Foi uma palmada
bem assentada na coxa que fez Francisco abrir os olhos de espanto e
compreensão. A tia tinha dito por várias vezes que lhe estava a fazer “dói-dói”
quando lhe batia com as suas primeiras botas. Ela sentada no sofá e ele deitado,
com os pés sobre o colo, batendo-lhe; e a palmada... surgiu inesperada. O miúdo
não chorou; a sua expressão dizia tudo: “Ah! Então é isto o “dói-dói”. Nunca
mais foi necessário bater-lhe e o “pequeno” já anda na universidade. Neste
caso, o sentido do tacto, doloroso, fê-lo compreender a atitude da tia; também
ela tinha sentido dor e ele, tão amigo dela, nunca mais a magoou. Do sentido do
tacto, o bebé (pouco mais teria que um ano de idade) deu um salto para o
sentimento já ao nível do espírito, tal como a piedade, a compaixão, a
compreensão.
Agrada-nos pensar que estas palavras –
sentidos e sentimentos – têm o mesmo começo: “senti”, mas não têm o mesmo fim.
Dos sentidos corporais as pessoas podem saltar, graças à sua inteligência, para
os sentimentos espirituais. A este nível superior, a liberdade humana abre-lhes
duas portas: a da compaixão e a da vingança. Os sentimentos podem e devem ser
educados. Francisco, tão pequenino, surpreendeu-se com a novidade do
comportamento da tia. Estava habituado a só receber carinhos dela. A sua
inteligência “falou-lhe” ao coração: decididamente não a queria magoar e
percebeu a justiça do castigo, primeiro queixar-se da dor – algo que ele ainda
não entendia – e depois “explicar” com a palmada. Talvez por isso não chorou.
A linguagem, não apenas a dos idiomas,
abre portas para compreender os outros. “Que pouco sabem aqueles que só sabem o
que se lê nos livros”, disse alguém. De facto, a verdadeira cultura começa
na família, no lar e, mais tarde, no
convívio escolar, universitário, social, etc.. Mas é necessário que se siga o
caminho de Francisco: compreender e seguir pela porta da compreensão, não a da
vingança. É assim que se constrói a paz familiar, entre marido e mulher, entre
irmãos, entre patrões e empregados, entre governantes, entre nações.
Voltemos à expressão “senti” que
podemos ler como “sem ti”. Mas, “Sem ti” a vida perde sentido porque:
Se canto, é para ti; se trabalho, é
para ti; se cultivo a terra para que produza flores e frutos, é para ti; se
estudo e me valorizo, é para ti... Só por ti serei capaz de entregar a minha
vida porque ela ficará mais rica contigo e em Ti.
Sem Ti, deixo de sentir a verdade e o
direito, como Francisco, antes de levar a palmada. Contigo, acompanhando-te na
dor, embora pequena como a de um simples açoite, compreendo-te e compreendo os
outros, como Francisco compreendeu a tia. E só contigo, se me acompanhares,
conseguirei amar ao ponto de ser capaz de perdoar, porque poderei compreender a
força do verdadeiro amor.
Isabel Vasco Costa
Sem comentários:
Enviar um comentário