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domingo, 7 de abril de 2019

Terra Justa, em Fafe: Fazer campanha pelo domingo livre de trabalho

Uma das Conversas de Café no Terra Justa de Fafe: religião e trabalho foi o último tema debatido, dois dias depois da homenagem à Organização Internacional do Trabalho. Foto © Manuel Meira
É preciso voltar a fazer campanha pelo domingo livre, para trabalhos e serviços que não são necessários nesse dia, defendeu em Fafe, no último debate do encontro Terra Justa, a presidente do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos (MMTC), Fátima Almeida. Não se trata de fazer isso por causa da missa, mas “pelo encontro, pela família e os amigos, para dedicar tempo à cultura, à vida para além do trabalho, como diz o Papa”, justificou a militante da Liga Operária Católica (LOC).
A líder do MMTC, originária de Braga, foi uma das intervenientes no último debate do Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, que decorreu em Fafe desde quarta-feira, 3 de Abril, até este sábado. Falando sobre o tema do debate, Religião e trabalho, Fátima Almeida defendeu a ideia de lutar pela “diminuição do tempo de trabalho”, remetendo para estudos que concluem que se pode “trabalhar metade do tempo que se trabalha”.
O frade capuchinho Fernando Ventura, que estava entre os que escutavam, defendeu no período de debate que “é preciso redescobrir a fonte bíblica do ócio”. E o deputado e professor universitário José Manuel Pureza, outro dos participantes, referiu-se ao “descompasso entre a visão de que o Papa Francisco se faz porta-voz e a generalidade do discurso perfilhado nas comunidades cristãs”.
O deputado do Bloco de Esquerda perguntou ainda o que têm os cristãos a dizer em debates sobre o trabalho ao domingo; sobre a ideia de que “é um escândalo apoiar quem não quer trabalhar”, esquecendo que muitas pessoas recusam salários indignos; e sobre a luta contra os falsos recibos verdes. João Paulo II defendeu a “prioridade inequívoca do trabalho sobre o capital”, recordou, e muitos cristãos não têm essa posição, acrescentou.
A mesma perspectiva já tinha sido defendida no primeiro dia desta quinta edição do Terra Justa. Na sessão dedicada à homenagem à Organização Internacional do Trabalho, os líderes da CGTP, Arménio Carlos, e da Confederação do Comércio de Portugal (CCP), Domingos Barbosa, concordaram ambos em que, exceptuando os serviços essenciais, trabalhar ao domingo não faz sentido.

Tirar trabalho é pecado grave
“Tirar o trabalho a alguém é um pecado grave”, já disse o Papa Francisco, recordou o moderador, o jornalista Joaquim Franco. E Paulo Mendes Pinto, professor de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, afirmou, num comentário final ao debate: “A tecnologia evoluiu, deu-nos coisas inimagináveis, mas obriga-nos a não ter horários, contrariando a promessa de nos dar mais tempo para o ócio; temos documentos e leis que nos dão garantias e direitos, mas muitos jovens aceitam que a precariedade não seja posta em causa.”
José Brissos-Lino, director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e colaborador do 7MARGENS (parceiro desta edição do Terra Justa), recordou queforam cristãos metodistas ingleses que, perante os abusos a que a Revolução Industrial sujeitou tantos milhões de pessoas, dinamizaram os primeiros sindicatos.
Coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, Brissos-Lino referiu ainda as duas perspectivas sobre o trabalho que se encontram na Bíblia: o trabalho como maldição é a primeira, originada na expressão “comerás o pão com o suor do teu rosto”. Uma ideia ainda muito presente na mentalidade colectiva, reflectida em expressões como “nunca mais é sábado”, disse Brissos-Lino. Acrescentando factores como o tempo gasto em transportes, a remuneração injusta que “não estimula” o trabalho ou o “desenquadramento vocacional”, o trabalho pode mesmo ser visto como maldição.
A outra perspectiva é a da ideia do trabalho como realização, introduzida pelo aforismo de São Paulo “se alguém não quer trabalhar, também não coma”. Esta frase é escrita num contexto em que muitos dos primeiros cristãos esperavam a segunda vinda de Cristo para daí a pouco e, por isso, não trabalhavam. São Paulo tenta contrariar essa mentalidade, associando o trabalho à ideia de realização do ser humano, explicava Brissos-Lino.
Abdool Mangá, daComunidade Islâmica do Porto, referiu uma passagem do Alcorão – “Os pássaros saem de manhã com a barriga vazia e regressam à noite de barriga cheia” – para dizer que a terra “tem capacidade para garantir o sustento” de todos. “O trabalho dignifica o homem” e é uma dimensão muito importante, no ponto de vista muçulmano. Uma das histórias do próprio profeta Maomé conta que ele não aceitou a moeda que um pedinte lhe queria retribuir depois de ganhar dinheiro com ela, dizendo-lhe: “Com esse dinheiro, trabalha e sustenta a tua família.”
 
