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domingo, 21 de abril de 2019

Sentidos e Sentimentos

Foi uma palmada bem assentada na coxa que fez Francisco abrir os olhos de espanto e compreensão. A tia tinha dito por várias vezes que lhe estava a fazer “dói-dói” quando lhe batia com as suas primeiras botas. Ela sentada no sofá e ele deitado, com os pés sobre o colo, batendo-lhe; e a palmada... surgiu inesperada. O miúdo não chorou; a sua expressão dizia tudo: “Ah! Então é isto o “dói-dói”. Nunca mais foi necessário bater-lhe e o “pequeno” já anda na universidade. Neste caso, o sentido do tacto, doloroso, fê-lo compreender a atitude da tia; também ela tinha sentido dor e ele, tão amigo dela, nunca mais a magoou. Do sentido do tacto, o bebé (pouco mais teria que um ano de idade) deu um salto para o sentimento já ao nível do espírito, tal como a piedade, a compaixão, a compreensão.

Agrada-nos pensar que estas palavras – sentidos e sentimentos – têm o mesmo começo: “senti”, mas não têm o mesmo fim. Dos sentidos corporais as pessoas podem saltar, graças à sua inteligência, para os sentimentos espirituais. A este nível superior, a liberdade humana abre-lhes duas portas: a da compaixão e a da vingança. Os sentimentos podem e devem ser educados. Francisco, tão pequenino, surpreendeu-se com a novidade do comportamento da tia. Estava habituado a só receber carinhos dela. A sua inteligência “falou-lhe” ao coração: decididamente não a queria magoar e percebeu a justiça do castigo, primeiro queixar-se da dor – algo que ele ainda não entendia – e depois “explicar” com a palmada. Talvez por isso não chorou.

A linguagem, não apenas a dos idiomas, abre portas para compreender os outros. “Que pouco sabem aqueles que só sabem o que se lê nos livros”, disse alguém. De facto, a verdadeira cultura começa na  família, no lar e, mais tarde, no convívio escolar, universitário, social, etc.. Mas é necessário que se siga o caminho de Francisco: compreender e seguir pela porta da compreensão, não a da vingança. É assim que se constrói a paz familiar, entre marido e mulher, entre irmãos, entre patrões e empregados, entre governantes, entre nações.

Voltemos à expressão “senti” que podemos ler como “sem ti”. Mas, “Sem ti” a vida perde sentido porque:

Se canto, é para ti; se trabalho, é para ti; se cultivo a terra para que produza flores e frutos, é para ti; se estudo e me valorizo, é para ti... Só por ti serei capaz de entregar a minha vida porque ela ficará mais rica contigo e em Ti.

Sem Ti, deixo de sentir a verdade e o direito, como Francisco, antes de levar a palmada. Contigo, acompanhando-te na dor, embora pequena como a de um simples açoite, compreendo-te e compreendo os outros, como Francisco compreendeu a tia. E só contigo, se me acompanhares, conseguirei amar ao ponto de ser capaz de perdoar, porque poderei compreender a força do verdadeiro amor.

Isabel Vasco Costa



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