Esta data é propícia para um especial registo sobre o seu percurso de vida, a exemplo do que já fizemos noutras ocasiões, mas desta vez com mais motivos de interesse, pelo que apresentamos uma entrevista feita por e-mail, ou seja, com perguntas e respostas por escrito.
- P. Aires Gameiro, como está a viver estes 95 anos de
idade? Alguma vez pensou chegar até aqui? Qual o segredo da sua significativa
longevidade? Vê o mundo de forma mais profunda e autêntica?
Estou a viver como
vivi os 10, os 20, os 50, etc., e melhor que esperava. E cheguei a pensar que chegaria
à idade que chegou o meu pai, 82, e depois comecei a pensar que chegaria aos 90
e talvez mais, mas que só Deus saberia. Não há segredo para longevidade, mas há
doenças que só se evitam com jejum e oração, e os médicos dizem que o jejum conta
muito; e há pessoas experientes que defendem que a oração com fé e confiança
relaxa e reduz o stresse da ansiedade e pacifica. A oração de confiança
e fé em Deus não é uma ilusão nem regressão infantilizante, como Freud se
autoiludiu e continua a iludir muitos outros.
Agora, talvez na velhice, como muitos, veja a vida de forma mais autêntica, real, com menos fantasias: a seara tem trigo e joio, diz Jesus; na sociedade há lobos e cachorrinhos de estimação, «tubarões e espadartes» (Gonçalo M. Tavares). De facto, as pedagogias de receitas açucaradas não resultam, tanto mais que há lobos vestidos de cordeiros.
- Quando nasceu, o mundo e o tempo histórico eram bem diferentes
do que são hoje... Olhando para trás, sente alguma nostalgia do passado e algum
desencanto pelo desenvolvimento/progresso a que se chegou hoje em dia?
Muito diferente, mas só no secundário e acidental. No essencial substantivo, considero que as questões sérias de desenvolvimento e de maturidade são, hoje, sensivelmente, as mesmas: importa a sinceridade, harmonia entre o dentro e o fora da pessoa. A consistência que Jesus atribuiu a Natanael: era um israelita sem fingimento, não era um hipócrita como os fariseus, falsos, cegos, guias de cegos (Mt. 23). Não sinto nem comiseração com as situações de certas carências em que vivi no passado, nem ilusões de que o progresso e alguma abundância atual no Ocidente resolvem os problemas fundamentais das pessoas. Ajudam a resolver os mais secundários e, ao mesmo tempo, vão permitindo que outros se avolumem, com as facilidades e permissividades enganosas, como as estatísticas vão mostrando. Resolveram alguns problemas e criaram outros, e deixaram os homens entregues ao esforço e meios de ajuda para serem pessoas íntegras e que os têm de enfrentar como os do passado: com sinceridade do coração, da mente da oração. Não estão dispensados da integridade e coerência humana.
- A sua vocação religiosa, a vivência de um ideal espiritual
concreto tem sido o grande alicerce da sua existência pessoal e comunitária?
Sentiria mais dificuldades em enfrentar situações menos boas, por exemplo?
Sem me atrever a ser pretensioso, penso que tentei viver de forma coerente com a vocação a Irmão de S. João de Deus. Penso que dentro das fraquezas, defeitos e fragilidades pessoais, fui harmonizando a coerência e sinceridade em relação ao Senhor e ao próximo. A minha longa vida manteve-se em harmonia essencial com o ideal espiritual que ia desenvolvendo com a formação multidisciplinar e a fé cristã. Deparava-me sempre com novos problemas que exigiam respostas coerentes, mais envolventes com o eu mais autêntico.
- Esta idade, 95 anos de vida, dá-lhe oportunidade para fazer
certos balanços... Pode partilhar algumas das lembranças mais importantes que
ainda guarda das diferentes etapas percorridas até hoje?
