Aguardávamos a
chamada do médico numa clínica traumatológica, cuja freguesia é normalmente heterogénea. Engessados e mancos ombreiam pessoas com curativos na cabeça e
tipoias. Com alguma imaginação é possível construir pequenas fantasias sobre os
eventos que trouxeram cada um deles aquele reduto de dores e dúvidas. O senhor,
sozinho, com olhar fixo, pode ter caído da escada, fraturando seu braço depois
de uma discussão com a mulher. A senhora que tem uma faixa em torno da cabeça,
ladeada pelo neto com escoriações no rosto, deve ter se acidentado quando o ónibus em que viajavam colidiu com um poste.
Humilde, quase em
demasia, se é que se pode criticar um nível de humildade, a velhinha olhava seu
neto sem nada falar. Não sei se tentava consolá-lo ou queria medir sua
apreensão. Como em quase todas as salas de espera de consultórios, uma
televisão impunha sua ditadura. Hoje é impossível ler alguma coisa enquanto
esperamos qualquer atendimento. Ou é um celular tocando, ou um programa televisivo
que mal se escuta, ou as indiscrições cada vez mais comuns, que denunciam certo
despudor. Tomamos conhecimento, sem querer, de cada coisa ...
Enquanto um
plantão de notícias informava que fulano de uma construtora e beltrano do
governo mantinham relações nada saudáveis, cutucando nossa indignação, uma
atendente aproximou-se da velhinha e, com algum constrangimento, perguntou a
ela se sabia que o procedimento a que se submeteria tinha que ser pago.
- Sim, minha
filha. Nós sabemos ...
Enquanto unia as
mãos em prece, sentada mas com a alma de joelhos, a velhinha arrematou:
- E graças a Deus
nós temos o dinheiro.
O valor, dito de
tal forma que todos os circunstantes pudessem ouvir, beirava um salário-mínimo.
Sem qualquer pieguice, parecia óbvio que aquela gente arrancaria de sua mesa a
importância, mas o que fazer se o caso era de saúde? Nos chamaram então para a
consulta, patrocinada por nosso convénio médico, que pagamos, a contragosto,
por não acreditar que o sistema público possa nos socorrer de forma razoável em
qualquer ponto do país. Nem nós, nem os presidentes, afinal é no Sírio Libanês
que vão tratar suas mazelas, dando uma demonstração desanimadora de incoerência.
Lula e Dilma faziam o mesmo, a despeito de sua incurável demagogia. Boquirrotos,
juravam defender os miseráveis enquanto se hospedavam em hotéis caríssimos,
viajando numa aeronave estrangeira, quando deveriam ter prestigiado a Embraer.
Entregamos ao
médico os exames, que aparentemente analisou com destreza. Em segundos explicou
o que ocorrera num menisco de minha esposa e a seguir informou que o
procedimento recomendável era uma cirurgia. Enquanto nos entreolhávamos, com
algum desapontamento diante do diagnóstico, ele disse que só havia um pequeno
entrave. Logo pensei que se referia a alguma peculiaridade da lesão ou às
dificuldades do período de recuperação.
- O problema é
que o convénio paga muito pouco por esta cirurgia e não posso fazê-la. Meu preço é tanto ...
Como longe estou
de ser hipocondríaco, convivo pouco com a classe e confesso que mal acreditei
no que escutara. Disse a ele que não pretendíamos pagar nada por fora,
porquanto já despendíamos um valor bem razoável com o convénio, ao qual aliás ele
pertencia. Diante desta colocação, teve a mesma sensibilidade de um rinoceronte:
vocês podem procurar outro colega ...
Sei que a
profissão de médico é espinhosa, mas cresci escutando que ela é um sacerdócio
... E que os formandos fazem o juramento de Hipócrates, cujo teor é tão bonito
quanto, talvez, fora de época. Vai ver ando meio piegas, a acreditar em coisas
que ficaram lá na Grécia, mas sugiro que o juramento seja dispensado das cerimónias. Não precisa mais. Saiu de moda.
J. B. Teixeira |
Sem comentários:
Enviar um comentário