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domingo, 23 de agosto de 2020

A “Ideologia do Género” e o ensino

O Papa Francisco já por várias vezes usou a expressão “colonização ideológica” para criticar a tentativa de imposição da “ideologia do género”, designadamente no âmbito do ensino, encarado como um meio eficaz de doutrinação e transformação da mentalidade corrente. Pretende-se que as crianças, desde a mais tenra idade, se habituem à ideia de que o género será uma escolha independente do sexo de nascença, e que não haverá modelos de família de referência, como não serão modelos de referência a paternidade e a maternidade.

Assim, por exemplo, o projeto de lei que no momento em que escrevo está em discussão em Espanha «contra a discriminação por orientação sexual, identidade ou expressão de género e características sexuais, e de igualdade social de lésbicas, gays bissexuais transsexuais, transgénero e intersexuais» impõe a «diversidade de género e familiar» como conteúdo obrigatório da educação infantil. Questões análogas têm suscitados polémicas em França, Itália e noutros países.

            Uma revolução antropológica

A “ideologia do género” parte da distinção entre sexo e género, a qual se insere na distinção mais ampla entre natureza e cultura. O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física entre homem e mulher. O género representa a construção histórico-cultural da identidade masculina e feminina (os comportamentos, funções e papeis que a sociedade e a cultura atribuem aos homens e às mulheres). Até aqui, nada de novo, ou ideológico. É uma evidência que as diferenças de papeis e funções de homens e mulheres variam no espaço e no tempo; hoje as mulheres exercem profissões que lhes foram vedadas durante séculos. A novidade reside na afirmação ideológica de que o género assim concebido deve sobrepor-se ao sexo assim concebido; a cultura deve sobrepor-se à natureza. O género não tem de corresponder ao sexo, corresponde a uma escolha subjetiva, que vai para além dos dados naturais e objetivos: posso escolher ser mulher mesmo que não o seja biologicamente. A diferença sexual entre homem e mulher em sentido natural e imutável estará na base da opressão da mulher (qualquer forma de definição de uma especificidade feminina é opressora para com a mulher; a maternidade como especificidade feminina é sempre uma discriminação injusta).

Se os dados naturais não impõem a esolham do género a nível individual,, também não imporão como normativa a união entre pessoas de sexo diferente. É indiferente a escolha de se ligar a pessoas de outro ou do mesmo sexo. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e uniões homossexuais. A união heterossexual será apenas uma entre várias possívesis formas de família. O seu predomínio resulta apenas de condicionalismos socias e culturais. Privilegiá-la como modelo de referência (o heterocentrismo) é discriminatório e opressor.

Deixa, por isso e também, de falar-se em “paternidade” e “maternidade” como modelos de referência para a geração e educação e passa a falar-se em “parentalidade” indistinta, incluindo nesta a “homoparentalidade”. Dissocia-se em absoluto a sexualidade da procriação: o recurso à procriação artificial (incluindo a “maternidade de substituição”) é visto como uma alternativa à procriação natural, e não como forma de suprir a infertilidade patológica.

Podemos dizer que a “ideologia do género” tem subjacente uma vsão antropológica contrária à visão judaico-cristã e à visão de outras culturas tradicionais.

Afirmou, a este propósito, o Papa emérito Bento XVI no seu (célebre) discurso à Cúria Romana de 21 de dezembro de 2012:

«Salta aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente. O homem contesta o facto de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um facto pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração bíblica da criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por Deus como homem e como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano, como Deus o fez. É precisamente esta dualidade como ponto de partida que é contestada. Deixou de ser válido aquilo que se lê na narração da criação: “Ele os criou homem e mulher” (Gn 1,27). Isto deixou de ser válido, para valer que não foi Ele que os criou homem e mulher, mas teria sido a sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a decidir sobre isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da pessoa humana, já não existem. O homem contesta a sua própria natureza; agora; é só espírito e vontade. A manipulação da natureza, que hoje deploramos em relação ao meio ambiente, torna-se aqui a escolha básica do homem a respeito de si mesmo. Agora existe apenas o homem em abstrato, que em seguida escolhe para si, autonomamente, qualquer coisa como sua natureza. Homem e mulher são contestados como exigência, ditada pela criação, de haver formas de pessoa humana que se completam mutuamente. Se, porém, não há a dualidade de homem e mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família como realidade pré-estabelecida pela criação. Mas, em tal caso, também a prole perdeu o lugar que até agora lhe competia, e a dignidade particular que lhe é própria; Bernheim mostra como o filho, de sujeito jurídico que era com direito próprio, passe agora necessariamente a objeto, ao qual se tem direito e que, como objeto de um direito, se pode adquirir».

