A comunicação social vem acompanhando com todo o interesse, quase como se de uma novela se tratasse, a história de uma criança abandonada num caixote de lixo, logo após o parto, e providencialmente salva por um homem “sem abrigo” (ou vários, ainda não se sabe bem). A história teve, apesar de todo o dramatismo da situação, um final feliz: a criança sobreviveu, não foi privada do dom supremo que é a vida, ficará aos cuidados de uma família de acolhimento e um futuro de amor e felicidade para ela certamente se abre, com o que toda a opinião pública rejubila. Já alguém quis chamar à criança “Salvador” e já alguém associou a história à quadra natalícia que se avizinha.
Neste
contexto, questiona-se o que possa ter levado a mãe a tão insólito
comportamento, de extrema crueldade ou de todo incompreensível (conforme as
diferentes perspetivas). Na minha experiência profissional, já fui confrontado
com situações semelhantes, que, malogradamente, não tiveram um final feliz e
terminaram em infanticídio consumado. Em todas essas situações, era nítido o
contraste entre a extrema gravidade objetiva da conduta e condicionalismos de
também extrema dramaticidade existencial que podem atenuar a responsabilidade subjetiva
da mãe. Com frequência, há até quadros patológicos de anomalia psíquica,
eventualmente transitória, que podem conduzir a uma inimputabilidade, ou a uma
imputabilidade diminuída.
Mais
importante do que discutir a responsabilidade da mãe, importa – penso –
sublinhar o final feliz da história e lembrar que nos contextos mais dramáticos
a adoção da criança pode ser sempre uma solução que permite dar uma vida de
amor e felicidade a outros “Salvadores”. Uma solução que em tudo deve ser
facilitada e devidamente apoiada.
Não posso,
porém, deixar de refletir sobre o seguinte.
Nos
comentários a esta história, também se ouviu dizer, mais ou menos
explicitamente, que a mãe poderia, e deveria, ter abortado, com o que se teria
evitado o repugnante ato do abandono.
É verdade que
se assim fosse, se a mãe tivesse abortado, como sucede em milhares de outras
situações, já ninguém se impressionaria, já não se ouviria falar da situação
dramática da mãe, já ninguém se preocuparia com a sorte da criança e esta
ficaria irremediavelmente privada daquele futuro de amor e felicidade de que,
apesar de tudo, não foi privado o “Salvador”
E seria assim
tão diferente? Que a vida da criança terminasse um pouco mais cedo, numa fase
ainda mais precoce, seria assim tão diferente? Se assim fosse, e se tudo se
passasse numa clínica com cobertura legal, já o “Salvador” não teria direito à
compaixão da opinião pública?
Precisamente
porque nem sequer conseguiria comover outras pessoas com a imagem do seu
abandono e da sua morte, seria ainda mais vulnerável e indefeso (a expressão
máxima da vulnerabilidade, ou o “mais pobre dos pobres”, como dizia Santa
Teresa de Calcutá). Também acabaria, muito provavelmente, num caixote do lixo:
seria tratado como “lixo hospitalar”. E ninguém (ou quase ninguém!) se preocuparia
com ele. Nem sequer saberiam que ele chegou a existir. E, sobretudo, ela não
poderia vir a gozar de toda a beleza que é sempre a vida humana e de que virá a
gozar o “Salvador”.
Mas também há
quem salve alguns desses outros “Salvadores”. Poucos conhecem a ação das várias
associações que apoiam mulheres grávidas em dificuldade e com esse apoio evitam
que elas abortem. Essas associações não estão à espera de receber os aplausos
que justificadamente recebeu o homem “sem abrigo” que salvou o “Salvador”. Mas
também os mereciam. Mereciam, sobretudo, muitos mais apoios do Governo. Porque
elas salvam muitos “Salvadores”. E todos devem rejubilar sempre que uma vida
humana é salva, como todos rejubilam por ter sido salvo o “Salvador”.
Pedro Vaz Patto
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