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domingo, 28 de abril de 2019

Nova constituição põe evangelização no centro da acção da Cúria Romana


Após cinco anos de trabalho, a mudança preconizada na nova constituição Praedicate Evangelium assume a evangelização como centro da missão e da vida da Cúria Romana e da Igreja Católica, tomando muitas das intuições, sugestões, reflexões e propostas do Papa nos seus mais importantes documentos. Revista espanhola avançará nesta quinta-feira com mais detalhes.
O Papa Francisco durante uma audiência geral em Dezembro de 2015: o novo documento recuperará o espírito de reforma do Papa Francisco, diz o cardeal Maradiaga. Foto © Lajoumard/WikiMedia Commons
Um novo “super-ministério” para a Evangelização, com mais poder do que a Congregação para a Doutrina da Fé; a Cúria Romana colocada ao serviço quer do Papa quer das igrejas locais, deixando de ser um órgão de poder e tonando-se uma estrutura de serviço; um estatuto dos bispos locais que não ficará mais subalternizado ao dos bispos e cardeais da Cúria; a possibilidade de colocar leigos à frente dos organismos do Vaticano; e a Comissão de Protecção de Menores integrada na estrutura da Cúria Romana, para tornar a sua acção mais eficaz – estes são, em síntese, alguns dos pontos principais da nova constituição apostólica que regulará a organização e o funcionamento da Cúria Romana, e que poderá ser assinada pelo Papa no final de Junho.
Depois de cinco anos de trabalho e 39 reuniões do C-9, o conselho de cardeais criado por Francisco para o aconselhar e trabalhar com ele na minuta da reforma, chega ao fim este processo, que se traduz numa profunda mudança, cujos elementos essenciais são antecipados pela revista espanhola Vida Nueva.
Pelo caminho, o C-9 foi entretanto reduzido para C-6, depois da saída de três membros: Laurent Monsengwo, do Congo, e Javier Errázuriz, do Chile, por limite de idade, ainda que neste último caso, tenham aparecido entretanto também acusações de encobrimento de abusos; e o australiano George Pell condenado por dois casos de abusos sexuais.
A mudança preconizada pelo novo documento revela-se desde logo no título: com a nova constituição Praedicate Evangelium (Anunciai o Evangelho), o Papa Francisco pretende colocar a missão e não a estrutura da Cúria no centro da vida da Igreja Católica. O documento assumirá muitas das intuições, sugestões, reflexões e propostas do Papa no seu texto programático, a exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), publicada em 2013 e que pretendia já colocar a Igreja numa dinâmica evangelizadora.
 “O Papa Francisco sublinha permanentemente que a Igreja é missionária”, confirma o cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga (arcebispo de Tegucigalpa, Honduras), um dos membros do C-6 ouvidos pela Vida Nueva. “Por essa razão, é lógico colocar em primeiro lugar o dicastério para a Evangelização e não o da Doutrina da Fé. Deste modo, o Papa envia um sinal significativo acerca da reforma para todo o Povo de Deus”, acrescenta, citado no Crux, que teve acesso ao texto da Vida Nueva.
O ponto principal da nova constituição apostólica é que a missão da Igreja é a evangelização”, acrescenta ainda o cardeal Oswald Gracias, arcebispo de Bombaim, e outro dos membros do C-6. “Coloca-a no centro da Igreja e de tudo o que a Cúria faz. Será o primeiro dicastério. O título do texto mostra que a a evangelização é o principal objectivo, antes de qualquer outra coisa.”
Essa mesma orientação missionária foi destacada na reunião de há duas semanas como horizonte a assumir pela Cúria, a par do fortalecimento do processo sinodal (de participação) dentro da Igreja Católica e destacando a necessidade de mais mulheres em papéis de liderança.
Nessa perspectiva, o novo dicastério para a Evangelização será o organismo mais importante da nova configuração curial. Reunirá, pelo menos, as competências das actuais estruturas da Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide), criada em 6 de Janeiro de 1622 pelo Papa Gregório XV, e do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, criado por Bento XVI em 21 de Setembro de 2010.
Ramón Llull, Portugal e Espanha na origem
A ideia de um organismo destinado a apoiar o Papa na evangelização foi proposta, pela primeira vez, pelo catalão Ramón Llull, um precursor do diálogo inter-religioso, à volta do ano 1400. Mas foi com a expansão dos Descobrimentos portugueses e espanhóis que a necessidade desse organismo ganhou relevância, com o papado a conceder mesmo vários privilégios aos monarcas portugueses e espanhóis para o apoio à missão de evangelização.
Ilustração representando Ramon Llull, místico e teólogo do século XIII-XIV
A mudança agora prevista será, porventura, uma das mais significativas: de acordo com a anterior constituição apostólica, a Pastor Bonus, publicada por João Paulo II em 1988, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), que tem por missão assegurar a ortodoxia da fé católica, era o organismo mais importante na estrutura da Cúria, a par da Secretaria de Estado, destinada sobretudo a gerir questões políticas e de relações com os estados.
Sucessora do Tribunal da Inquisição, a CDF tem actualmente também como missão as averiguações dos casos de abusos e o seu julgamento, podendo recomendar a retirada do ministério de presbítero a qualquer padre, bispo ou cardeal – como foi o caso do antigo arcebispo de Washington, Theodore McCarrick.
A par dessa alteração de foco, surgem três outras mudanças, que não deixam de acentuar a dinâmica sinodal e colegial pretendida pelo Papa, sendo que duas delas têm a ver com os bispos na relação com a Cúria: os organismos do Vaticano passam a estar também ao serviço das igrejas locais (bispos e conferências episcopais) e deixarão de ter uma tutela de poder sobre os episcopados locais, como até aqui: “Como sucessores dos apóstolos, os bispos não têm uma posição eclesiológica que os coloque abaixo daqueles que trabalham na Cúria Romana”, como acontecia até aqui, diz o cardeal Maradiaga, confirmando que qualquer bispo de qualquer diocese terá o memso poder hierárquico que o prefeito de um organismo do Vaticano – uma revolução de 180 graus na organização hierárquica do catolicismo, que regressa às formas descentralizadas que existiam antes do Concílio de Trento.
Na Praedicate Evangelium passa a prever-se também a possibilidade de haver leigos à frente dos organismos do Vaticano – até agora limitada quase só a estruturas como os museus, os média e pouco mais. Este aspecto “concretiza a luta de Francisco contra o clericalismo”, analisa o jornalista Darío Menor.
Outras novidades previstas são a criação de um Dicastério para a Caridade e a fusão entre aCongregação para a Educação Católica e o Conselho Pontifício para a Cultura. Mas haverá um outro sinal importante: o novo organismo para a Caridade virá logo depois da Secretaria de Estado e do Dicastério para a Evangelização, refere o Crux, lembrando que a caridade é um elemento chave da fé cristã. Esta estrutura passará a administrar todas as doações que o Papa recebe e a superintender também a Administração do Património da Sé Apostólica (APSA).
Estas alterações dão corpo a outras mudanças já postas em marcha, como foi o caso da fusão dos diversos média no Dicastério para as Comunicações e de vários conselhos pontifícios no Dicastério para Leigos, Família e Vida e Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral (dedicado a questões sociais e políticas, como o desenvolvimento, a paz e a justiça).