A “ideologia do género” pretende contrariar o «livro da natureza» que, segundo o Papa emérito, «é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral» (Caritas in veritate, 51). 

O Papa Francisco, nesta linha, tem qualificado a “ideologia do género” como «pecado contra o Deus Criador». Afirma na exortação apostólica Amoris Laetitia (n. 56):

«Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada».

E na encíclica Laudato sì (n. 155):

«A ecologia humana implica também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma “ecologia do homem”, porque “também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece”. Nesta linha, é preciso reconhecer que o nosso corpo nos põe em relação directa com o meio ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda “cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela”».

Podemos dizer que a “ideologia do género” contraria a verdade objetiva do anor humano. Esta verdade é determinada por conteúdos objetivos que não dependem do arbítrio, pois o corpo humano contem uma linguagem e um significado que devem ser interpretados e respeitados. O significado da sexualidade humana corresponde a um desígnio maravilhoso que a pessoa deve acolher, que não deve ser contrariado, porque foi concebido por Deus para o maior bem da própria pessoa. Desses conteúdos fazem parte a aceitação do valor da dualidade sexual, a vocação à doação e à entrega totais a outra pessoa como ser único e irrepetível e a abertura fecunda à vida.

Sobre a “ideologia do género” afirma a carta pastoral da Conferência Episcopal portuguesa de 14 de março de 2013:

«Reflete um subjetivismo relativista levado ao extremo, negando o significado da realidade objetiva. Nega a verdade como algo que não pode ser construído, mas nos é dado e por nós descoberto e recebido. Recusa a moral como uma ordem objetiva de que não podemos dispor. Rejeita o significado do corpo: a pessoa não seria uma unidade incindível, espiritual e corpórea, mas um espírito que tem um corpo a ela extrínseco, disponível e manipulável. Contradiz a natureza como dado a acolher e respeitar. Contraria uma certa forma de ecologia humana, chocante numa época em que tanto se exalta a necessidade de respeito pela harmonia pré-estabelecida subjacente ao equilíbrio ecológico ambiental. Dissocia a procriação da união entre um homem e uma mulher e, portanto, da relacionalidade pessoal, em que o filho é acolhido como um dom, tornando-a objeto de um direito de afirmação individual: o “direito” à parentalidade.

«(...) É certo que a pessoa humana não é só natureza, mas é também cultura. E também é certo que a lei natural não se confunde com a lei biológica. Mas os dados biológicos objetivos contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação que a inteligência pode descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe e não como algo que se pode manipular arbitrariamente. A pessoa humana é um espírito encarnado numa unidade bio-psico-social. Não é só corpo, mas é também corpo. As dimensões corporal e espiritual devem harmonizar-se, sem oposição. Do mesmo modo, também as dimensões natural e cultural. A cultura vai para além da natureza, mas não se lhe deve opor, como se dela tivesse que se libertar.»

O valor da dualidade e conplementaridade sexual; homem e mulher chamados à comunhão

A “ideologia do género” esquese e desvaloriza o sentido e alcance da dualidade e complementaridade sexual. O sentido dessa dualidade é o do apelo à relação e à comunhão. Só nessa relação e comunhão a pessoa humana se realiza. Cada um dos sexos não exprime, por si só, a riqueza do humano na sua plenitude. Só na comunhão entre eles tal se verifica. A diferença básica que representa a dualidade sexual é, pois, uma ocasião de enriquecimento recíproco, não de oposição e conflito.

