A aprovação da lei da eutanásia ficou esta sexta-feira consumada no Parlamento. Marcelo pode promulgar, enviar para o Tribunal Constitucional ou vetar – neste caso, bastará aos deputados repetir a aprovação. Os bispos católicos reagiram.
Alberto Baumann, “Eutanasia of the Dream” (Eutanásia do Sonho), 1984, técnica mista sobre tela.
A Assembleia da República aprovou nesta tarde de sexta-feira a lei que legaliza a morte medicamente assistida, com 136 votos a favor e 78 votos contra. A votação teve mais oito votos favoráveis do que o projecto do PS que, no ano passado, foi o mais votado com 128 votos. No caso de um eventual veto do Presidente à lei, os deputados terão de aprovar de novo a lei – o que, com o resultado agora obtido, está garantido que aconteça.
A nova lei define como “eutanásia não punível a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja actual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.”
Segundo a nova lei, a eutanásia pode ser solicitada por cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional. O articulado também prevê que a objecção de consciência possa “ser invocada a todo o tempo e não carece de fundamentação”, como prevê o diploma aprovado.
O pedido deve ser feito por três vezes e deve incluir os pareceres do médico orientador e de um especialista da patologia de que sofra o doente, bem como de um psiquiatra, se houver dúvidas sobre a “vontade séria, livre e esclarecida” do doente ou sobre alguma eventual perturbação de que padeça. Mas o processo pode ser anulado em qualquer fase, a pedido do doente, se este ficar inconsciente ou sempre que haja um parecer negativo. Ao mesmo tempo, a eutanásia não é motivo para exclusão da pessoa de seguro de vida, mas o segurado não pode alterar os beneficiários depois de ter começado o processo da eutanásia – nem pode beneficiar dele os profissionais que participem no acto.
Entre as primeiras reacções, o conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) exprimiu a sua “tristeza e indignação”, acrescidas “pelo facto de se legalizar uma forma de morte provocada no momento do maior agravamento de uma pandemia mortífera, em que todos queremos empenhar-nos em salvar o maior número de vidas, para tal aceitando restrições da liberdade e sacrifícios económicos sem paralelo”.
Os bispos recordam que a lei agora aprovada pode ainda “ser sujeita a fiscalização da constitucionalidade” mas não fazem nenhum apelo directo ao Presidente para que vete a lei.
Ao contrário do argumento dos defensores da morte medicamente assistida, segundo os quais pode haver pessoas que, em situações limite de sofrimento, podem pedir para morrer e que isso não deve penalizar quem os ajuda, os bispos afirmam que não podem “aceitar que a morte provocada seja resposta à doença e ao sofrimento”, pois isso “é desistir de combater e aliviar o sofrimento”.
Esta lei traduz um “retrocesso cultural sem precedentes” e devia antes proteger-se a vida, “sobretudo quando ela é mais frágil, por todos os meios e, nomeadamente pelo acesso aos cuidados paliativos, de que a maioria da população portuguesa está ainda privada”, conclui o conselho permanente da CEP.
Concordâncias e dissidências cristãs
Representantes de várias confissões religiosas em Portugal, em 2018, depois da assinatura de uma posição conjunta contra a eutanásia. Foto © Ecclesia
No campo cristão, nem todas as vozes pensam o mesmo. Além de ter havido católicos que vieram publicamente defender a lei (o 7MARGENS publicou também, em 2019, vários textos reflectindo diferentes opiniões de crentes, durante o debate parlamentar – bastará colocar, na lupa de pesquisa, a palavra eutanásia, para poder aceder a todos os artigos publicados sobre o tema) o Conselho Português de Igrejas Cristãs (que reúne lusitanos/anglicanos, metodistas e presbiterianos), remeteu a sua posição sobre a nova lei para a declaração que publicou há três anos, quando se iniciou o debate sobre a proposta de legislar o tema.
O Copic considerava, nessa declaração já referida pelo 7MARGENS, que “a vida humana, mesmo a mais debilitada, possui um valor intrínseco e que a sua dignidade escapa a qualquer tipo de avaliação”, mas, ao mesmo tempo, admite “as interrogações dos nossos contemporâneos que (…) hesitam em considerar a obstinação terapêutica e o sofrimento insuportável de alguns doentes em fase terminal como admissíveis.”
