário não é uma sala de
tortura, mas lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a
fazer o melhor que pudermos. Penso também na situação de uma mulher que
carregou consigo um matrimónio fracassado, no qual chegou a abortar.
Depois esta mulher voltou a casar e agora está serena, com cinco filhos.
O aborto pesa-lhe muito e está sinceramente arrependida. Gostaria de
avançar na vida cristã. O que faz o confessor?»
«Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao
casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é
possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas
quando se fala disto, é necessário falar num contexto. De resto, o
parecer da Igreja é conhecido e eu sou filho da Igreja, mas não é
necessário falar disso continuamente».
«Os ensinamentos, tanto dogmáticos como morais, não são todos
equivalentes. Uma pastoral missionária não está obcecada pela
transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor
insistentemente. O anúncio de carácter missionário concentra-se no
essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai,
aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos,
pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício
moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de
perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve
ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois
as consequências morais».
«Digo isto também pensando na pregação e nos conteúdos da nossa
pregação. Uma bela homilia, uma verdadeira homilia, deve começar com o
primeiro anúncio, com o anúncio da salvação. Não há nada de mais sólido,
profundo e seguro do que este anúncio. Depois deve fazer-se uma
catequese. Assim, pode tirar-se também uma consequência moral. Mas o
anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa.
Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa. A homilia é a
pedra de comparação para calibrar a proximidade e a capacidade de
encontro de um pastor com o seu povo, porque quem prega deve reconhecer o
coração da sua comunidade para procurar onde está vivo e ardente o
desejo de Deus. A mensagem evangélica não pode limitar-se, portanto,
apenas a alguns dos seus aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não
manifestam o coração do ensinamento de Jesus.»
in
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