O homem e a mulher são chamados à comunhão porque só ela os completa e permite a geração de novas vidas. A família, célula básica da sociedade, assenta na colaboração das dimensões masculina e feminina. É esta que garante a geração de novas vidas, mas também o equilíbrio harmonioso e completo da educação destas, o qual supõe o contributo insubstituível de um pai e de uma mãe.

E se é assim na família como célula base da sociedade, também o é em todos os âmbitos desta. Todos eles, da política, ao trabalho e à cultura, benefeciam com o contributo de homens e mulheres no que ele tem de específico. E também é assim na vida da Igreja.

O Papa Francisco afirmou, no seu discurso à comunidade do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimónio e Família, de 27 de outubro de 2016:

«A incerteza e a desorientação que atingem os afetos fundamentais da pessoa e da vida desestabilizam todos os vínculos, familiares e sociais, fazendo prevalecer cada vez mais o “eu” sobre o “nós”, o indivíduo sobre a sociedade. É um êxito que contrasta com o desígnio de Deus, o qual confiou o mundo e a história à aliança do homem e da mulher (Gn 1, 28-31). Esta aliança — pela sua própria natureza — implica cooperação e respeito, dedicação generosa e responsabilidade partilhada, capacidade de reconhecer a diferença como uma riqueza e uma promessa, não como um motivo de sujeição nem de prevaricação.»

Colonização ideológica – da tolerância à imposição

A “ideologia do género” penetrou nos centros de poder político e legislativo, nacional e internacional Dessa penetração são reflexo a redefinição do casamento de modo a nela incluir uniões entre pessoas do mesmo sexo, as leis que permitem a adoção por pares do mesmo sexo, as leis que permitem o recurso à procriação artificial (incluindo a chamada “maternidade de substituição”) fora do âmbito da infertilidade patológica, a admissibilidade de cirurgias de “mudança de sexo”, e as leis que permitem a mudança do sexo oficialmente reconhecido independentemente das características fisiológicas do requerente. E até a generalização da expressão “igualdade de género”, em vez de “igualdade de sexos” ou “igualdade entre homem e mulher”.

Se, inicialmente, essa penetração se apresentou em nome da não discriminação e da tolerância para com as minorias («é lá com eles» - diziam muitos dos que aceitaram a legalização do casamento homossexual sem aderirem à “ideologia do género”), hoje assistimos a sinais crescentes de tentativa de imposição dessa ideologia como ideologia oficial, que deve inspirar o ensino (público e privado), a comunicação social, a deontologia profissional e limitar até liberdade de expressão do pensamento.

Parece-me adequada, a este propósito, a expressão “colonização ideológica”, a que tem recorrido o Papa Francisco, por dois motivos.

Por um lado, porque estamos perante uma notória tentativa de sobreposição da ideologia à realidade, confirmando aquilo que já se disse a este respeito: se os factos não confirmam a ideologia, «tanto pior para os factos».

Assim, em nome da ideologia, pretende-se negar, ou tornar irrelevante, a biologia, como se a pessoa não fosse uma unidade que a integra. Advoga-se a licitude das cirurgias de mudanças de sexo, e até do bloqueio da evolução pubertária em crianças e jovens pretensamente “transgénero”, tudo com base numa perceção subjetiva contrária aos dados objetivos. Especialistas consideram estas práticas uma «perigosa experiência de engenharia social», «baseada na ideologia e não na ciência», salientando que a grande maioria de casos de “disforia de género” em menores são superados, sendo que o bloqueio da evolução pubertária acarreta graves e irreversíveis danos. Também são muitos os casos de pessoas que se arrependem de cirurgias de “mudança de sexo”[1], mudança que acaba por ser ilusória, dada a dimensão genética do sexo, que é obviamente inalterável. O psiquiatra Paul Mc Hugh afirma que essas práticas mascaram e exacerbam o problema da “disforia de género”, sem o resolver, que delas resultam apenas homens efeminados e mulheres masculinizadas, e não quaisquer verdadeiras mudanças de sexo.

Também é uma negação da realidade a regra (que se pretende impor em vários Estados norte-americanos, dando origem a polémicas que chegam aos tribunais: a chamada WC War) de frequência de casas de banho, balneários e dormitórios segundo o “género” (escolhido) e não segundo o sexo (biológico): afinal, são só as diferenças biológicas, e não outras, as que justificam a separação.

