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sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O Natal do Jubileu e a misericórdia no tempo novo

A solenidade de hoje traz o dom da alegria simples e exigente de amar, deixando-se amar pelo Deus que se faz próximo na pequenez de uma criança


Se o Natal, para aqueles que acreditam, é sempre a festa de um Deus que não se cansa da humanidade, o deste ano se colore do carácter do Jubileu da misericórdia, convocado pelo papa Francisco para que a Igreja viva uma experiência renovada da misericórdia divina e a anuncie com entusiasmo e convicção a cada homem.
 

"Misericórdia - escreve o papa - é o ato último e supremo com que Deus vem ao nosso encontro... A misericórdia é o caminho que une Deus e o homem, porque abre o coração à esperança de ser amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado" (Misericordiae vultus, bula do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 11 de Abril de 2015, 2).
 

Para ajudar aqueles que o desejam a viver este Natal como um tempo de misericórdia, abrindo-se ao significado mais profundo dessa palavra, gostaria de reflectir sobre os termos usados na Bíblia para dizer "misericórdia". A "língua santa" (leshon ha-qodesh), o hebraico da Bíblia, tem um número muito limitado de termos (5750), mas é capaz de expressar a realidade vasta e complexa da experiência humana fazendo uso de imagens que tornam densamente evocativa a ideia que se quer comunicar: por exemplo, para dizer "misericórdia", o hebraico usa "rachamim", termo que designa o ventre materno, o útero em que toda vida tem início.
 

É a ideia de uma gratuitidade originária (a vida não somos que nós que nos damos: ela nos é dada!), de uma custódia primordial que acolhe, nutre e protege, e das trevas em que a criatura concebida vive em simbiose com quem a carrega em si e de quem recebe alimento, impulso e protecção. Dentro das relações que nos fazem humanos, a imagem lembra o sentimento íntimo de comunalidade que liga o concebido à mãe, o vínculo originário do amor que faz viver entre quem dá a vida e quem a recebe: sentimento de ternura e comoção profunda ("Meu coração se comove e sinto por ele uma profunda ternura": Jeremias 31,20).
 

A misericórdia assim compreendida evoca o mundo dos afectos originários, o amor visceral que une o gerado a quem lhe dá vida, o amor que, por natureza, é livre e não condicionado pela reciprocidade, movido unicamente pela vontade de bem pelo outro. Neste sentido, São Bernardo pode dizer que "Deus não nos ama porque somos bons e belos, mas nos torna bons e belos porque nos ama".
 
O outro termo que o hebraico usa para a ideia de misericórdia é "chesed": similar em significado a "rachamim", difere dele em sua génese. Enquanto o amor visceral é originário e espontâneo, "chesed" é o resultado de uma deliberação e tem uma relação caracterizada por direitos e deveres: é o bem devido, ou, pelo menos, o que se espera como tal. É o amor com que o Senhor se destina ao seu povo, quase obrigando-se a isso, e pelo qual o salmista pode dizer: "Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, que são eternos" (Sl 25, 6).
 

É a bondade que se expressa no perdão, na compaixão e na piedade, com base na fidelidade a um compromisso que envolve dedicação plena, com vínculos de natureza ou por dever livremente assumido. Neste contexto, é compreensível que a ideia de misericórdia no Antigo Testamento se conecte à de aliança, promessa e cumprimento: todo o mundo espiritual da aliança entre o Senhor e seu povo traz o signo da misericórdia, de um amor que é livremente escolhido e querido até o fim, na fiel realização do projecto que implica para o bem do amado.
 

Expressa de uma forma intensa o profeta Oseias: "Farei de ti minha esposa para sempre, no direito e na justiça, no amor e na bondade; farei de ti minha esposa na fidelidade e conhecerás o Senhor" (2, 21s). É a segurança que no exílio e na difícil volta à terra dos pais o último Isaías testemunha: "Eu quero lembrar os benefícios do Senhor, as glórias do Senhor, quanto Ele tem feito por nós. Ele é grande em bondade para com a casa de Israel. Ele nos tratou segundo a sua misericórdia, de acordo com a grandeza da sua graça" (63,7).
 

O grego do Novo Testamento é o herdeiro do vocabulário hebraico da misericórdia: a expressão equivalente a "rachamim" é "splánchna", que literalmente significa "vísceras". Dela deriva o verbo usado na parábola do filho pródigo para expressar a reacção do pai ao ver seu filho que retorna: "esplanchníste" - "teve compaixão" (Lucas 15,20). Ele é um Pai de "vísceras" maternas! Um Deus de amor livre e radiante, sempre pronto para começar de novo com aqueles que voltam a Ele de coração arrependido e com necessidade de misericórdia. Ele é um Deus "visceralmente" enamorado da sua criatura, como a mãe o é pelo filho do seu ventre, em um nível de perfeição e de pureza de amor que só o Criador e Redentor do homem pode alcançar.


A misericórdia evoca, assim, as ideias de gratuitidade, custódia e confiabilidade incondicional, baseadas numa relação de amor originário, fonte de vida sempre nova, que todos, sem excepção, ansiamos e necessitamos.

O augúrio para este Natal do Ano Jubilar da Misericórdia, então, eu gostaria de formular desta maneira: que seja, para todos, um novo tempo da misericórdia recebida como dom e oferecida gratuitamente, na alegria singela e exigente de amar, deixando-nos amar pelo Deus que se aproxima de nós na pequenez de uma criança.


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