A posição do Conselho de Igrejas “não é tanto afirmar um acordo ou um desacordo de princípio, mas sim a de que os cristãos devem envolver-se num diálogo aberto para que seja possível encontrar caminhos que respeitem a diversidade de convicções sobre este assunto cujo consenso está longe de existir” e que todos os cristãos devem empenhar-se em conseguir “uma sociedade mais misericordiosa e compassiva e mais capaz de agir na defesa dos mais frágeis e dos que sofrem”.
Também há três anos, oito confissões religiosas, incluindo a Conferência Episcopal em nome da Igreja Católica, publicaram uma declaração recusando a possibilidade legal da eutanásia e do suicídio medicamente assistido.
Politicamente, a votação final da lei também manifestou divisões: nem toda a esquerda votou a favor, nem toda a direita votou contra. Pronunciaram-se a favor da lei 136 deputados (a maioria dos do PS, 14 do PSD, e todos os do Bloco de Esquerda, PAN, PEV, e as deputadas não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues). Do lado oposto, contra a lei, esteve a maioria do PSD (55, incluindo Rui Rio e praticamente toda a sua liderança), nove deputados do PS, e ainda o PCP, CDS e os deputados solitários da Iniciativa Liberal e Chega. Registaram-se quatro abstenções – duas do PS e duas do PSD (a lista completa dos deputados que votaram diferente da maioria da sua bancada foi publicada na Família Cristã).
E agora, Presidente (ou Constitucional)?
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa cerimónia pública: a lei aprovada passará, na próxima semana, para as suas mãos. Foto: Direitos reservados
No debate prévio à votação, os partidos resumiram argumentos já referidos durante o debate: Isabel Moreira (PS) diz que a nova lei “acolhe as escolhas de cada pessoa” em vez de “perseguir alguns”. José Manuel Pureza (BE) advoga a justeza e bondade da lei e diz que ela combina “arrojo com prudência”. José Luís Ferreira, também diz que ela é “sensata e justa”, mas contesta o facto de ela permitir que a eutanásia seja praticada nos hospitais privados, para impedir que ela se torne “um negócio”.
O CDS pondera remeter a lei para o Tribunal Constitucional (nesse caso, a fiscalização sucessiva será mais demorada do que se for o Presidente a enviar), pois considera-a “uma derrota para todos”, como disse Telmo Correia. E António Filipe (PCP) diz que compreende o sofrimento de pessoas com doença terminal, mas o que esta lei consagra “é uma mensagem do legislador para a sociedade”, que arrisca banalizar “o recurso à eutanásia”.
A votação desta sexta-feira já tinha sido precedida por uma intensa campanha das mais variadas organizações católicas e “pró-vida” nas redes sociais a favor da rejeição do projeto de Lei. “Apelamos uma última vez aos deputados para que revejam a sua posição no momento de votar a lei em plenário”, lia-se, por exemplo, num manifesto subscrito pela Cáritas, União das Misericórdias, Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade Social, Universidade Católica e Casa do Gaiato de Lisboa, entre outras. No mesmo manifesto, as organizações divulgavam a sua intenção de, caso a lei fosse aprovada, apelar ao Presidente da República “para que faça o que estiver ao seu alcance para travar a legalização da eutanásia em Portugal.”
Marcelo Rebelo de Sousa pode enviar a lei para o Tribunal Constitucional, até oito dias depois de a receber, suscitando a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, de acordo com o artigo 136º da Constituição. Se não o fizer, terá de promulgar a lei ou exercer o seu direito de veto. Nesse caso, segundo o mesmo artigo da Lei fundamental, bastará ao Parlamento repetir a votação.
Recorde-se que o jurista Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica, defende de há muito que o Presidente da República, caso não queira vetar politicamente a lei, pode, fundamentando-se no princípio da “inviolabilidade da vida humana”, submetê-la ao parecer do Tribunal Constitucional.