Por outro lado, deve falar-se em “colonização” porque não estamos perante uma espontânea transformação de mentalidades, pretende-se que esta seja imposta coercivamente.

Isso traduz-se, desde logo, em tentativas de limitação da liberdade de expressão.

Vão-se multiplicando tentativas de condenação, incluindo no foro criminal, de pessoas que manifestam uma visão contrária à “ideologia do género”. Assim, contra vários bispos espanhóis (de Pamplona, de Valência, de Granada e de Alcalá de Henares), por exporem a doutrina católica sobre a prática homossexual. Ou contra o bispo de Solsona, na Catalunha, por afirmar que a ausência do pai está na origem da homossexualidade. Desde a condenação do pastor sueco Ake Green (absolvido só em segunda instância), vêm-se sucedendo condenações e tentativas de condenação de pregadores protestantes que citam textos bíblicos contrários à prática homossexual. O político francês Christian Vanneste foi condenado em primeira instância (também absolvido em recurso) por afirmar a danosidade da prática homossexual à luz da máxima kantiana relativa às consequências da universalização de um comportamento. Nem sempre estes casos se traduzem, pois, em condenações definitivas. Mas a condenação da política francesa Christine Boutin, por ter citado o Levítico qualificando a prática homossexual como “abominação”, foi definitivamente confirmada pelo tribunal de recurso.

Para fundamentar tais condenações, é invocada legislação contra as chamadas “homofobia” ou “transfobia” e o “discurso de ódio” (“hate speech”). Legislação que, numa interpretação que salvaguarde o núcleo essencial da liberdade de expressão e da liberdade religiosa, deve distinguir a livre discussão de ideias do desrespeito para com as pessoas e a sua dignidade, a livre condenação do eventual erro do respeito sempre devido à pessoa que possa errar

Mas o Supremo Tribunal canadiano, quando confirmou, em recurso, a condenação, por parte da Comissão de Direitos Humanos da Província de Saskatchewann, de uma pessoa que distribuiu panfletos que condenavam a prática homossexual (apelando aos ensinamentos bíblicos), não aceitou a relevância desta distinção, considerando que existe uma forte conexão entre a orientação sexual e a conduta sexual, e que quando a conduta visada pelo discurso é um aspeto crucial da identidade de um grupo vulnerável, os ataques a esta conduta são equiparáveis aos ataques ao próprio grupo[2].

Outro aspeto da limitação da liberdade que é consequência da imposição da “ideologia do género” diz respeito à liberdade contratual.

Em vários países já foram condenadas pessoas (pasteleiros, floristas, fotógrafos ou proprietários de restaurantes) que, por razões de consciência, se recusam a colaborar em casamentos entre pessoas do mesmo sexo[3]. Há propostas de leis de Estados norte-americanos (Geórgia; Mississipi; Indiana) que pretendem garantir esse direito, em nome da liberdade religiosa e de consciência. Mas tais Estados enfrentam ameaças de boicote por parte de grandes empresas, o que levou vários políticos a abandonar tais propostas.

Nestas situações, há que distinguir a discordância em relação a um ato com que não se quer colaborar por razões de consciência (neste caso o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo) da regra geral de não discriminação de pessoas dotadas de igual dignidade. As pessoas em questão não recusavam a prestação de quaisquer outros tipos de serviços a pessoas homossexuais em razão desta sua característica. Não infringiam, pois, tal regra de não discriminação.

Noutro aspeto, a tentativa de imposição da ideologia do género, traduz-se em limitação da autonomia profissional.

        Leis de vários Estados (e comunidades autónomas, em Espanha), e normas emanadas de associações profissionais, proíbem qualquer terapia de mudança de orientação sexual não desejada ou de mudança de identidade de género não desejada[4]. Mas já admitem, sem restrições, cirurgias de “mudança de sexo”. Invoca-se, para tal, um suposto “consenso científico” sobre a ineficácia e danosidade dessas terapias. Mas esse consenso não existe[5]. São razões ideológicas que conduzem a tais proibições, pois admitir a possibilidade de mudança de orientação sexual significa admitir que esta não é inata e constitutiva da identidade da pessoa. 

