Páginas

domingo, 21 de abril de 2019

Por um fio

Procuro não desperdiçar boas oportunidades de aprender e confesso que as persigo. Da janela do quarto em que nos hospedamos em Kelheim tive, durante uma semana, o privilégio de ver, no alto de um morro, o monumento erguido para celebrar a vitória sobre Napoleão, o infame corso que ensanguentou a Europa e ainda assim mereceu uma tomba honorífica em Paris. Seu túmulo monumental nos Invalides, aliás, é uma demonstração de peso de como os bárbaros de todos os quadrantes e épocas foram e são medalhados na história humana.

Este tiranete, que avassalou multidões, é apenas uma conta no colar de violência que garroteia o pescoço da humanidade. O memorial de Kelheim, denominado Befreiungshalle, ficou em minha lembrança como símbolo do que temos de melhor na existência, a liberdade. Que por vezes parece ter a fragilidade de um fio, o fio da liberdade, que pode romper-se de forma súbita, seja na vida de um país, seja na vida pessoal, como num casamento infeliz.

Na véspera de deixarmos a Alemanha estivemos no mosteiro beneditino de Weltenburg, o mais antigo da Bavária, às margens do Danúbio. Admirador do padroeiro da Europa e de sua máxima – Ora et Labora,- foi muito gratificante rezar um pouco naquele templo em que segue ativa a Liturgia das Horas, como fio de esperança numa sociedade marcadamente secularizada, como é comum em países tecnologicamente avançados. Não porque a fé seja sinónimo de atraso, mas antes porque o homem tecnológico superestima seu alcance, seus poderes.

Da Alemanha voamos para Constantinopla. Chegamos quase seis séculos após sua queda. Lembro de suas muralhas e redescubro a derrota bizantina. Atravessamos o Bósforo, a caminho do hotel, nesta que será nossa segunda experiência na terra de sultões e paxás. É mergulhar no passado, que parece retornar pelo ritmo hipnótico da música, no narguilé e na dança dos dervixes, para os quais nossa caçula olha com justificada estranheza. São facetas de um mundo ainda diferente, que teima em resistir à pasteurização promovida pela globalização.

No dia seguinte visitamos a fortaleza de Rumeli, a meio caminho do Mar Negro, no lado europeu. Construída em 1452, em apenas quatro meses, foi pedra fundamental para a tomada de Constantinopla. Era o início do estrangulamento do mundo cristão num dos pontos mais estreitos do Bósforo. O início do fim. Hospedados no centro histórico de Istambul, ora saímos para locais mais distantes, ora caminhamos nas cercanias da Catedral de Hagia Sofia, construída no tempo de Justiniano e transformada, a mando de Mehmet II, em mesquita no mesmo dia em que seus comandados transpuseram a muralha da cidade.

Ladeada por minaretes, adereços que mais parecem foguetes, de mau gosto mesmo para uma arquitetura agnóstica, a antiga basílica parece pedir socorro a uma realidade mundial que, felizmente livre das Cruzadas, encontra-se aprisionada pela indiferença ocidental. Não se pode nem se deve esquecer que em 1453 o cristianismo já se mostrara dividido depois do cisma ortodoxo, em 1054, que legou ao mundo os universos católico romano e ortodoxo bizantino, mais apartados que unidos. Depois de sitiar a cidade e bombardeá-la com os maiores canhões de então, os otomanos abriram uma fenda e entraram por FetihKapi. Fui até lá. Precisava tocá-la.

Em uma das alas do belo Museu Topkapi são apresentadas uma espada de Davi, um cajado de Moisés e um pote de Abraão. Serão legítimos?  Tarefa dura para arqueólogos. Na sequência, uma relíquia do profeta João Batista e outras de Maomé, como um dente e fios de sua barba e duas de suas espadas. Cristo não é sequer mencionado nesta tentativa de interligar profetas e enaltecer o filho de Meca, colocando-o num ponto privilegiado no fio da história.

Decorridos séculos da expulsão dos árabes da península ibérica, as baixas taxas de natalidade europeias e a abjuração do credo cristão parecem eventos de uma nova, sutil e silenciosa queda de Constantinopla. Cristo não empunhou espadas e proclamou que seu jugo era suave. Os homens fazem suas escolhas, enquanto milhares de gatos deixam Istambul meio preguiçosa e as gaivotas grasnam, enchendo o ar de encantamento em noites calmosas do verão que  começa. Visitar Istambul é também lastimar Constantinopla e relembrar, em cada passo, que pisamos em ruas que um dia estiveram tintas de sangue e plenas de angústias e sofrimentos.

J. B. Teixeira



Sem comentários:

Enviar um comentário