Fui
convidado pelo núcleo de estudantes católicos (nec) de uma faculdade de uma universidade pública de Lisboa para
uma sessão por ele organizada sobre um tema de reflexão clássico e
incontornável: o sentido do sofrimento. A sessão estava programada para as
instalações dessa faculdade. Poucos dias antes, disseram-me que seria antes
realizada nas instalações de uma igreja próxima, porque a direção dessa
faculdade não autorizava que se realizasse nas suas instalações, invocando a laicidade
das universidades públicas.
Dizem-me
que episódios semelhantes, de obstáculo à ação de núcleos de estudantes
católicos, e até à sua existência, têm ocorrido noutras faculdades de
universidades públicas. A recolha de inscrições para a participação na Missão País, por exemplo, e as reuniões
a ela relativas, teriam de ser efetuadas fora das instalações da faculdade. E
tem havido oposição a que esses núcleos se identifiquem com referência ao nome
de determinadas faculdades, porque isso supostamente comprometeria a sua
laicidade. Tal não se verifica, porém, em muitas outras faculdades de
universidades públicas, onde não são colocados quaisquer obstáculos à ação
desses núcleos.
Tais
obstáculos à ação dos núcleos de estudantes católicos refletem uma conceção de
laicidade errada e que se esperaria de há muito ultrapassada. Laicidade supõe a
neutralidade religiosa do Estado, mas não a hostilidade para com a religião, ou
a indiferença ou ignorância do papel da religião na vida das pessoas, na
sociedade e na cultura. A laicidade não se confunde com o laicismo. O Estado
hostil para com a religião deixa de ser neutro, assume uma filosofia própria,
que é, precisamente, o laicismo. O Estado laico não assume uma profissão de fé
religiosa ou filosófica, mas não pode impor essa neutralidade às pessoas, à
sociedade e à cultura. A religião não pode ser confinada ao domínio da
privacidade, porque também assume um relevo social e cultural.
O
espaço público de uma sociedade regida pela laicidade do Estado é um espaço de
diálogo onde podem ter lugar e voz diferentes, propostas religiosas e
filosóficas, sem que nenhuma delas se imponha como única, mas também sem que qualquer
delas, ou todas elas, sejam silenciadas. Uma universidade pública deve ser esse
espaço de diálogo. Não é só dentro de uma igreja que se pode falar de religião
e do sentido da vida e do sofrimento.
Impressionou-me,
neste caso em particular, que numa universidade não haja espaço para debater
uma questão como a do sentido do sofrimento. A universidade, seja ela qual for,
não pode ver reduzida a sua função à formação de técnicos e profissionais, deve
contribuir para a formação integral da pessoa. A busca do sentido é talvez o
que mais caracteriza a pessoa humana como tal e nessa busca se insere a
reflexão sobre o sentido do sofrimento. Impressiona-me que esta reflexão
(independentemente da resposta que lhe possa ser dada) não possa ter lugar numa
universidade pública e laica, seja qual for a matéria que nela se ensina. Que
só se possa falar do sentido do sofrimento nas instalações de uma igreja e que
um núcleo de estudantes interessado em refletir sobre essa questão encontre
obstáculos à sua ação que não encontram núcleos de estudantes dedicados ao
ciclismo e atividades subaquáticas.
Em
relatórios relativos à situação da liberdade religiosa em Portugal quase não têm
sido referidas violações dessa liberdade, e ainda bem que assim é. A Comissão
de Liberdade Religiosa também não tem tido motivos para denunciar atentados a
essa liberdade ocorridos entre nós. Mas talvez se justifique que se pronuncie
sobre os obstáculos à ação dos núcleos de estudantes católicos em universidades
públicas. Porque esses obstáculos representam uma violação da liberdade
religiosa.
Pedro Vaz Patto
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