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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

NECs, Laicismo e Liberdade

Fui convidado pelo núcleo de estudantes católicos (nec) de uma faculdade de uma universidade pública de Lisboa para uma sessão por ele organizada sobre um tema de reflexão clássico e incontornável: o sentido do sofrimento. A sessão estava programada para as instalações dessa faculdade. Poucos dias antes, disseram-me que seria antes realizada nas instalações de uma igreja próxima, porque a direção dessa faculdade não autorizava que se realizasse nas suas instalações, invocando a laicidade das universidades públicas.

Dizem-me que episódios semelhantes, de obstáculo à ação de núcleos de estudantes católicos, e até à sua existência, têm ocorrido noutras faculdades de universidades públicas. A recolha de inscrições para a participação na Missão País, por exemplo, e as reuniões a ela relativas, teriam de ser efetuadas fora das instalações da faculdade. E tem havido oposição a que esses núcleos se identifiquem com referência ao nome de determinadas faculdades, porque isso supostamente comprometeria a sua laicidade. Tal não se verifica, porém, em muitas outras faculdades de universidades públicas, onde não são colocados quaisquer obstáculos à ação desses núcleos.

Tais obstáculos à ação dos núcleos de estudantes católicos refletem uma conceção de laicidade errada e que se esperaria de há muito ultrapassada. Laicidade supõe a neutralidade religiosa do Estado, mas não a hostilidade para com a religião, ou a indiferença ou ignorância do papel da religião na vida das pessoas, na sociedade e na cultura. A laicidade não se confunde com o laicismo. O Estado hostil para com a religião deixa de ser neutro, assume uma filosofia própria, que é, precisamente, o laicismo. O Estado laico não assume uma profissão de fé religiosa ou filosófica, mas não pode impor essa neutralidade às pessoas, à sociedade e à cultura. A religião não pode ser confinada ao domínio da privacidade, porque também assume um relevo social e cultural.  

O espaço público de uma sociedade regida pela laicidade do Estado é um espaço de diálogo onde podem ter lugar e voz diferentes, propostas religiosas e filosóficas, sem que nenhuma delas se imponha como única, mas também sem que qualquer delas, ou todas elas, sejam silenciadas. Uma universidade pública deve ser esse espaço de diálogo. Não é só dentro de uma igreja que se pode falar de religião e do sentido da vida e do sofrimento.

Impressionou-me, neste caso em particular, que numa universidade não haja espaço para debater uma questão como a do sentido do sofrimento. A universidade, seja ela qual for, não pode ver reduzida a sua função à formação de técnicos e profissionais, deve contribuir para a formação integral da pessoa. A busca do sentido é talvez o que mais caracteriza a pessoa humana como tal e nessa busca se insere a reflexão sobre o sentido do sofrimento. Impressiona-me que esta reflexão (independentemente da resposta que lhe possa ser dada) não possa ter lugar numa universidade pública e laica, seja qual for a matéria que nela se ensina. Que só se possa falar do sentido do sofrimento nas instalações de uma igreja e que um núcleo de estudantes interessado em refletir sobre essa questão encontre obstáculos à sua ação que não encontram núcleos de estudantes dedicados ao ciclismo e atividades subaquáticas.

Em relatórios relativos à situação da liberdade religiosa em Portugal quase não têm sido referidas violações dessa liberdade, e ainda bem que assim é. A Comissão de Liberdade Religiosa também não tem tido motivos para denunciar atentados a essa liberdade ocorridos entre nós. Mas talvez se justifique que se pronuncie sobre os obstáculos à ação dos núcleos de estudantes católicos em universidades públicas. Porque esses obstáculos representam uma violação da liberdade religiosa.

Pedro Vaz Patto



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