É papel dos cristãos na sociedade lembrar que a verdade provém do amor e se dirige ao amor.
Roma, 16 de Setembro de 2013
No dia onze de Setembro de 2013 ocorreu algo extraordinário:
o Papa Francisco escreveu uma longa carta a Eugenio Scalfari, fundador
do jornal La Repubblica, para responder a uma série de perguntas levantadas por ele ao final da leitura de Lumen Fidei[i].
Scalfari colocou diversas questões interessantes, tendo como centro o
problema da verdade. Num artigo de sete de Julho ele perguntou: existe
uma única verdade ou tantas quanto são os indivíduos e as que podem ser
formadas pela mente humana?[ii] E em sete de Agosto a
interrogação foi ainda mais audaz: disse que quem crê em Deus aceita uma
verdade revelada e quem não crê pensa que não existe nenhum absoluto e
nenhuma verdade absoluta, mas apenas uma série de verdades relativas e subjectivas; a dita posição de quem não tem fé seria um erro ou um pecado
para a Igreja?[iii]
Dessas questões pode-se perceber certo tipo de relativismo difuso
na nossa cultura. O relativismo é um estranho modo de pensar no qual
tudo pode ser considerado igualmente verdadeiro ou igualmente falso.
Cede-se ao relativismo quando se atribui um valor exagerado à verdade, a
ponto de se dizer que toda afirmação possa ser verdadeira (inclusive as
contraditórias), ou quando se nega todo o valor da verdade. No último
caso, nega-se o valor de verdade de toda afirmação, tomando como verdade
absoluta a afirmação do mesmo relativismo. Frequentemente essa
contradição se une a outra: se nega a existência da verdade e se toma
como coisa absolutamente certa a inexistência de Deus e de regras
morais. Logicamente o relativismo e o ateísmo são contraditórios entre
si, mas há quem se esforce muito em defender esses dois modos de pensar,
pagando o preço de se defender doutrinas insustentáveis pela razão
humana[iv].
A resposta do Papa é clara e surpreendente. Diz que não é correto falar de “verdade absoluta”, pois ab-solutus provém do latim e significa o que é solto de,
desconexo, separado, privado de qualquer relação. Sendo assim, para a
fé cristã a verdade não poderia jamais ser absoluta, uma vez que a
verdade é principalmente uma relação de amor em Deus e de amor para com
as criaturas. A verdade é uma relação, é o amor que une as coisas a Deus
e constitui o princípio e o fim da criação. De fato, Deus pensou cada
ser amando-o, e livremente o criou para que pudesse corresponder ao seu
amor. Cada realidade é verdadeira porque está intrinsecamente
configurada pelo amor e pela inteligência divina.
Para o Papa, é certo que cada um acolhe a verdade e a exprime. Nesse
sentido, a verdade é múltipla, uma vez que está em cada mente que a
conhece e cada um pode expressá-la de modo próprio. A verdade então é
múltipla quando é expressa por diversos indivíduos e de diversos modos. O
Papa esclarece que isso não significa afirmar o relativismo, pois dizer
que a verdade não é absoluta não implica que ela seja sempre
“variável ou subjectiva”, ou seja, que tudo possa ser igualmente
verdadeiro ou igualmente falso. A verdade é algo que nos é dado com o
ser de cada realidade e se apresenta a nós como caminho e vida. Para a
fé cristã, portanto, verdade é uma coisa só com o amor e requer
humildade para ser reconhecida, buscada, acolhida e expressada.
Talvez alguém possa pensar que essas afirmações do Papa sejam
revolucionárias, assim como considerou Scalfari na sua resposta ao Papa[v].
Mas se olhamos para a história do pensamento cristão, vemos que isso é
impreciso. Santo Tomás de Aquino, por exemplo, diz algo bem parecido: a
verdade divina é única[vi]. Deus pensa a si mesmo desde toda a
eternidade e ao conhecer-se, conhece e ama perfeitamente sua essência e
com ela todas as demais coisas, possíveis ou reais. E o concebido pelo
pensamento divino é o Filho, Logos (ou Verbo) eterno do Pai.
