Procuro não
desperdiçar boas oportunidades de aprender e confesso que as persigo. Da janela
do quarto em que nos hospedamos em Kelheim tive, durante uma semana, o
privilégio de ver, no alto de um morro, o monumento erguido para celebrar a vitória
sobre Napoleão, o infame corso que ensanguentou a Europa e ainda assim mereceu
uma tomba honorífica em Paris. Seu túmulo monumental nos Invalides, aliás, é
uma demonstração de peso de como os bárbaros de todos os quadrantes e épocas foram
e são medalhados na história humana.
Este tiranete,
que avassalou multidões, é apenas uma conta no colar de violência que garroteia
o pescoço da humanidade. O memorial de Kelheim, denominado Befreiungshalle,
ficou em minha lembrança como símbolo do que temos de melhor na existência, a
liberdade. Que por vezes parece ter a fragilidade de um fio, o fio da
liberdade, que pode romper-se de forma súbita, seja na vida de um país, seja na
vida pessoal, como num casamento infeliz.
Na véspera de
deixarmos a Alemanha estivemos no mosteiro beneditino de Weltenburg, o mais
antigo da Bavária, às margens do Danúbio. Admirador do padroeiro da Europa e de
sua máxima – Ora et Labora,- foi
muito gratificante rezar um pouco naquele templo em que segue ativa a Liturgia
das Horas, como fio de esperança numa sociedade marcadamente secularizada, como
é comum em países tecnologicamente avançados. Não porque a fé seja sinónimo de
atraso, mas antes porque o homem tecnológico superestima seu alcance, seus
poderes.
Da Alemanha voamos
para Constantinopla. Chegamos quase seis séculos após sua queda. Lembro de suas
muralhas e redescubro a derrota bizantina. Atravessamos o Bósforo, a caminho do
hotel, nesta que será nossa segunda experiência na terra de sultões e paxás. É
mergulhar no passado, que parece retornar pelo ritmo hipnótico da música, no
narguilé e na dança dos dervixes, para os quais nossa caçula olha com
justificada estranheza. São facetas de um mundo ainda diferente, que teima em
resistir à pasteurização promovida pela globalização.
No dia seguinte
visitamos a fortaleza de Rumeli, a meio caminho do Mar Negro, no lado europeu.
Construída em 1452, em apenas quatro meses, foi pedra fundamental para a tomada
de Constantinopla. Era o início do estrangulamento do mundo cristão num dos
pontos mais estreitos do Bósforo. O início do fim. Hospedados no centro
histórico de Istambul, ora saímos para locais mais distantes, ora caminhamos nas
cercanias da Catedral de Hagia Sofia, construída no tempo de Justiniano e
transformada, a mando de Mehmet II, em mesquita no mesmo dia em que seus
comandados transpuseram a muralha da cidade.
Ladeada por
minaretes, adereços que mais parecem foguetes, de mau gosto mesmo para uma
arquitetura agnóstica, a antiga basílica parece pedir socorro a uma realidade
mundial que, felizmente livre das Cruzadas, encontra-se aprisionada pela
indiferença ocidental. Não se pode nem se deve esquecer que em 1453 o
cristianismo já se mostrara dividido depois do cisma ortodoxo, em 1054, que legou
ao mundo os universos católico romano e ortodoxo bizantino, mais apartados que
unidos. Depois de sitiar a cidade e bombardeá-la com os maiores canhões de
então, os otomanos abriram uma fenda e entraram por FetihKapi. Fui até lá.
Precisava tocá-la.
Em uma das alas
do belo Museu Topkapi são apresentadas uma espada de Davi, um cajado de Moisés
e um pote de Abraão. Serão legítimos? Tarefa
dura para arqueólogos. Na sequência, uma relíquia do profeta João Batista e
outras de Maomé, como um dente e fios de sua barba e duas de suas espadas.
Cristo não é sequer mencionado nesta tentativa de interligar profetas e
enaltecer o filho de Meca, colocando-o num ponto privilegiado no fio da
história.
Decorridos
séculos da expulsão dos árabes da península ibérica, as baixas taxas de
natalidade europeias e a abjuração do credo cristão parecem eventos de uma nova,
sutil e silenciosa queda de Constantinopla. Cristo não empunhou espadas e
proclamou que seu jugo era suave. Os homens fazem suas escolhas, enquanto milhares
de gatos deixam Istambul meio preguiçosa e as gaivotas grasnam, enchendo o ar
de encantamento em noites calmosas do verão que
começa. Visitar Istambul é também lastimar Constantinopla e relembrar, em
cada passo, que pisamos em ruas que um dia estiveram tintas de sangue e plenas
de angústias e sofrimentos.
J. B. Teixeira |
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