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terça-feira, 20 de novembro de 2018

Tenho de falar ...

... com Deus, mas “Tenho que ficar a sós, Tenho que apagar a luz, Tenho que calar a voz, Tenho que encontrar a paz”. Foi com esta intenção que procurei no hospital por uma sala de oração. Não tem, senhor. Há uma sala onde familiares conversam com médicos. Não, médicos não, quero falar com Deus. Transcorria a cirurgia de minha primogénita, o que me trouxe a São Paulo, cujos arranha-céus são hoje desagradável visão. Mais de duas décadas vivi nesta doideira, não gosto mais, ainda que admire o espírito laborioso que exsuda desta megalópole.

Recolho informações. Há uma Capela bem próxima, na BP ... É o mundo das siglas! Cheguei a pensar que fosse um posto da British Petroleum ... Nada a ver. Trata-se da Beneficência Portuguesa. Curiosa a vida. Tenho ascendências alemã, pelo lado materno, e portuguesa. Nasci na Beneficência Portuguesa de Porto Alegre e minha filha está no centro cirúrgico do Hospital Allemão, criado em 1897. Meu pai dizia que para um cristão não há coincidências. A vida só tem confirmado. Deus fala do seu jeito. Às vezes até grita, quando fazemos ouvidos moucos.

Cruzo a rua e encontro a Capela de São Joaquim fechada. E agora? Deve estar aberta pelo interior da Beneficência. Expliquei na portaria meu intento e, como visitante, em instantes estou no templo de silêncio e contemplação. Vitrais com santos portugueses, como o indefectível Antonio de Lisboa, mais conhecido como de Pádua, onde morreu. Foi uma espécie de sequestro hagiográfico,  mas os portugueses não fazem pouco do justo orgulho pelo conterrâneo.

Também lá está São Gonçalo Garcia, martirizado em Nagasaki em 1597. Crucificado e trespassado por lanças, com outros cristãos, nos faz pensar na perseguição religiosa dos dias que correm, com novos homens de fé, sinónimo de prováveis mártires em alguns quadrantes da Terra. Bem perto, São João de Deus, devotado aos pobres e doentes, fundou um hospital em Granada no ano de 1539. “O que poderia ser mais generoso do que dedicar uma vida para cuidar?”, foi o que li numa exposição de fotos no Hospital Allemão. As coisas fazem sentido.

Em 1897 um grupo de senhoras promoveu um bazar para a coleta de fundos em benefício de uma instituição de saúde. Lideradas por Anton Zerrenner, empresário e cônsul da Alemanha, fundam a Associação Hospital Allemão, concluindo a construção em 1923 em área privilegiada, junto à famosa Avenida Paulista. Minhas filhas paulistanas nasceram no Hospital Santa Catarina, bem perto daqui, na rua Teixeira da Silva, nosso sobrenome.

Quando soube que não havia uma Capela, fiquei a indagar o que aconteceu com o mundo. O que terá acontecido nos últimos cem anos para que um hospital, filantrópico até dois mil e alguma coisa, não tenha uma Capela? Tudo bem, saciei minha sede com São Joaquim, pai venerável de Maria, mas não é de estranhar que não haja um recanto de oração num local de tantas graças e lastimações, onde nossas humanas fragilidades não falam, senão gritam?

Deixei a Beneficência, que segue sendo hospital filantrópico, e decidi comer um pão de queijo com café. Na padaria uma gente sorridente, que parece provir, pelos sotaques e fenótipos, de todos os cantos do Brasil. Há corinthianos, gremistas, cruzeirenses, flamenguistas ... Que belo pode ser este país! Uma gente que madruga e bota um sorriso na cara como em poucos lugares deste mundo. Que transformou-se demais em um século, muito além dos avanços tecnológicos.

Volto à rua e paro, hábito antigo, para ver a capa de publicações. Uma das manchetes de uma revista captura minha atenção: os 35 maiores filósofos da história. Fotos de muitos, pequeninas, mas há uma bem maior, com grande destaque. É de Nietsche. Sob ela, uma de suas frases: “Não há fatos eternos e nem verdades absolutas”. Nada é por acaso, lembram?

A capa da revista não mostra uma pintura de Aristóteles, nem de Santo Tomás de Aquino e muito menos de Santo Agostinho. Nem me interessei em verificar se a matéria os citava, porquanto a escolha da capa já sugere péssimo direccionamento. Volto ao Hospital Allemão, que em 1942 foi forçado a chamar-se Osvaldo Cruz pelos desvarios paranóicos da Segunda Guerra. Quais os valores propalados pelo hospital? Entre eles, Verdade ... Não é Nietsche que provoca tantos estragos, mas aqueles todos que utilizam as ideias de um desajustado, infeliz no amor, para desajustar o mundo. Sábio Gilberto Gil, autor da letra tão inspirada. Nada é coincidência.

J. B. Teixeira



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