... com Deus, mas “Tenho que
ficar a sós, Tenho que apagar a luz, Tenho que calar a voz, Tenho que encontrar
a paz”. Foi com esta intenção que procurei no hospital por uma sala de
oração. Não tem, senhor. Há uma sala onde familiares conversam com médicos.
Não, médicos não, quero falar com Deus. Transcorria a cirurgia de minha primogénita, o que me trouxe a São Paulo, cujos arranha-céus são hoje
desagradável visão. Mais de duas décadas vivi nesta doideira, não gosto mais,
ainda que admire o espírito laborioso que exsuda desta megalópole.
Recolho informações. Há uma Capela bem próxima, na BP ... É o
mundo das siglas! Cheguei a pensar que fosse um posto da British Petroleum ...
Nada a ver. Trata-se da Beneficência Portuguesa. Curiosa a vida. Tenho
ascendências alemã, pelo lado materno, e portuguesa. Nasci na Beneficência
Portuguesa de Porto Alegre e minha filha está no centro cirúrgico do Hospital
Allemão, criado em 1897. Meu pai dizia que para um cristão não há coincidências.
A vida só tem confirmado. Deus fala do seu jeito. Às vezes até grita, quando
fazemos ouvidos moucos.
Cruzo a rua e encontro a Capela de São Joaquim fechada. E agora?
Deve estar aberta pelo interior da Beneficência. Expliquei na portaria meu
intento e, como visitante, em instantes estou no templo de silêncio e
contemplação. Vitrais com santos portugueses, como o indefectível Antonio de
Lisboa, mais conhecido como de Pádua, onde morreu. Foi uma espécie de sequestro
hagiográfico, mas os portugueses não fazem
pouco do justo orgulho pelo conterrâneo.
Também lá está São Gonçalo Garcia, martirizado em Nagasaki em
1597. Crucificado e trespassado por lanças, com outros cristãos, nos faz pensar
na perseguição religiosa dos dias que correm, com novos homens de fé, sinónimo de prováveis mártires em alguns quadrantes da Terra. Bem perto, São João de
Deus, devotado aos pobres e doentes, fundou um hospital em Granada no ano de
1539. “O que poderia ser mais generoso do
que dedicar uma vida para cuidar?”, foi o que li numa exposição de fotos no
Hospital Allemão. As coisas fazem sentido.
Em 1897 um grupo de senhoras promoveu um bazar para a coleta de
fundos em benefício de uma instituição de saúde. Lideradas por Anton Zerrenner,
empresário e cônsul da Alemanha, fundam a Associação Hospital Allemão,
concluindo a construção em 1923 em área privilegiada, junto à famosa Avenida
Paulista. Minhas filhas paulistanas nasceram no Hospital Santa Catarina, bem
perto daqui, na rua Teixeira da Silva, nosso sobrenome.
Quando soube que não havia uma Capela, fiquei a indagar o que
aconteceu com o mundo. O que terá acontecido nos últimos cem anos para que um
hospital, filantrópico até dois mil e alguma coisa, não tenha uma Capela? Tudo
bem, saciei minha sede com São Joaquim, pai venerável de Maria, mas não é de
estranhar que não haja um recanto de oração num local de tantas graças e
lastimações, onde nossas humanas fragilidades não falam, senão gritam?
Deixei a Beneficência, que segue sendo hospital filantrópico, e decidi
comer um pão de queijo com café. Na padaria uma gente sorridente, que parece
provir, pelos sotaques e fenótipos, de todos os cantos do Brasil. Há
corinthianos, gremistas, cruzeirenses, flamenguistas ... Que belo pode ser este
país! Uma gente que madruga e bota um sorriso na cara como em poucos lugares
deste mundo. Que transformou-se demais em um século, muito além dos avanços
tecnológicos.
Volto à rua e paro, hábito antigo, para ver a capa de publicações.
Uma das manchetes de uma revista captura minha atenção: os 35 maiores filósofos
da história. Fotos de muitos, pequeninas, mas há uma bem maior, com grande
destaque. É de Nietsche. Sob ela, uma de suas frases: “Não há fatos eternos e nem verdades absolutas”. Nada é por acaso,
lembram?
A capa da revista não mostra uma pintura de Aristóteles, nem de
Santo Tomás de Aquino e muito menos de Santo Agostinho. Nem me interessei em
verificar se a matéria os citava, porquanto a escolha da capa já sugere péssimo direccionamento. Volto ao Hospital Allemão, que em 1942 foi forçado a chamar-se
Osvaldo Cruz pelos desvarios paranóicos da Segunda Guerra. Quais os valores
propalados pelo hospital? Entre eles, Verdade ... Não é Nietsche que provoca
tantos estragos, mas aqueles todos que utilizam as ideias de um desajustado,
infeliz no amor, para desajustar o mundo. Sábio Gilberto Gil, autor da letra
tão inspirada. Nada é coincidência.
J. B. Teixeira |
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