E podem evocar-se outros exemplos de limitação da liberdade consequência da tentativa de imposição da “ideologia do género”.

Nos Estados Unidos, o Gender Identity Mandate obsta à invocação da objeção de consciência por parte de médicos que se recusem a praticar cirurgias de “mudança de sexo” (questão que já chegou aos tribunais, tendo um tribunal do Texas reconhecido esse direito dos médicos, numa decisão recente).

No Canadá, a lei que regula a adoção (Bill 89 Supporting Children Teenth and Family Act), exige que o casal adotante não tenha uma visão negativa da conduta homossexual.

São várias as leis que impõem, a qualquer pessoas e em qualquer âmbito da vida social, a obrigação de identificação das pessoas transsexuais pelo seu género (escolhido), e não pelo seu sexo (biológico).

Todas estas limitações da liberdade (da liberdade religiosa e de consciência, da liberdade de expressão, de liberdade de educação, da liberdade contratual, da autonomia profissional) confluem no já referido projecto de lei atualmente em discussão em Espanha, «contra a discriminação por orientação sexual, identidade ou expressão de género e características sexuais, e de igualdade social de lésbicas, gays bissexuais transsexuais, transgénero e intersexuais», projeto que chega a prever a destruição de livros, o bloqueio de páginas da internet e a doutrinação de funcionários públicos e jornalistas, Alguns dos seus críticos já lhe atribuíram o epíteto de ley mordaza[6].    

A “ideologia do género” e o ensino

Um importante âmbito de penetração impositiva da “ideologia do género” é o do ensino, encarado como um meio eficaz de doutrinação e transformação da mentalidade corrente (a esta questão também se tem referido o Papa Francisco). Pretende-se que as crianças, desde a mais tenra idade, se habituem à ideia de que o género é uma escolha independente do sexo de nascença, e que não há modelos de família de referência, como não são modelos de referência a paternidade e maternidade. A educação deverá servir para desconstruir os chamados estereótipos de género, nestes se incluindo qualquer forma de especificidade masculina e feminina (não apenas as que possam ser consideradas injustamente discriminatórias), incluindo no vestuário e nas brincadeiras espontâneas (com bonecas ou carrinhos).

E a tentativa de imposição estende-se até ao ensino não estatal.

Nesta linha, podem ser assinalados, como exemplos, a condenação em multa, do diretor do colégio espanhol Juan Pablo II, de Alcorcon, ou a política do Estado canadiano de Yukon de recusa de financiamento público de escolas que ensinem a doutrina católica sobre a prática homossexual.

Contra esta tentativa de imposição da “ideologia do género” no ensino, estatal e não estatal, podem invocar-se relevantes normas de direito internacional e de direito constitucional português. Assim, o artigo 26,º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estatui: «Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos». Estatui, por seu turno, o artigo 2.º do Protocolo nº 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. «O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar essa educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas». E estatui o artigo 43.º.n.º 2, da Constituição portuguesa: «O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas políticas, ideológicas ou religiosas».

       Importa, de qualquer modo, esclarecer bem o alcance da recusa da imposição da “ideologia do género”, no âmbito do ensino e noutros âmbitos.

O Papa Francisco tem salientado com insistência que a condenação dos erros da “ideologia do género” não implica faltar à caridade para com qualquer pessoa que experimente atração por pessoas do mesmo sexo (facto que não depende da sua vontade e pode, para ela representar, uma provação), tenha uma prática homossexual ou se considere de um género diferente do seu sexo (transsexual).

A respeito das pessoas com tendência homossexual, o Papa Francisco com frequência alude ao Catecismo da Igreja Católica, que afirma (n. 2538) que elas devem ser tratadas «com respeito compaixão e delicadeza», e que contra elas deve ser evitada qualquer «discriminação injusta». Na conferência de imprensa durante o voo de regresso da viagem à Geórgia e Azerbeijão, afirmou: «As pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. Quando chega diante de Jesus uma pessoa que tem esta condição, com toda a certeza Jesus não lhe dirá: “Vai-te embora porque és homossexual”». E o mesmo afirmou em relação a pessoas transsexuais.

