O testemunho de um médico italiano, trabalhando há anos em Serra Leoa
Roma, 24 de Outubro de 2014 (Zenit.org) Luca Marcolivio
A trágica realidade do Ebola não é apenas uma emergência
sanitária, mas, em primeiro lugar, humana e antropológica. Para vencê-la
é necessário ajudar as populações atingidas a superar o medo do contacto
humano e do contágio. Será de grande utilidade as campanhas de
prevenção, especialmente se feitas entre as crianças.
A delicadíssima questão foi abordada na entrevista concedida a
Zenit, pelo Dr. Roberto Ravera, responsável pela estrutura complexa de
psicologia no ASL 1 de Imperia e presidente da FHM Itália Onlus, com
sede em Sanremo, através da qual se envolveu com o padre saveriano Bepi
Berton (1932-2013) em um projeto de assistência sanitária em Serra Leoa.
ZENIT: Dr. Ravera, como nasceu a sua experiência em Serra Leoa?
Dr. Ravera: Há décadas atrás comecei a cuidar de crianças-soldados:
eram centenas e centenas e precisavam de alguma ajuda. Desde então
nasceram vários projectos: construímos uma comunidade de acolhida e
aberto várias clínicas médicas nos centros mais pobres, tanto em algumas
aldeias quanto na capital Freetown. Em seguida, nos responsabilizamos
das cárceres infantis. Temos cerca de 25 operadores entre médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, educadores e professores, e realizamos
um projecto que, basicamente é um projecto de saúde mental, portanto que,
em primeiro lugar busca o bem-estar psicológico das crianças, no
entanto, devemos fazê-lo em um país onde há uma grande desconfiança
cultural contra o médico ou o psicólogo. Todo este programa, que dura há
algum tempo, recentemente se encontrou com a tragédia do Ebola. Tivemos
que fechar as clínicas e adaptar-nos a uma situação de emergência
gravíssima que existe no país e a nossa equipe se transformou em um
projecto de prevenção do Ebola.
ZENIT: Que consequências concretas a epidemia do Ebola trouxe a Serra Leoa?
Dr. Ravera: Há alguns meses atrás indiquei para o Ministério da Saúde
de Serra Leoa a emergência do que estava para acontecer e que foi
levado a sério. Gostaria, no entanto, que não se esquecesse uma coisa:
Serra Leoa é um país que não tem um serviço sanitário à altura, na
verdade, seria um serviço de saúde quase inexistente, se não fosse a
intervenção da cooperação internacional. Sendo já gravemente deficitário
em condições normais, imaginemos em uma situação grave como aquela do
Ebola, com a qual morreram vários operadores sanitários devido à falta de
protecção adequada. Acrescente-se a isso que uma cidade de 2 milhões de
habitantes como Freetown não tem serviços higiénicos, nem esgotos, nem
água corrente nas casas. Gostaria também de recordar que hoje se morre
de Ebola, mas se continua também a morrer, e em medida muito maior, de
parto, de malária ou de tifóide, justamente porque as pessoas não vão
aos hospitais. Existe, é verdade, especialmente nas aldeias, uma cultura
que faz com que as pessoas, não tendo referência sanitária, se dirijam
aos xamãs e feiticeiros: ter que pagar qualquer serviço de saúde é
difícil para pessoas que ganham um euro por dia. O problema, portanto, é
de uma gravidade sem precedentes e no momento actual é difícil encontrar
uma solução para tudo isso.
ZENIT: Em Serra Leoa e nos países vizinhos, portanto, o Ebola não é puramente uma emergência sanitária?
Dr. Ravera: Não, na verdade, do ponto de vista antropológico, há uma
mudança nas pessoas que vivem nas mesmas condições em que viveram
durante a guerra, mas, pelo menos havia uma sociabilidade, o inimigo era
visível, as áreas que deveriam ser evitadas eram claras. Hoje aquele
inimigo não existe mais, as pessoas aprenderam a não tocar-se, há uma
transformação, uma ansiedade generalizada assustadora que afecta
principalmente as crianças. As escolas estão fechadas há meses, as
crianças da nossa comunidade já vivem fechadas dentre das muralhas do
nosso centro, brincam entre si, não saem mais. Como é possível que
centenas de milhares de crianças tenham que viver um pesadelo como este?
Gostaria também de saber como é que o Ocidente não considera - antes
mesmo de se preocupar que o vírus possa se espalhar na Europa - o facto
de que o problema fundamental é que agora existe uma situação em que se
perdeu o controle.
A minha preocupação são as transformações mentais em uma população
que já foi provada por 12 anos de guerra e agora está vivendo esse
pesadelo com a sensação de ser abandonada. Também, muitos operadores
ocidentais, que antes eram responsáveis pela assistência, tiveram que
ir embora. Este sentimento de solidão, de ser abandonados é comum e é
muito forte.
Um grande problema será o pós-Ebola e não me refiro apenas às pessoas
que terão perdido seus entes queridos, mas também a reconstrução da
alma das pessoas que, depois de ter vivido 12 anos de guerra, depois dez
anos de paz, com a reconstrução das esperanças, viram perder tudo. A
economia da Sierra Leone entrou em colapso, as pessoas vêem o aumento
dos preços das necessidades básicas, ninguém trabalha mais, é como se um
mundo tivesse cristalizado e paralisado. Mas a vida das pessoas não se
cristaliza e não se paralisa, as pessoas devem respirar, devem tocar-se,
devem viver. É por isso que eu acredito que o que aconteceu na África
ocidental, do ponto de vista antropológico, é uma experiência única no
seu género.
ZENIT: Na sua opinião, quais são os melhores métodos de prevenção?
Dr. Ravera: Trabalhamos na prevenção, indo às aldeias e explicando o
problema em particular as crianças, que são mais receptivas e
'plásticas' do que os adultos e conseguem de alguma forma corrigir e
adquirir determinados comportamentos, como lavar as mãos frequentemente,
não comer carne, ir ao médico se sentirem sintomas suspeitos. Esse
nosso programa tem sido bem sucedido e o Ministério pediu-nos para
colaborar em outros bairros de Serra Leoa, no entanto, não temos os
meios para fazê-lo.
ZENIT: O risco de propagação de um surto de Ebola na Europa é real?
Dr. Ravera: Ninguém quer subestimar o risco e o perigo ligado a esta
doença, mas na Europa existe um serviço sanitário que é, de todas
formas, capaz de lidar com a situação. É claro que há riscos,
especialmente em uma eventual fase inicial. Não esqueçamos que vivemos
em condições higiénico-sanitárias muito melhores do que aquelas de Serra
Leoa. Portanto, pensar que aqui possa haver uma pandemia daquele tipo é
bem difícil. Além disso, em um país não distante como a Nigéria, os
casos de Ebola foram limitados, porque aquele país tem um sistema
sanitário e de protecção muito melhor do que o de Sierra Leone. Com
muito maior razão isso aconteceria aqui na Europa.
(24 de Outubro de 2014) © Innovative Media Inc.
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