O gramado
serenado encharcou meus desgastados sapatos naquela manhã gelada, daquelas que
nos remetem à infância, a caminho do Ginásio São João Batista. Pão com mel,
café com leite, bem quente, e nos fazíamos à rua. Quando chovia, lá nos íamos
de galocha, gabardine e guarda-chuva. Os sapatos de então eram pouco imunes à
água e horas depois eram colocados perto do fogão a lenha ou forrados com
jornal dobrado para absorção da umidade. Os de hoje são mais protegidos, mas em
compensação duram menos e não há sapateiro que os conserte. Aliás, sapateiros
são uma classe em extinção.
Horas depois
estávamos na capital, cada qual na direção de seu interesse. Estacionei o carro
e me dirigi ao sebo habitual. No caminho assisti uma cena com a melancolia da
chuva no campo. Penso que eram mãe e filha. Depois de vencerem pequeno aclive,
estancaram a pedido da mais velha. Encostou-se na fachada da Bibliotheca
Publica para retomar o fôlego. Seu rosto estava muito pálido, como a prenunciar
uma insuficiência grave. A velhice tem seus castigos, o tempo é pelourinho e o
frio piora tudo: adensa o sangue e antecipa o fim dos que têm veias
esclerosadas.
Frias eram as
madrugadas no internato, com camas dispostas num imenso salão, debaixo de
cobertores pobres. Sei bem o que significa a expressão “cobertor curto” e conheço a ineficiência de um cobertor ralo. O
internato na escola em que estudei por sete anos já não existe porque sob
certos aspectos foi considerado desumano. Não chegaria a tanto, mas não era
nada fácil viver sob a disciplina castrense num grupo muito heterogêneo. Na
atualidade subo a Caxias do Sul uma vez por semana e por vezes passo na frente
do Ginásio do Carmo, onde meu pai foi interno, lá pelos anos trinta. Gostava de
lembrar daquele tempo, da neve que conhecera e da educação Lassalista, que
aproveitou enquanto seu pai pôde custear a educação de seus dois varões.
Cumpriam o trajeto Montenegro-Caxias do Sul por trem, com baixa frequência, o
que nos legou algumas cartas preservadas, que permitem conhecer melhor meu avô.
São afetuosas, mas não são piegas. Aprecio o estilo, marca de um homem que
ficou órfão de pai muito cedo.
Pois naquela
manhã acima referida encontrei no sebo, entre livros órfãos, o título “La Salle, Patrono do Magistério”, que um
dia ocupou seu lugar numa prateleira da escola mais conhecida como “Pão dos
Pobres”. Onde casualmente atendi, aos onze anos, um curso preparatório para
prestar o concurso de ingresso no Colégio Militar. Curiosas coincidências, que
não passam desapercebidas em minha vida, como sinais sutis dos desígnios na
existência.
Em 1950 o Papa
Pio XII conferiu a La Salle, canonizado por Leão XIII, o título de padroeiro
especial dos professores, lembrando as palavras de São Boaventura: “Verdadeiro mestre é tão somente quem souber
iluminar e enriquecer a mente e infundir a virtude no coração do aluno”. Pio
XII alertava para a dissociação entre o ensino e a formação moral, que
contribuía para “a ruína das almas,
quando se lhe acrescenta o desprezo de Deus e da Religião”.
A obra de La
Salle foi perseguida pelo pensamento da revolução francesa, sendo praticamente
extinta na França. Quando me ocupo da contabilidade da população cristã no
mundo, não há como não pensar nestes episódios, no legado que os adoradores da
razão de todos os tempos nos deixaram, como cupim insaciável que a tudo tenta devorar
nas pradarias do Senhor. O exemplo recente mais triste foi a legalização do
aborto na Argentina. Mais triste ainda foi assistir a comemoração de milhares
de mulheres à frente do parlamento daquele país, onde tanto se chora o
desaparecimento de pessoas na ditadura e agora escuta-se o Réquiem antecipado
de seres humanos com até quatorze semanas. Manhãs frias, filhas de noites
geladas, que ecoam o esquecimento das virtudes vaticinado por Pio XII.
A biografia de La
Salle teve o dom de evocar uma verdade muito pisoteada: a implantação de
escolas pela Igreja. No início do século XII não havia uma cidade na França sem
escola porque “O catolicismo enchera a
Alemanha, como o resto da Europa, de escolas populares”, a ponto de Lutero
afirmar, segundo o biógrafo, que “sem um
milagre de Deus não era possível que delas escapasse uma criança”. Aos que
martelam a arenga da idade das trevas, afirma que “A Idade Média foi, na verdade, a brilhante aurora que precedeu e
possibilitou o raiar do dia deslumbrante do Renascimento”. É um
contraponto, que convida os homens de boa vontade à reflexão.
J. B. Teixeira |
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