O padre Romano Scalfi, prémio da Cultura Católica
Romano Scalfi é uma ponte viva entre a Rússia e o mundo latino, entre oriente e Ocidente |
Actualizado 18 de Outubro de 2014
Marina Corradi/Avvenire
O padre Romano Scalfi, no seu gabinete na sede da associação Rússia Cristã (www.russiacristiana.org), está traduzindo um texto com o dicionário russo/italiano aberto diante dele.
Tem 91 anos, a barba branca e um rosto em paz. Faz-nos pensar no starets [ancião mestre espiritual na Rússia; ndReL] dos Irmãos Karamazov.
Em 17 de Outubro, em Bassano del Grappa, recebe o prémio internacional Medalha de Ouro da Cultura Católica pela sua obra de evangelização na URSS e pela sua contribuição à difusão em Itália do samizdat, a literatura clandestina auto-editada da era soviética.
A de Scalfi, mais que uma história, parece uma epopeia que atravessa o século XX a partir de 1923, ano em que nasceu em Tione di Trento. O fio condutor da sua história poderia ser a palavra “beleza”.
A liturgia bizantina enamorou-o da alma russa
Com 23 anos, vendo celebrar a divina liturgia bizantina, enamorou-se da Rússia e da sua alma. Corria o ano de 1946 e era seminarista em Trento. Nessa liturgia lenta, resplandecente de harmonia e cantos, descobriu pela primeira vez "o conhecimento denominado sobórnico [em russo o adjectivo soborny tem o duplo significado de católico e conciliar, ndt] da tradição oriental, coração e razão juntos, comprometidos e conquistados", explica.
E “beleza” é a palavra que Scalfi utiliza também para recordar a sua mãe. «Nunca me esquecerei do dia em que, com quatro anos, a vi ajoelhada diante de um crucifixo. O seu rosto era tão belo e estava tão absorto na oração! O rosto da minha mãe foi para mim a primeira beleza».
Uma vez acabado o seminário estudou no Pontifício Instituto Oriental, em Roma. O seu pai espiritual, dom Eugenio Bernardi, é beato. «Uma humanidade de uma beleza encantadora», disse Scalfi. De novo essa palavra, ´beleza´.
Percorrendo a URSS rural
Em 1957 o sacerdote cruza pela primeira vez as fronteiras bem vigiadas da URSS do pós-guerra. «Simulamos uma avaria na estrada para livrar-nos do "anjo-custódio" que nos colaram na fronteira. Nos povoados rurais, muito pobres, os homens e as mulheres aproximavam-se intrigados pelo carro ocidental. Começávamos a falar e logo o discurso versava sobre a nossa vida e a deles; nas palavras surgia, ainda na confusão, um sentido religioso, uma pergunta de sentido todavia presente com força».
Começam os anos dos envios clandestinos dos Evangelhos, dos livros escondidos nos forros das malas. Dezenas de milhares de Evangelhos entraram na URSS e nos países satélites: «Recordarei sempre uma mulher numa igreja de Kiev; ajoelhou-se diante de mim para agradecer-me por esse presente».
"Fui declarado persona non grata"
As visitas de Scalfi intensificaram-se. «Não me detiveram nunca, mas soube que me vigiavam sempre e que sabiam tudo. Em 1970 fui declarado persona non grata. Não voltei à URSS até à queda do Muro».
Sem dúvida, também nesses anos, graças aos colaboradores do Centro “Rússia cristã” que tinha fundado, os intercâmbios foram intensos. Por obra da associação chegaram a Itália uns 900 textos do samizdat.
A amizade com dom Luigi Giussani ampliou a amizade aos jovens de Comunhão e Libertação. «Giussani – disse Scalfi – foi o primeiro que, sem sequer conhecer-me, simplesmente me abraçou».
Depois o boom dos baptismos
Depois de 1989, chegou a hora de um aparentemente vistoso renascimento da fé no Este; quase não havia suficientes sacerdotes para baptizar aqueles que o solicitavam. Um momento, recorda Scalfi, que não durou, devido à grande ignorância que tinham deixado décadas de fé negada. Hoje, 80% dos russos dizem-se ortodoxos, mas só 1% vai à igreja.
E agora, como vê este ancião sacerdote a Rússia de Putin que dá medo ao Ocidente e, sobretudo, aos países vizinhos?
- Hoje é a hora do nacionalismo, um sentimento que na Rússia tem raízes muito profundas e anteriores ao marxismo, que se alimenta do amor visceral que os russos nutrem pela sua pátria. Há um ditado: “A Rússia não se conhece com a cabeça; pode-se só amá-la”. É raro encontrar actualmente um russo que fale mal do seu país. Inclusive se nomeias Estaline respondem-te que “fez que a pátria seja grande”. Depois da ocupação da Crimeia, 90% da população estava entusiasmada com Putin. Putin... que vai à igreja e faz reconstruir as igrejas destruídas. Parece-me estar vendo a religião utilizada em chave nacionalista.
- É muito preocupante o conflito com a Ucrânia?
- É-o e muito. Não estamos, como disseram alguns, em 39, não podemos fazer comparações com o expansionismo do nacional-socialismo alemão. Mas é inquietante que a grande maioria dos russos apoie as pretensões de Putin sobre a Ucrânia.
- Devemos temer esta Rússia? (Scalfi cala-se um instante, o seu formoso rosto de starets pensativo)
- Na minha opinião, sim. Os únicos que vejo a salvo do nacionalismo são os nossos amigos do movimento do samizdat. São fiéis à ideia de que no centro da sociedade está a pessoa, não o Estado. Agora vê-se o que esse movimento semeou. Não se combatia tanto contra o comunismo como pelo homem, na sua plenitude e beleza. Era uma resistência em nome de uma beleza maior.
E na memória de Dostoyevskiy: cada homem é responsável de tudo e de todos. Porque antes de perguntar-nos contra quem combatemos, temos que perguntar-nos porque coisa lutamos. O Anticristo vem também por nossa culpa, porque faltamos nós.
- Como vê, por outro lado, este momento da Igreja universal?
- Vejo que o Papa insiste sobre o facto que tudo, tudo, começa por Cristo, e esta é a certeza de toda a minha vida. Vejo que quando fala de Cristo, Francisco enamora. Certamente, o mal explode e faz ruído; ao contrário do bem, que cresce na sombra. Olho a ordem do Verbo Encarnado (www.ive.org), que nos seus 25 anos no Este formou mais de 900 sacerdotes e 1.100 religiosas, mas alguém fala disso?
- Padre, que pode levar o Evangelho ao nosso mundo relativista e secularizado?
- Segundo Florenskiy e Soloviev a verdade, para manifestar-se, expressa-se no amor e o amor floresce em beleza. A beleza é a última expressão da verdade. As jovens claustrais do Este que vieram aqui para participar num curso de pintura de ícones encantaram-nos. Esses rostos límpidos, esses olhos. Não se pode estar perante a beleza sem colocar-se uma pergunta sobre Deus.
(Tradução de Helena Faccia Serrano, Alcalá de Henares)
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