No início do ano lectivo, Guidinha chegou a casa muito indignada: “Não posso perdoar. Ela foi má, bateu-me, nunca, nunca lhe vou perdoar.”
Ao
ouvi-la, o irmão um pouco mais velho, de sete anos, animou-a: “Não sabes que
devemos perdoar até setenta vezes sete?”
Aqui, a mãe entrou na conversa, pedindo ao filho que lhe explicasse o que acabara de dizer. Ao que o pequeno respondeu: “Oh! Mãe. Eu explicar não sei porque ainda não dei a multiplicação.”
O episódio veio-me à memória na proximidade do mês de Novembro, o mês dos defuntos. Os nossos avós contaram-nos algumas histórias acerca do comportamento de familiares seus, quase sempre relacionadas com pedidos de perdão ou “fazer as pazes” no final da vida. Confesso que esta expressão me fez pensar várias vezes no seu significado. Que quereria isto dizer? Não se assina a paz, no singular, entre dois países que estiveram em guerra? Haveria várias “guerras” entre os protagonistas dos episódios narrados? Finalmente, surgiu na boca de um moribundo a serena expressão de alívio: “Já posso morrer. Agora estou em paz com o meu irmão e com Deus”.
Estas
recordações, que eram tão comuns nos momentos anteriores à agonia, levam-nos
novamente à questão da aritmética: “Perdoar até setenta vezes sete”. O seu
autor, Jesus Cristo, usou-a para responder à pergunta de S. Pedro que achava
que perdoar sete vezes ao seu irmão já era muito. Porém, o Mestre não usou esta
norma de “perdoar setenta vezes sete” para si. Era demasiado curta para o
Salvador. Demasiado curta e leve, pois aplicou o seu perdão às grandes,
demoradas e pesadas penas que lhe infligiram desde a casa de Pilatos até ao
monte Calvário. Prestes a expirar, já suspenso da Cruz há algumas horas, pediu:
“Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que
fazem.”
Não
sei se Jesus “já tinha dado a multiplicação” mas, pelas minhas contas e não só,
o seu perdão superou em muito as quatrocentas e noventa (70x7) vezes devidas ao
perdão. No caso de Jesus, o seu perdão é dispensado, primeiro a algumas pessoas
isoladas, para se oferecer, depois, a todos os pecadores arrependidos. Com a
sua Ascensão ao Céu, deu por finda a sua pregação e a explicação de quanto os
seus Apóstolos deviam fazer. Pelo envio do Espírito Santo sobre a Virgem Maria
e o grupo reduzido dos seus discípulos, deu a estes homens a sabedoria e a
coragem de ensinarem a Boa Nova do Reino dos Céus e o poder de perdoar todos os
pecados de todos nós, os que vamos pedindo perdão, até ao final dos tempos. E
muito mais do que “setenta vezes sete”.
É curioso reparar como, para ensinar a perdoar ou fazer apostolado, como o irmão da Guidinha, nem necessitamos “ter dado a multiplicação”.
Isabel Vasco Costa
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