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domingo, 7 de abril de 2019

Manhãs frias

O gramado serenado encharcou meus desgastados sapatos naquela manhã gelada, daquelas que nos remetem à infância, a caminho do Ginásio São João Batista. Pão com mel, café com leite, bem quente, e nos fazíamos à rua. Quando chovia, lá nos íamos de galocha, gabardine e guarda-chuva. Os sapatos de então eram pouco imunes à água e horas depois eram colocados perto do fogão a lenha ou forrados com jornal dobrado para absorção da umidade. Os de hoje são mais protegidos, mas em compensação duram menos e não há sapateiro que os conserte. Aliás, sapateiros são uma classe em extinção.

Horas depois estávamos na capital, cada qual na direção de seu interesse. Estacionei o carro e me dirigi ao sebo habitual. No caminho assisti uma cena com a melancolia da chuva no campo. Penso que eram mãe e filha. Depois de vencerem pequeno aclive, estancaram a pedido da mais velha. Encostou-se na fachada da Bibliotheca Publica para retomar o fôlego. Seu rosto estava muito pálido, como a prenunciar uma insuficiência grave. A velhice tem seus castigos, o tempo é pelourinho e o frio piora tudo: adensa o sangue e antecipa o fim dos que têm veias esclerosadas.

Frias eram as madrugadas no internato, com camas dispostas num imenso salão, debaixo de cobertores pobres. Sei bem o que significa a expressão “cobertor curto” e conheço a ineficiência de um cobertor ralo. O internato na escola em que estudei por sete anos já não existe porque sob certos aspectos foi considerado desumano. Não chegaria a tanto, mas não era nada fácil viver sob a disciplina castrense num grupo muito heterogêneo. Na atualidade subo a Caxias do Sul uma vez por semana e por vezes passo na frente do Ginásio do Carmo, onde meu pai foi interno, lá pelos anos trinta. Gostava de lembrar daquele tempo, da neve que conhecera e da educação Lassalista, que aproveitou enquanto seu pai pôde custear a educação de seus dois varões. Cumpriam o trajeto Montenegro-Caxias do Sul por trem, com baixa frequência, o que nos legou algumas cartas preservadas, que permitem conhecer melhor meu avô. São afetuosas, mas não são piegas. Aprecio o estilo, marca de um homem que ficou órfão de pai muito cedo.

Pois naquela manhã acima referida encontrei no sebo, entre livros órfãos, o título “La Salle, Patrono do Magistério”, que um dia ocupou seu lugar numa prateleira da escola mais conhecida como “Pão dos Pobres”. Onde casualmente atendi, aos onze anos, um curso preparatório para prestar o concurso de ingresso no Colégio Militar. Curiosas coincidências, que não passam desapercebidas em minha vida, como sinais sutis dos desígnios na existência.

Em 1950 o Papa Pio XII conferiu a La Salle, canonizado por Leão XIII, o título de padroeiro especial dos professores, lembrando as palavras de São Boaventura: “Verdadeiro mestre é tão somente quem souber iluminar e enriquecer a mente e infundir a virtude no coração do aluno”. Pio XII alertava para a dissociação entre o ensino e a formação moral, que contribuía para “a ruína das almas, quando se lhe acrescenta o desprezo de Deus e da Religião”.

A obra de La Salle foi perseguida pelo pensamento da revolução francesa, sendo praticamente extinta na França. Quando me ocupo da contabilidade da população cristã no mundo, não há como não pensar nestes episódios, no legado que os adoradores da razão de todos os tempos nos deixaram, como cupim insaciável que a tudo tenta devorar nas pradarias do Senhor. O exemplo recente mais triste foi a legalização do aborto na Argentina. Mais triste ainda foi assistir a comemoração de milhares de mulheres à frente do parlamento daquele país, onde tanto se chora o desaparecimento de pessoas na ditadura e agora escuta-se o Réquiem antecipado de seres humanos com até quatorze semanas. Manhãs frias, filhas de noites geladas, que ecoam o esquecimento das virtudes vaticinado por Pio XII.

A biografia de La Salle teve o dom de evocar uma verdade muito pisoteada: a implantação de escolas pela Igreja. No início do século XII não havia uma cidade na França sem escola porque “O catolicismo enchera a Alemanha, como o resto da Europa, de escolas populares”, a ponto de Lutero afirmar, segundo o biógrafo, que “sem um milagre de Deus não era possível que delas escapasse uma criança”. Aos que martelam a arenga da idade das trevas, afirma que “A Idade Média foi, na verdade, a brilhante aurora que precedeu e possibilitou o raiar do dia deslumbrante do Renascimento”. É um contraponto, que convida os homens de boa vontade à reflexão.

J. B. Teixeira



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