Tenho para com a vila de Grândola uma relação especial. Foi ali que vivi durante alguns anos da minha infância e adolescência. Guardo ainda grata memória desses tempos, da casa em que vivi e sobretudo dos membros da minha família com quem me foi dado partilhar o esperançoso quotidiano.
Hoje, contudo, assaltam-me sentimentos ambíguos sempre que a visito: um misto de alegria e de tristeza que acompanha a observação dos locais que outrora foram meus e dos quais me afastei. A alegria decorre essencialmente da memória dos momentos felizes que ali vivi. A tristeza provém da ausência das pessoas que amei e já partiram. Depois da venda da casa de família, sinto-me estrangeiro na terra que foi, ainda que provisoriamente, minha. Não deixo, porém, de lá voltar de vez em quando e percorrer as ruas e praças dessa memória feliz que ainda preservo.
Foi assim que, no final de agosto passado, regressei à terra da minha infância perdida. Como era cedo para almoçar (cheguei por volta das onze), resolvi subir a Serra de Grândola até ao Outeiro da Penha, onde se encontra uma singela ermida dedicada a Nossa Senhora. Do monte onde se encontra a capela pode mirar-se a extensa planície de Grândola. Já no cimo da serra, mas um pouco mais abaixo do local da capela, avisto as casas do Monte da Penha, agora em ruínas, onde os meus bisavós paternos haviam habitado em tempos remotos.
Do santuário pode observar-se o soberbo montado, onde campeiam sobretudo sobreiros. Pela primavera, o cheiro das estevas resinosas e a beleza encantadora das suas flores espalham-se pelas vertentes acidentadas.
Não é por acaso que o santuário se encontra no cume do monte. Os lugares altos sempre foram locais especialmente dedicados ao Sagrado, qualquer que fosse a sua configuração. E não é por acaso. O ser humano move-se rente à superfície da terra, enquanto o Sagrado habita o espaço celeste, inacessível aos humanos. Os lugares altos são, portanto, espaços de encontro, a “meio caminho” entre o humano e o Sagrado. É ali que o ser humano se julga mais próximo de Deus. Na Bíblia, é nesses lugares que ocorrem as teofanias mais espetaculares. Foi no monte Sinai (ou Horeb, consoante a tradição) que Deus se revelou a Moisés e lhe concedeu a Lei. Foi para o mesmo Horeb que o profeta Elias fugiu à ira da rainha, depois de ter matado os profetas de Baal, onde pôde recobrar o ânimo e encontrar Deus no sopro consolador de uma brisa suave. Foi sobre um “alto monte” que Jesus se transfigurou perante três testemunhas, enquanto conversava com Elias e Moisés. O monte é amiúde o lugar em que os humanos podem apaziguar as dores da vida enquanto pressentem a misteriosa presença de Deus.
Povo tradicionalmente católico, a devoção a Maria, mãe de Jesus, sob múltiplas invocações, tem preenchido o coração dos portugueses. Não é, pois, de estranhar que aqui se encontre um santuário dedicado precisamente a “Nossa Senhora da Penha de França”, tendo como referente o santuário original em Espanha, construído na decorrência da descoberta de uma imagem por Simão Vela durante o século XV. Dois séculos depois, será erguida a ermida que atualmente encima o outeiro na zona circunvizinha de Grândola, tendo sido posteriormente intervencionada — o conjunto de azulejos e a talha dourada datam do século XVIII, quando o barroco se deslumbra com a ostentação da glória e do poder divino.
As festas de Nossa Senhora da Penha ocorrem no mês de maio. A imagem da “Santinha” (como por aqui é conhecida) — uma estátua de Nossa Senhora, coroada, com o Menino ao colo e revestida de um manto azul — é então exposta à devoção dos fiéis na Igreja Paroquial, que se encontra no centro da vila e é dedicada a Nossa Senhora da Assunção. Entretanto, decorrem festividades sagradas e profanas até ao momento em que a imagem regressa para o altar que lhe está destinado no topo do Outeiro da Penha.
Num espaço contíguo à nave da modesta capela, pode ver-se a sala de ex-votos, repleta de memórias de “milagres” e graças concedidas pela Senhora aos que a invocavam e tinham a sorte de serem atendidos. Em pleno século XXI, somos propensos a duvidar de semelhantes manifestações religiosas, quer por pressuporem uma relação grosseiramente comercial com o Sagrado, do tipo “toma lá, dá cá”, quer por revelarem um suposto desinteresse do Sagrado por todos os que sofrem e não tiveram a graça de ser efetivamente escolhidos para beneficiarem da intervenção divina. Seja como for, durante séculos, a piedade popular assim se relacionava com o divino, sendo este espaço testemunha avalizada dessa religiosidade tão ingénua quanto reveladora dos sofrimentos a que vida humana está sujeita.
Também me apraz subir ao monte, sempre que vou a Grândola, para observar a extraordinária beleza da paisagem que dali se avista e o casario da vila por entre as ramagens dos sobreiros. Também eu me sinto ali mais perto do divino. Não porque o divino se afaste de mim quando desço o cume do monte, mas porque o espaço me auxilia a ver Deus na soberba beleza e magnificência do montado. Reina por ali o silêncio, entrecortado pelo zumbido dos insetos ou pelo cantar dos pássaros. Haverá templo mais consentâneo com a presença divina? Sei que preciso dessa mudez humana com que sarar as feridas que a ansiedade dos dias nos inflige. E dali saio um pouco mais renovado, descendo a serra pelo estreito caminho de montanha, ladeado pelas estações da Via Sacra, por onde, bastas vezes, a vida corre.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.
Sem comentários:
Enviar um comentário