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domingo, 21 de abril de 2019

Mistificação

Me puxou de lado e quase sussurrou para que os demais não ouvissem. Sugeriu que vivemos sob a lente de extraterrestres, o que explicaria certas coisas estranhas de nosso tempo. Também se disse convicto de que o tempo está correndo com maior velocidade. Creio que fiz aquela cara de esquilo atilado, em seu natural nervosismo. Devo ter tossido, meneado a cabeça, remexido os bolsos e coçado a barba, mas não pude mentir, nem esboçar qualquer evasiva.

Respondi que tais suspeitas não têm embasamento científico e que não precisamos de inimigos intergalácticos porquanto nos matamos sem o concurso de seres esverdeados ou baixinhos com orelhas pontudas e um olho na testa. Por falar em olho na testa, você já ouviu falar de Lobsang Rampa, um codinome de um tal que teria a terceira visão e assina livros que versam que a terra é oca? Nunca ouviu? Sorte sua. Isentou-se desta bobageira. Quanto ao tempo, só se percebe seu escoamento mais vagaroso se não estamos ocupados com mil e uma atividades. Um cachorro e suas quatorze horas de sono diárias vê o tempo passando como víamos há quarenta anos: voa quando temos pressa e se arrasta quando gostaríamos que voasse.

Há os que se ocupam em imaginar extraterrestres quando pensam nas pirâmides do Egito. São coisas de fato prodigiosas, mas não dispor da explicação não nos permite apelar para vizinhos do Universo que talvez sequer existam. Ao propor intervenções além-Terra para as edificações egípcias, quem o faz esquece que as mesmas foram levadas a cabo em décadas. Não tinham pressa, porque construíam para a eternidade. Há templos ao longo do Nilo que foram construídos em mais de cem anos, contrapondo-se à pressa contemporânea. Não deixa de ser curioso que em uma época que denominamos atrasada houvesse tanta devoção e que em nosso tempo se ergam arranha-céus sem maior propósito além de lucrar. Foi-se o tempo em que o ponto mais alto de uma cidade era a extremidade da torre da igreja.

Também as linhas de Nazca são volta e meia citadas como algo misterioso, cuja explicação não pode ser humana. Mas é. Estudos arqueológicos apontam que os desenhos tinham objetivo religioso, com símbolos como fertilidade, água, vida, rituais de sacrifício e morte. As linhas no deserto peruano, portanto, não autorizam hipóteses destinadas a ocupar crédulos e incultos.

Como é difícil - não é mesmo?- olhar para o céu com a clareza dos polos e admitir que em todo o infinito talvez só exista vida inteligente na Terra. Ou, para efeitos práticos, se algo mais existe, está tão longe, no longe que não se verá, mas tão longe, que é como se não existisse. Em outras palavras, pode até existir um gato preto neste quarto escuro, mas não divisaremos seus olhos, não esbarraremos nele, nem escutaremos seu miado. E não fará diferença se existir.

São perguntas sem respostas, que me fazem lembrar da indagação de Santo Agostinho sobre o mistério da Santíssima Trindade. Andando pela praia Agostinho encontra um menino, com seu baldinho de madeira, a despejar a água do mar em um buraco na areia. Coloco neste buraco toda a água do mar, disse-lhe o menino. Impossível, retrucou o santo. Manifestou-se então o anjo de Deus: “Em verdade, te digo: é mais fácil colocar toda a água do oceano neste pequeno buraco na areia do que a inteligência humana compreender os mistérios de Deus!”.

Enquanto a humanidade busca amparo em mistificações, cada qual a ocupar-se apenas consigo mesmo, a iludir-se de que podemos ser felizes sem os outros, sem a comunidade, a verdade é desprezada ou procurada onde não se pode encontrá-la. Nossos males decorrem de nossas faltas, não de intervenções bizarras. A encíclica Laudato Si ilumina o tema.

Francisco I ensina que “a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas tam­bém dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocu­par o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandato de «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação origi­nariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19)”. O que acrescentar?

J. B. Teixeira



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