Da autoria do padre jesuíta Paulo Teia
Paulo Teia, SJ | 8 Set 2024
No momento em que o Papa Francisco chega a Timor-Leste, onde estará durante 45 horas, até quarta-feira, 11, o 7MARGENS publica 45 fotos do padre jesuíta Paulo Teia, que tem estado em Timor nos últimos meses e editou já dois livros de fotografias: Namasté e Ana Amasiye.
Nascido em 31 de Maio de 1969, em Lisboa, Paulo Teia é o mais velho de quatro irmãos. Depois de Almada (até aos seis anos), viveu em Aveiro e Vila Nova de Gaia, antes de ir para a Universidade em Coimbra, onde conheceu os jesuítas e decidindo, aos 20 anos, juntar-se à Companhia.
Estudou Filosofia na Universidade Católica Portuguesa, em Braga, lecionou no Colégio das Caldinhas (Santo Tirso), estudou teologia em Madrid e Paris, foi ordenado padre em 2002, tendo ido trabalhar para o Pragal (Almada), acompanhando as famílias e crianças de bairros sociais. Ao fim de onze anos, pediu um ano sabático para aprofundar os conhecimentos de fotografia, em Madrid. No Camboja e na Índia, concretizou o primeiro grande trabalho nessa área, com uma reportagem fotográfica junto dos adivasis e dalits, as camadas mais pobres daquelas sociedades. O resultado foi Namasté.
Em 2015 partiu durante cinco anos para Moçambique, regressou depois a Braga e publicou o seu segundo livro: Ana Amasiye (ed. AO).
Em língua chewa, o título significa crianças órfãs. Acolhido durante o seu trabalho em Moçambique como hóspede por um povo terno, paciente e contido, Paulo Teia percorre, no livro, o teclado de dois instrumentos, ambos de sopro e luz, fotografia e texto, organizando a obra em três entradas: Da Misericórdia, “dedicada ao antídoto da carência que afecta o órfão”; Dos Elementos, que “evidencia os elementos que constroem vida e sem os quais há morte: Água, Terra, Fogo e Ar”; e Dos Afectos, “um poema que é recolha de afectos e dizeres que apenas o coração conhece”.
A par com o seu trabalho em Timor, Paulo Teia vai fotografando rostos, pessoas, acontecimentos… Esse lugar paralelo levou-o a organizar vários “álbuns” que tem enviado a vários amigos, explicando o contexto das fotografias e propondo alguns textos de reflexão bíblica – alguns dos quais estão publicados no Ponto SJ, portal dos Jesuítas em Portugal, e cuja leitura se sugere, por complementarem a contemplação destas fotos.
Foi a partir desses álbuns que, com o acordo do autor, o 7MARGENS seleccionou várias fotos para publicação, adaptando excertos dos textos em que Paulo Teia explica as histórias ou o contexto das fotografias.
A festa do Coronel Amo Deus Santo António
No dia 13 de Junho fui a uma festa famosa em Manatuto em honra do “Coronel Amo Deus Santo António”! É verdade! Aqui Santo António é Coronel e em outra cidade, foi promovido a General! Têm uma grande devoção e exageram igualando-o a Deus! As festas começaram com uma missa campal na qual, em vez de concelebrar, andei no meio das pessoas a fotografar. Fiz uma serie de fotografias com o telemóvel que me ajudaram a perceber um novo estilo nas minhas fotografias de street photography. Fotografar grupos é sempre difícil tanto na leitura da luz como na captação dos instantâneos. Usei a câmara mas não consegui nada de jeito. Já com o telemóvel, em formato quadrado, gostei muito do resultado e quero continuar a investir neste estilo.
(Para ver todas as fotografias, clicar numa das fotos e depois nas setas)
Maliana: a aldeia no cimo da montanha e a missa surrealista
Fui visitar a cidade de Maliana para conhecer mais um grande colégio dos portugueses em Timor, Infante Sagres, e fiquei apaixonado por uma aldeia no cimo da montanha. Um cemitério tradicional com crianças a brincar num baloiço e a montanha como fundo, são uma bonita imagem da forte relação deste povo com a morte e com o sagrado. Convivem quase como se não houvesse descontinuidade.
Estive também numa primeira missa de um companheiro jesuíta, o padre Nelinho em Gleno, uma missa surrealista. O novo padre foi transportado para a igreja dentro de um cálice dourado gigante, numa camioneta… Parecia um filme do Felinni! A missa teve milhares de pessoas que depois almoçaram no Pavilhão paroquial, uma quantidade de comida que não podem imaginar. Tudo feito com imenso esmero e cuidado.
Oécusse, uma paisagem e um silêncio entranhados
As irmãs Franciscanas receberam-me na sua comunidade. Têm uma obra social fantástica, um verdadeiro testemunho do amor cristão. O tempo que passei em Oécusse foi muito sereno, a beleza das paisagens e o silêncio ficaram-me entranhados. É um sítio muito bom para escrever um livro ou passar um tempo de retiro. Tive a oportunidade de visitar uma Cascata Sagrada, fui até lá na companhia de um jovem da paróquia. Andámos pelo leito do rio, uma parte seca e outra com água. Em alguns sítios foi uma verdadeira aventura. Pelo caminho, o silêncio fresco do rio na garganta da montanha, o correr da água límpida. Uma árvore tombada sobre a falésia serve de escada para quem quer ir buscar o melhor mel da região, lá em cima onde ninguém vive. Pelo caminho, uma gruta e uma cruz no interior, recordação do assassinato de um soldado indonésio pelas gentes da povoação… sempre o ódio e o sangue na memória recente deste povo…
Finalmente cheguei à cascata. Imponente! Não admira que seja um lugar sagrado para os antepassados destas pessoas. Aqui fazem sacrifícios de bois e outros animais por altura das colheitas ou em momentos especiais da vida das famílias. Não se pode tomar banho na cascata. É lugar reservado aos deuses, sorte a deles. Eu acabei por tomar banho mais abaixo. (…)
Nestes dias em Oécussi tive ainda oportunidade de visitar algumas famílias que fiquei a conhecer por casualidade…
Mundo rural e casas sagradas
Tive a oportunidade de viajar três dias pela zona de Maubisse, Ainaro e Same, com o padre Venâncio, jesuíta, para conhecer a sua família e as tradições das casas sagradas em Timor. No mundo rural desta ilha existe uma série de relações ancestrais ligadas às casas sagradas. Estas casas representam a família, os vivos e os mortos. A partir delas estabelecem-se relações com as outras famílias e com Deus. Entrar nestas casas não é para qualquer um, exige reverência, pois dentro guardam-se objetos sagrados que tanto podem ser objetos religiosos como uma espada de antigas batalhas, ou simplesmente uma antiga “bandeira portuguesa” dobrada e tratada como se fosse uma verdadeira relíquia! Os contratos entre as famílias fazem-se nestas casas e a partir destas casas.