Por isso, são de condenar todas as formas de ódio, violência, injúria, humilhação ou bullying de que qualquer destas pessoas possa ser vítima. Não podemos ignorar que é muitas vezes a exigência de evitar alguma destas situações que serve de pretexto para implementar a “ideologia do género”. Condenar esta não significa aceitar alguma dessas situações.

Também é verdade que a ideia de especificidade masculina e feminina tem servido, ao longo da história, para consolidar divisões de tarefas rígidas e esteriotipadas, que, sobretudo, limitaram o papel da mulher na sociedade. Contra essas limitações, é justo reagir. As especificidades masculina e feminina não são algo de rígido (e daí também a sua beleza) e são assumidas por cada pessoa como ser único e irrepetível (nem todos os homens são iguais, nem todas as mulheres são iguais, cada homem é homem a seu modo, cada mulher é mulher a seu modo). Isso mesmo salientam a nota da Conferência Episcopal Portuguesa já referida e a exortação apostólica Amoris Laetittia. Nesta se afirma (n. 286):

«É verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual existem elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira flexível à condição laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou alguns aspetos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa um fracasso, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como normais estes “intercâmbios” sadios que não tiram dignidade alguma à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições reais do matrimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas potencialidades.»

Outra coisa é, porém, como faz a “ideologia do género”, negar qualquer especificidade masculina ou feminina, ou desvalorizar a paternidade e matermidade no que têm de insubstituível. Nem todas as diferenças são socialmente construídas, há as que são espontâneas (como podem ser, até certo ponto, os jogos e brincadeiras de rapazes e meninas) e baseadas em dados biológicos (a partir de diferentes configurações cerebrais). Poderá ser tão opressora a imposição de estereótipos socialmente construídos como a igualmente arbitrária e artificial negação dessas diferenças. Diz também o Papa Francisco na Amoris Laetitia (n. 173): «Aprecio o feminismo, quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade.» E também (n. 175): «Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança.»

                                                                       Pedro Vaz Patto


[1] Ver www.sexchangeregret.com

[3] No momento em que escrevo, estão pendentes nos tribunais norte-americanos os casos dos pasteleiros Aaaron e Melissa Klein, de Gresham (Oregon), e de Jack Philips, de Lakewood (Colorado), assim como o da florista  Barronelle Stutzman, de Richland (Washington).

[4] No momento em que escrevo, estão em discussão linhas guia da Ordem dos Psicólogos portuguesa que vão nesse sentido.

[5]Contra tal suposto consenso pode ver-se o estudo de Lawrence Mayer e Paul Mc Hugh «Sexuality and Gender Findings from the Biological Psicological and Social Sciences», em New Atlantis, n.º 50, 2016 (www.thenewatlantis.com/docLib/20160819_TNA50SexualityandGender.pdf) e o estudo da National Association for Research and Therapy of Homosexuality publicado no Journal of Human Sexuality, vol I, (https://static1.Squarespace.com/static/5527394ae4b0ab26ec1c196b/t/557b0f80e4b08777d54df70c/1434128256329/What-research-shows -homosexuality.NARTH_.pdf). E podem ver-se os testemunhos de mudança de Luca del Tove (Erro Gsy A Medjugorje ho ritrovato me stesso Piemme 2008 Milão) e de Richard Cohen (Abriendo las Puertas del Armario lo que no sabias sobre la homosexualidad, tradução espanhola, Libroslibres Madrid 2013).

[6] Críticas pormenorizadas a esse projeto de lei surgiram do Foro Espanol de la Familia (ver https://www.forofamilia.org/notas-de-prensa/el-foro-de-la-familia-manifiesta-su-apoyo-al-derecho-de-los -padres-para-decidir-en-libertad-la-educacion-de-sus-hijos-en-materia-de-sexualidad) e da Aliança Evangélica Espanhola (ver http://www.aeesp.net/2017/07/13/proposicion-de-ley/)


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