Por isso em Deus a verdade divina é uma relação de processão: o Filho
procede do Pai desde toda a eternidade. E o amor divino é o Espírito
Santo, pelo qual Deus ama e cria todas as coisas. O Espírito Santo é o
amor que une o Pai e o Filho e é a razão última de todas as coisas:
todas existem porque foram amadas e pensadas por Deus.
Tomás afirma também que nas criaturas a verdade é múltipla, pois há
diversas verdades em diversas mentes e de cada realidade pode-se
formular diversos juízos verdadeiros. Cada realidade natural possui
assim uma verdade intrínseca, que é uma imitação das ideias presentes na
mente divina. As verdades intrínsecas das coisas são em certo modo
inesgotáveis, e o conhecimento humano delas é sempre progressivo. Tomás
chegou a afirmar que até o seu tempo nenhum filósofo tinha conseguido
apreender e explicar totalmente nem mesmo a essência de uma mosca[vii].
E até hoje, por incrível que pareça, nenhuma ciência esgotou o
conhecimento do seu objecto. Cada realidade possui, portanto, uma verdade
intrínseca, à qual imita e participa na verdade divina, a qual o
conhecimento deve se adequar.
Desse modo, Santo Tomás provavelmente responderia à primeira pergunta
de E. Scalfari dizendo que há uma só verdade na mente divina, a qual só
é acessível a Deus mesmo. Nas realidades naturais e no conhecimento
humano a verdade é sempre parcial, progressiva, relativa, ou melhor
dizendo, relacional: se refere a cada realidade criada e a cada
intelecto que a apreende através de diversos actos intelectuais. Isso não
implica nenhum relativismo, mas a justa compreensão do carácter
relacional da verdade[viii].
E pensar que “não há nada de absoluto”, mas que a “verdade é sempre
relativa e subjectiva” seria um pecado ou erro para a Igreja? A isso
Tomás provavelmente responderia que há certamente um erro, não de fé,
mas sim de razão natural: significa tomar por verdade absoluta o fato de
que não existem verdades absolutas e que tudo é relativo e subjectivo. O
nome desse erro se chama contradição, e não pecado. De fato, é
evidentemente contraditório tomar por certo a afirmação de que não
existe nada de universal e afirmar que algo de universal (os juízos
humanos) seja relativo.
Portanto o Papa, ao dizer que não há verdade absoluta, desprovida de
relação, não disse nada de revolucionário, nem de dogmático, mas algo
que está ao alcance de todo pensamento recto que afirma a evidência do carácter relacional da verdade. A verdade diz sempre respeito a uma
relação entre o conhecido e quem o conhece. E é papel dos cristãos na
sociedade lembrar que a verdade provém do amor e se dirige ao amor. Ao
conhecer a verdade nos abrimos à riqueza do real e aprendemos a amá-lo,
amando também o seu Criador.
[i] Cfr. http://www.zenit.org/pt/articles/carta-do-papa-francisco-ao-fundador-do-jornal-la-repubblica-na-integra
[ii] Cfr. http://www.repubblica.it/politica/2013/07/07/news/le_risposte_che_i_due_papi_non_danno-62537752/?ref=HREA-1
[iii] Cfr. http://www.repubblica.it/politica/2013/08/07/news/le_domande_di_un_non_credente_al_papa_gesuita_chiamato_francesco-64398349/?ref=HREA-1
[iv] Sobre a contradição de relativismo e relativismo cfr. http://www.zenit.org/pt/articles/o-ateismo-e-uma-escolha-racional Cfr. também: http://www.zenit.org/pt/articles/e-possivel-um-relativismo-absoluto
[v] Cfr. http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2013/09/12/il-coraggio-di-papa-francesco-che-apre.html?ref=search
[vi] Santo Tomás não usa a expressão “verdade absoluta”, mas
sim verdade primeira, verdade divina, verdade presente no intelecto
divino. Cfr. Santo Tomás de Aquino, De Veritate, q. 1, a. 4.
[vii] Cfr. Idem, Super Sym. Ap., proemio.
[viii] Expomos o tema em: http://www.zenit.org/pt/articles/o-relativismo-relativo-ou-a-justa-relatividade-da-verdade E em: http://www.zenit.org/pt/articles/relativismo-absoluto-ou-absolutismo-relativista
in
Sem comentários:
Enviar um comentário