Rui rapidamente se
ambientara, modificara gostos, maneiras, e forma de vestir, mas sempre com
muita cabeça, sabendo que o dinheiro que o pai com sacrifício lhe mandava da
terra não dava para muito, e assim, arranjara um ‘part-time’ numa loja, e ainda
dava explicações aos filhos do senhorio, que lhe arrendara um quarto.
Trabalhava muitíssimo, e logo de início, colegas e professores da Faculdade de
Direito começaram a notar como o Rui se destacava pelo empenho e participação
nas aulas. Interessava-se por política, estudava, aprofundava, lia muito, mas
era um idealista e em debates de ideias, ninguém lhe levava a melhor. Um dia,
um professor chamou-o de parte e convidou-o a ir a uma sessão de esclarecimento
de um novo partido!
Rui foi, gostou
das ideias e valores defendidos e começou a acompanhar de perto as atividades
daquele grupo com quem sentia afinidades.
Entretanto,
através de bons colegas foi convidado a participar também em ações de
voluntariado num bairro perto do aeroporto… entusiasmara-se e condoera-se da
situação de algumas pessoas que ali viviam… em piores condições que os
velhotes da aldeia dos avós…
Como não tinha outro dia livre, era ao domingo que visitava algumas daquelas pessoas, dedicando-lhes tempo e atenção!
Era o caso da Ermitéria, uma cabo-verdiana de 70 e poucos anos, muda, solteira e a viver sozinha. Muito simpática, apesar da impossibilidade de falar, criara laços de amizade com aquele jovem que podia ser seu neto…
Através dos vizinhos, Rui soubera que Ermitéria sofrera um AVC e perdera a fala quando um dia, ao chegar a casa, encontrara a casa a arder e até o pouco que tinha ficara reduzido a cinzas… Ermitéria não tinha família em Portugal, não sabia ler nem escrever, e vivia de um magro subsídio, pois enquanto fora trabalhadora doméstica ninguém a tinha inscrito na Segurança Social. Agora frequentava, ali perto de casa, uma associação de bem-fazer, onde se sentia acarinhada e apoiada. Rui quis conhecer a associação e quando lá foi, ficou encantado com o que ali se fazia para apoiar muitas famílias desfavorecidas, sobretudo de origens africanas. Em conversa soube que 28 de fevereiro era o dia de anos de Ermitéria e prometeu que sempre lhe iria dar os parabéns, por mais curta que fosse a visita. Sabia que não podia chegar a toda a gente, como desejaria, e lembrava-se bem do conselho do avô… ’o mais importante são as pessoas…’! Desde então, sabendo das dificuldades de Ermitéria, Rui procurava visitá-la e levar-lhe alguma comida todos os domingos.
Os meses iam passando e Rui estava já bem
ambientado na cidade! Tinha amigos, de quando em vez saía à noite com eles,
mas a sua prioridade era a Faculdade. Depois do Natal tivera exames e tivera de
concentrar-se ao máximo neles, pelo que deixara o ’part-time’, apesar de o
dinheiro ser pouco. O pai, por seu turno, também reduzira o apoio à renda,
dizendo-lhe:
‘Meu rapaz,
desenrasca-te… a mãe está doente, teve uma nova crise de coração e tive de a
levar a uma clínica privada para não ficar à espera de médico no Serviço
Nacional… desculpa lá, mas desta vez não posso ajudar-te com mais dinheiro!’
Entretanto
aproximavam-se também as eleições e de tão envolvido que estava na campanha
eleitoral, Rui já há mais de um mês que não aparecia no Bairro onde vivia
Ermitéria, de quem não tinha notícias…
Chegou o dia 28 de Fevereiro! Rui estava comprometido com o partido… havia uma ‘arruada’ e um comício nos arredores, ele era um dos principais porta-bandeiras e acompanhava o grupo, guiando o carro do ‘leader’ do partido.
De repente, lembrou-se do aniversário de Ermitéria… (não podia faltar ao prometido! Pobre mulher… só ele lhe levava um bolo de anos… e de ananás, se possível, que era o seu favorito… que fazer??? E ainda por cima estava quase sem dinheiro na conta… como fazer???).
À sua volta, a algazarra e os gritos de apoio
intercalados com alguns apupos enchiam os ares e a multidão na rua rodeava-o e apertava-o; mais atrás, vinham uns rapazes com ruidosos bombos…
Rui começou a atrasar-se… a deixar-se ultrapassar por outros… (‘o mais importante são as pessoas…’ a Ermitéria faz hoje anos… que hei-de fazer? Como volto para Lisboa? E deixo o ‘leader’ assim sem mais nem menos…? ‘). De repente, Rui viu o presidente da distrital e com o seu desembaraço tão característico foi ter com ele.
‘- Desculpe, mas tenho de voltar já para Lisboa!
Consegue substituir-me por algum outro rapaz da sua confiança para guiar o
carro do nosso chefe? E pode emprestar-me 20 euros para eu apanhar o comboio? É
muito urgente… dê-me o seu mbway que eu transfiro sem falta depois de amanhã…
desculpe! É mesmo uma emergência…’
O presidente da distrital olhou-o admirado, já tinha ouvido falar nele, leu-lhe no rosto a sua grande preocupação… abriu a carteira e entregou-lhe 40 euros, sem nada perguntar e sem hesitar.
‘Leva, pode fazer-te mais falta do que a mim!’
Rui agradeceu-lhe com um abraço, deu-lhe as chaves do carro e sem mais demoras pôs-se a caminho… com aquele dinheiro entrou numa pastelaria, comprou um bolo de anos com uma vela só (quantos anos faria a Ermitéria? Ela nem sabia… 73, ou 74?) em seguida caminhou rapidamente para a estação e mesmo a tempo apanhou o comboio para Lisboa.
Quando chegou, foi ao multibanco e levantou o pouco dinheiro que ainda tinha, pensando com os seus botões que a Ermitéria talvez gostasse mais que ele lhe levasse um lenço garrido para amarrar à cabeça como ela sempre usava…, mas dar-lhe-ia esse dinheiro para ela gastar a seu gosto… já não havia tempo para presentes…
Às nove da noite,
Rui estava a bater à porta de Ermitéria. Ela espreitou a medo… àquela hora não
era prudente abrir a porta a estranhos… ainda por cima naquele bairro, tão
marcado pela droga… Quando reconheceu Rui e recebeu o bolo e o dinheiro,
Ermitéria riu e chorou de alegria… abraçando-o, beijando-o e obrigando-o a
sentar- se numa cadeira… foi buscar uma garrafa de Porto que lhe tinham
oferecido, dois copos, uma faca para partir o bolo e um prato para cada um… Rui
acendeu a vela, cantou-lhe os parabéns e depois, como dois bons amigos, de mão
dada… comeram uma fatia de bolo! Rui fez-lhe um brinde e Ermitéria com
dificuldade articulou a única palavra que conseguia dizer às vezes…’
obrigada’!!!
Noite escura, Rui
esperava o autocarro na paragem para regressar a casa. Sentia-se feliz.
Sabia que no dia seguinte teria de fazer algum jejum… pois não tinha nem uma
moeda no bolso… teria de aguardar a transferência do pai…
Perdera o comício, desaparecera sem dar uma justificação ao chefe, mas no seu íntimo ecoavam bem alto as palavras do avô:’ o mais importante são as pessoas… não te esqueças!’
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