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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Upa Neguinho

Vivemos um tempo em que a verdade está soterrada sob a cinza da desfaçatez. Os exemplos são múltiplos. Ouvimos falar de governança, sustentabilidade, responsabilidade fiscal e outros quetais cuja efetividade é algo bem perto do nada. O fenómeno embraça toda a humanidade, mas por aqui tem o viço dos trópicos. Na maltratada fauna do Brasil há uma espécie longe da extinção, a dos papagaios políticos. Que palram sem pudor, nos executivos e legislativos, ora sérios, ora histriônicos, ora posando de povo, ora rezando preces que desconhecem, ora ditando bobagens para plateias que aplaudem quando prefeririam vaiar. Dizem que somos livres, porque podemos votar de vez em quando. Será que isto é ser livre? Traço simbólico de liberdade, dizem que podemos protestar sem tomar borrachada da polícia ou aspirar gás lacrimogéneo. Então somos livres? Mesmo se os que têm poder, os que legislam e os que julgam tapam os ouvidos?

Às vezes penso que temos a liberdade de encarcerados, num presídio de espessas paredes e altos muros invisíveis. No nosso quadrado, relegados à insignificância, podemos gritar à vontade, mas estamos confinados e ninguém nos dá atenção alguma. Que liberdade placeba é esta em que você pode gritar à vontade mas o efeito é inócuo, como se você não tivesse voz?

Vendo o povo pelas ruas, enfeiado, empobrecido, em desalinho, desapropriado do saber, tratado como vassalo e massa de manobra, tento entender algumas coisas, como a onda das tatuagens. Seria o efeito manada? Parece que “Admirável gado novo”, de Zé Ramalho, mantém-se atual. “O povo foge da ignorância”, mas de fato vive muito perto dela e contempla “a vida numa cela”. Liberdade, em que céu te escondes deste povo marcado, povo feliz?

Mantidas as instituições, só o judiciário pode abater os políticos que nos levaram à insolvência. O impostômetro da Associação Comercial de São Paulo atingiu 500 bilhões no primeiro trimestre nove dias antes do que o fez no ano passado. Séria contradição: a economia afunda, a sonegação aumenta, mas o governo arrecada mais. Como sair desta areia movediça se os juízes não querem sequer fazer parte do regime previdenciário a que pertence a grande maioria?

A concentração de renda não é um problema brasileiro, senão mundial, ainda que aqui tudo ganhe contornos dramáticos. Os dados globais são estarrecedores: cerca de 1% da humanidade detém metade de toda a riqueza do mundo. A comunicação acelerada e o avanço da globalização recrudesceram isto, conduzindo o mundo a um patamar sombrio. As grandes corporações não se contentam mais em apenas vender para todos os quadrantes da terra. Vão muito além: querem controlar a água, a energia, o alimento, o entretenimento e vão se apoderando dos recursos naturais dos países periféricos. O maestro desta orquestra é o sistema financeiro. No passado os judeus eram acusados de desgraçar o mundo. O escritor e poeta Ezra Pound, por exemplo, criticou violentamente o capitalismo, os judeus e a usura, mas sabemos muito bem que a exploração do homem pelo homem não tem etnia ou religião.

Petróleo, guerras e reconstrução de países constituem-se nos grandes negócios do planeta, e o que se colhe desta semeadura é o aumento da poluição, dos conflitos fratricidas e o avanço da cultura da morte. Eutanásia e aborto são difundidos como pilares de libertação, a despeito de histórias notáveis da humanidade. Händel compôs a obra Messias em idade avançada e estado precário. Talvez não pudesse fazê-lo dentro de vinte anos, quando os velhos talvez sejam perseguidos como estorvos sociais e abatidos por “caridosos” profissionais. Quanto à interrupção da gravidez, é célebre o debate entre um geneticista e um abortista: “Sabendo-se que um pai sifilítico e uma mãe tuberculosa tiveram quatro filhos: o primeiro, cego de nascença; o segundo, morto logo após o parto; o terceiro, surdo-mudo; o quarto, tuberculoso, e que a mãe ficou grávida de um quinto filho, o que o senhor faria?” “Eu interromperia essa gestação”, respondeu o abortista. “Então o senhor teria matado Beethoven”. Liberdade não respira sem ética.

Estranha pulsão esta a de matar e acumular sem parar. Louvados sejam os empreendedores, desprestigiados sejam os indiferentes pela sorte alheia. Por aqui seguiremos perguntando que liberdade é esta que nos faz viver debaixo dos tantos escroques que nos governam, nos exploram e que seguem livres. Liberdade, quando a teremos, de fato? Louvada seja a perspicácia de um Edu Lobo, que já na década de sessenta pontificava: “Capoeira! Posso ensinar. Ziquizira! Posso tirar. Valentia! Posso emprestar. Mas liberdade, só posso esperar ...”.

J. B. Teixeira



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