O mais bonito é que estas casas funcionavam e funcionam ainda hoje como pequenas igrejas domésticas. No interior da casa existe uma espécie de baloiço no centro da casa onde se colocam as ofertas a Deus. Por cima deste baloiço uma entrada de luz indica a presença de Deus sobre estas oferendas. Deus recebe-as e confirma o bem por ele feito, sobretudo nas primícias das colheitas.
Ao longo destes três dias pude entrar no mundo rural de Timor, o verdadeiro mundo de Timor com paisagens magníficas de montanhas e com aldeias perdidas nas encostas.
Enfim, neste mundo o que mais apreciei foram os rostos das pessoas e a exuberância de uma natureza virgem na qual a vida humana se insere em harmonia.
O mistério dos timorenses e a secura de beijos
Recebemos do primeiro-ministro, Xanana Gusmão, um tais timorense, que normalmente é dado às visitas. Vou guardá-lo enquanto por aqui andar. Continuo a tentar conhecer a maneira de ser timorense mas recordo que mesmo o padre Alves Martins dizia que passados quarenta anos continuava sem saber quem eram os timorenses. É uma identidade muito complexa e imprevisível, tímida e defensiva. Guardam uma história muito rica mas também muito violenta que passou no ADN de geração para geração. Mesmo as crianças são meigas mas agitadas. Recebem muito pouco carinho manifesto dos pais, sobrevivem numa grande secura de abraços e beijos.
A visita à antiga missão dos jesuítas em Soibada foi para mim um revisitar da grandeza e da pobreza da Companhia de Jesus. Da sua imensa fragilidade, da sua total dependência de Deus. A missão de Soibada foi a primeira missão dos jesuítas quando voltaram a Timor no século XIX. O padre Aparício mais quatro jesuítas conseguiram construir no meio do nada, na encosta de uma montanha, uma missão com vários colégios, internato para meninos e meninas, igreja e oficinas.
Fechou com a expulsão dos jesuítas na implantação da República em 1910 em Portugal. No entanto, a maneira como marcou uma geração de estudantes foi tão forte, que dessa geração saíram os líderes que construíram a Nação de Timor que hoje temos, professores, catequistas, políticos, etc. A missão ainda está abandonada e quase destruída como podem ver nas fotografias. Isto causa-me vertigem, entender que o tempo de Deus não é o tempo dos homens e que também as boas obras nascem e morrem cumprindo a sua missão. O lugar é magnífico, rodeado de árvores e de pequenos rios.
Feridas e justiça, pedras em vez de peixe
Fiz um retiro de Exercícios Espirituais em Máubara. Segui o livro de Exercícios do Padre Alves Martins sj, meu padrinho de sacerdócio. Li também duas vezes, para minha grande consolação, o seu livro de memórias sobre a vida em Timor durante o genocídio da ocupação Indonésia (morreram 200.000 pessoas de uma população de 600.000!). Um livro fantástico, que aconselho vivamente, Da Cruz ao Sol Nascente, da Editorial AO.
Um livro cheio de sabedoria e de humanidade que nos revela que a nossa fragilidade posta nas mães de Deus se transforma em semente de justiça e de liberdade para muitos.
Uma pequena aldeia de pescadores, bem perto da casa de retiros, fez parte desta experiência de oração. No primeiro dia antes do retiro tirei algumas fotografias dos pescadores e das crianças. Depois, no silêncio dos restantes dias, ficaram as “pedras” da praia. Fantásticas pedras do areal que não é areal. Na verdade, não há areia, apenas pedras roliças de todos os feitios e tamanhos. É maravilhoso pensar que aquela praia é semelhante à nossa Humanidade “como areias do mar – disse Deus a Abraão”. Cada pedra é o resultado da ação da imensa água do mar, na sua sabedoria e perseverança, e dos roces contínuos com as outras pedras. A sua beleza, feridas, cicatrizes, cores são expressão da nossa maravilhosa e frágil humanidade trabalhada por Deus e pelos outros. Ainda para mais cada dia voltava a casa com um saco cheio de pedras para fotografar. As irmãs da Casa de retiros pensavam que era peixe…
Numa camisola preta fotografava as pedras que mais me chamavam a atenção ao final do dia. Fui encontrando, para minha grande surpresa uma serie de coincidências com os mistérios que ia contemplando na oração. Na verdade, podemos encontrar Deus em todas as coisas, pois tudo fala Dele. Vi também que a beleza das pedras é como a beleza dos meus modelos no estúdio e fotografia. Meteoritos sagrados e luminosos nesta vida imensa e densa na imensidão do espaço profundo e silencioso das galáxias.
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