Seria longo responder. Passei pelo período da Grande Guerra, racionamentos, acalmia do Estado Novo, ventania impetuosa do Vaticano II, tempos de tudo e já do “maio de 68” em França, do furor anticolonialista e do “25 de abril” em Portugal, Guerra Fria e clamor do progresso. Pessoalmente, experimentei a etapa de 16 anos de contrastes (1956-1972) entre os ambientes em Portugal, Roma, Paris, Londres e Luanda no pré e pós-Vaticano II, em que vivi, nestas cidades, o desassossego social como desafio que depois se prolongou por muitas dezenas de visitas de trabalho por cerca de 60 países na Europa e Além-mares. Tudo obrigou a manter os pés na Rocha para não dar trambolhões evitáveis. Nem só do sociológico movediço se faz caminhada. A linha multidisciplinar entre psicossocial e o teológico, entre as ciências humanas e o Evangelho dos pequenos, entre a autoconfiança e a confiança em Deus ajudaram a equilibrar o “tem-te não caias” nas passagens de luz, noites, paisagens floridas, desertos de silêncio, solidão e procura, como atualmente, e como me ensina Santo Agostinho, em cujo dia estou a responder a esta entrevista: «Criaste-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Vós».
- Entre tanta coisa que já fez e trabalhou durante todos
estes anos como - sacerdote, professor, conselheiro, dirigente e líder,
escritor, cronista, comunicador... em que espaço se sente melhor ou mais
realizado?
Manter o essencial como fiz desde a catequese, a formação de Irmão de S. João de Deus; e nos tempos mais revolucionários ir fazendo com as leituras, o ensinar e evangelizar os mais frágeis e os mais fortes, com todos os conhecimentos adquiridos e a oração meditada. Tudo me foi levando a deslocar o ponto de equilíbrio mais para o lado do espiritual, ou melhor, para o lado do Evangelho e do seu Autor. É esta a atitude que vou mantendo, ao mesmo tempo que me interrogo e me detenho no silêncio de Deus considerando que este silêncio se alterna com tantas coisas que o seu Porta-voz faz ouvir no Evangelho e nos seus arautos de todos os tempos e de hoje. Vivo entre a tentação da autossuficiência e o apelo de Jesus a nascer de novo e a confiar mais N’Ele.
- Quais as palavras que escolheria para melhor traduzir este
seu 95.º aniversário natalício: Gratidão, Fé, Coração sublime,
Generosidade...?
Certamente a gratidão pelos dons do Senhor da vida e da morte recebidos por mim e por milhares que, por meu intermédio, os receberam, e, como espero, vai acontecendo continuamente. É claro que a fé e o coração se associam, à Missa e ao Terço. Mas poderia ser mais agradecido e também mais generoso, como desejo, mas falho. A prática da generosidade vai diminuindo à medida que o peso do “corpo de morte” aumenta. Paciência, virá a ressurreição, como creio. Um dos meus mestres dizia: já desejaste, já fizeste. E assim penso e me desconsolo menos.
- O que espera para o futuro (já que o centenário está próximo),
continuar a trabalhar, a escrever, a comunicar, a participar em iniciativas de
vária índole? Que testemunho gostaria de deixar nesta data aos seus inúmeros
leitores e pessoas que o estimam bastante? Qual o caminho a seguir para se
viver tantos anos?
Sim, tudo isso, pois estou vivo. E ainda outras iniciativas, se for da vontade de Deus, e que já tenho planeadas. Deixo o desejo de partilhar e testemunhar o que alguns puseram nos seus muitos parabéns que recebi nestes dias e agradeço: por exemplo, no apostolado sacerdotal e vida religiosa hospitaleira com boas obras de dedicação ao serviço dos frágeis, doentes e próximos; amadurecer com mais sabedoria e hospitalidade, partilhar mais o Evangelho nos meus textos; ser bênção para muitos e continuar a espalhar hospitalidade a exemplo de S. João de Deus. Qual o caminho? Jesus Caminho, Verdade e Vida (presente e eterna); para caminhar com os outros e com Ele, em esperança rumo ao ano santo 2025, até que o Senhor faça sinal para avançar para a meta, Ele mesmo.
Vitória Menezes/Aires Gameiro
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