Queremos trabalhar por 200 euros?
Questionado, já no debate, acerca da relação da mulher muçulmana com o trabalho, Abdool Mangá disse que as mulheres estão a “ganhar estatuto nos países muçulmanos”. Há pouco tempo, disse, havia em Portugal sete embaixadoras de países muçulmanos e apenas uma de países ocidentais (República Checa). “Os direitos das mulheres muçulmanas estão a evoluir, mas há um grande caminho a percorrer e isso vai depender também das ditaduras que há em vários países islâmicos.”
Voltando ao universo cristão, Fátima Almeida criticou o facto de a Igreja Católica no seu todo ainda não viver os “três pilares – terra, casa e trabalho – apontados pelo Papa e que são prioridades do MMTC apontadas como necessárias a uma vida digna”. Sente-se uma “regressão grande nas leis laborais, mas também na nossa esperança num futuro melhor”, afirmou. O poder “já não está nas mãos dos políticos mas nas de pessoas sem rosto, o que dá uma grande insegurança a quem quer trabalhar”.
Fátima Almeida evocou os nomes de Alfredo Bruto da Costa, que morreu há dois anos e meio, investigou o fenómeno da pobreza em Portugal e era um profundo conhecedor do pensamento social católico, e do padre Abel Varzim, que foi desterrado de Lisboa para a sua terra natal, em Barcelos, por criticar a pobreza em que tantos portugueses viviam sob a ditadura do Estado Novo.
O empresário Ricardo Costa, formado em direito e que estudou teologia, criticou as instituições ligadas à Igreja que pagam “salários vergonhosos” e que deveriam “ouvir a mensagem da doutrina social da Igreja e dos últimos papas”. Ao mesmo tempo, considerou que um dos desafios dos empresários é “que os trabalhadores se sintam o mais realizadas possível”.
Deolinda Machado, dirigente da CGTP e professora de Educação Moral e Religiosa Católica em Famalicão, destacou a importância do combate à precariedade e a importância de todos sermos “trabalhadores activos, cumpridores, responsáveis, mas exigindo o cumprimento de direitos”, quando necessário. E apelou: “Devemos pôr-nos na pele do outro, quando criticamos pessoas dizendo que não querem trabalhar. E pensarmos que, “se não achamos que 200 euros seja um bom salário”, os outros têm direito a pensar o mesmo.

A saúde, um direito humano
No final do debate, o presidente da Câmara de Fafe, Raul Cunha, e Paulo Mendes Pinto assinaram um protocolo para dinamizar, nas escolas e entre os grupos de jovens do concelho – incluindo instituições religiosas e outras – o Clube Terra Justa. A ideia é promover, ao longo do ano, iniciativas sobre os temas e as propostas do encontro internacional.
Na sexta-feira, dia 5, o Terra Justa tinha sido dedicado à homenagem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), através de dois dos seus rostos mais importantes: António Arnaut, que o criou há 40 anos e morreu em 2018, e Francisco George que, enquanto director-geral de Saúde, foi um dos seus principais responsáveis nestes 40 anos. Os vários intervenientes coincidiram na recordação do país tremendamente desigual que havia nessa época, também no acesso aos cuidados de saúde: entre outras coisas, os mais pobres tinham de pedir um atestado de pobreza para poder aceder a uma consulta no hospital.
Hoje, tudo isso mudou e as estatísticas colocaram Portugal entre os 12 melhores do mundo nos cuidados de saúde mas o sistema sofre as dores do crescimento. Numa das Conversas de Café, Francisco George referia: “É preciso reduzir desigualdades, mas a principal desigualdade e o risco mais importante no acesso à saúde é a pobreza. Estamos muito melhor do que em 1974, mas é preciso distribuir melhor.”
José Martins Nunes, antigo secretário de Estado, recordou que o direito à saúde é um direito constitucional: “Pagamos no IRS de acordo com as nossas possibilidades para podermos aceder aos cuidados de saúde e contribuir solidariamente para quem não pode.” E Henrique Botelho perguntou “como se pode casar a saúde como direito humano com a ideia da saúde enquanto negócio”.
“Foi na Declaração Universal dos Direitos Humanos que ancorámos a fundamentação do direito à saúde no SNS. Hoje é impensável voltar atrás, mas para isso tem de haver um exercício quotidiano de todos nós e os mais jovens têm de pensar que é necessária a sua defesa permanente”, disse ainda Martins Nunes, para recordar a expressão de António Arnaut: “O SNS é a trave-mestra da democracia.”


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