O que se segue
Capa da edição da revista espanhola Vida Nueva, que irá para as bancas nesta quinta-feira, 25, onde se desenvolve o tema da reforma da Cúria Romana.
Vida Nueva publicará, já nesta quinta-feira, várias páginas resumindo de forma mais alargada o conteúdo da nova constituição, aprovada na reunião do C-6 de 8-10 de Abril, e na qual estiveram presentes todos os seus actuais membros: Pietro Parolin, secretário de Estado, Óscar Rodríguez Maradiaga, de Tegucigalpa (Honduras), Reinhard Marx (Munique, Alemanha) Seán Patrick O’Malley (Boston, EUA), Giuseppe Bertello (governador da Cidade do Vaticano) e Oswald Gracias (Bombaim, Índia).
O texto, já numa forma quase final, foi entretanto enviado a todos os organismos da Cúria Romana e às conferências episcopais do mundo inteiro, de modo a que possam ainda ser feitas sugestões de correcção. Não havendo atrasos, o Papa poderá assinar o documento a 29 de Junho, festa litúrgica de São Pedro e São Paulo e a data de celebração por excelência ligada ao papado. Dias antes, entre 25 e 27, o C-6 reunirá pela quadragésima vez, para dar ao texto os retoques finais.
Por ocasião da última reunião do C-6, o director interino da Sala de Imprensa do Vaticano, Alessandro Gisotti, confirmou que o documento foi também colocado à consulta dos sínodos das Igrejas Orientais, dos diferentes organismos da Cúria vaticana, das conferências de superiores e superioras de congregações religiosas e de algumas universidades pontifícias. 
A própria continuidade do C-6 ou de algum organismo equivalente estará prevista também na Praedicate Evangelium, que adianta ainda o fim da diferença “hierárquica” entre as congregações (mais importantes) e os conselhos pontifícios, passando todos os organismos a ter o nome de dicastérios. A Vida Nueva diz ainda que um dos membros do C-6 aponta para um horizonte de pelo menos 25 anos de vigência da nova constituição, que considera como fruto do equilíbrio entre as metas estabelecidas no início do pontificado de Francisco e a actual realidade no Vaticano e na Igreja universal.
No Crux, o cardeal Maradiaga diz que a Praedicate Evangelium pode devolver aos crentes a esperança que o pontificado de Francisco gerou no início: o documento dá “ao povo de Deus uma nova e corajosa perspectiva da reforma no espírito de Francisco”, diz, confirmando a inspiração que repousa sobre os grandes textos do pontificado, como a Evangelii Gaudium, a encíclica Laudato Si’, acerca do cuidado da casa comum, e Amoris Laetitia, sobre a família. 
E o cardeal Gracias acrescenta: “Não será apenas uma mudança estética, mas será o impulso para uma mudança de mentalidade que já está em andamento.”




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