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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Discurso de ódio

A legislação de vários países (e nelas se inclui o Código Penal português) vem criminalizando o chamado “discurso de ódio” (“hate speech”), isto é, o incitamento à violência, ao ódio e à discriminação em razão da raça, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, e também a injúria ou difamação em razão de alguma dessas características. Essa criminalização de algum modo contraria uma tendência oposta da nossa época, no sentido de uma cada vez mais alargada (a ponto de quase se tornar absoluta) proteção da liberdade de expressão.

Tive ocasião de ouvir sobre esta questão Paul Coleman, diretor executivo da organização Alliance Defending Freedom, dedicada à defesa da liberdade religiosa, da vida e da família. A sua tese (exposta também no seu livro Censored, Kairos Publication, Viena, 2016) é a de que essas leis são um perigo para a liberdade de expressão em geral e, de modo especial, também para a liberdade de expressão dos cristãos. Elas têm servido para censurar a voz de muitos cristãos em temas controversos, como os relativos à homossexualidade. Há vários exemplos de queixas ou participações apresentadas contra bispos que exprimiram a doutrina da Igreja sobre a prática homossexual, ou contra pregadores evangélicos que citam passagens bíblicas a tal relativas. Nalguns casos, pessoas que se pronunciaram sobre essa questão chegaram a ser condenadas judicialmente (condenações nem sempre confirmadas, porém, pelos tribunais de recurso). E tal verifica-se mesmo quando se distingue entre a condenação do “erro” e o respeito pela “pessoa que erra”. O carácter muito impreciso dos conceitos tem facilitado essas queixas e participações, as quais, mesmo quando não resultam em condenações, contribuem para um clima geral de auto-censura.

Reconheço esse perigo, mas não advogo a pura e simples descriminalização do chamado “discurso de ódio”. Não devemos esquecer-nos de que os cristãos também podem ser, e são-no muitas vezes, vítimas de discursos de ódio. Está em causa, antes, uma correta interpretação e aplicação dessas leis.

Há que distinguir a livre discussão de ideias (sobre a religião, sobre os cristianismo, sobre o Islão, sobre a prática homossexual) do que é ofensivo para com as pessoas (e também para com os seus sentimentos religiosos).

Às ideias (mesmo que sejam erróneas, injustas, chocantes ou absurdas) pode responder-se no plano do debate racional e da argumentação. Esse debate é sempre salutar numa sociedade aberta, livre e democrática. Ninguém deve recear esse debate, sobretudo quem está seguro de que, como afirma a declaração do Vaticano II sobre liberdade religiosa, «a verdade se impõe pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte»; ou, de acordo com o dito popular, «a verdade é como o azeite: acaba sempre por vir ao de cima».

Outra coisa são os insultos. Aos insultos não pode responder-se no plano do debate de ideias. Aos insultos não pode responder-se senão com o silêncio ou com outro insulto. Um insulto pode ferir tanto ou mais do que uma agressão física. E uma ofensa aos sentimentos religiosos (que se distingue da crítica a uma qualquer religião) também pode ferir tanto ou mais do que uma ofensa pessoal. E dessa forma se gera o ódio e se facilita, mais ou menos diretamente, a violência. Não é assim que se fortalece a sociedade livre, aberta e democrática.

É verdade que esta distinção, entre a crítica e discussão de ideias e o insulto, nem sempre é fácil, e que formas de expressão menos felizes ou delicadas podem não refletir a verdadeira intenção da pessoa. Mas não podemos recusar essa distinção, para salvaguardar a harmonia social, a dignidade humana, a paz e a liberdade.

Pedro Vaz Patto




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