O Papa Francisco já por várias vezes usou a expressão “colonização ideológica” para criticar a tentativa de imposição da “ideologia do género”, designadamente no âmbito do ensino, encarado como um meio eficaz de doutrinação e transformação da mentalidade corrente. Pretende-se que as crianças, desde a mais tenra idade, se habituem à ideia de que o género será uma escolha independente do sexo de nascença, e que não haverá modelos de família de referência, como não serão modelos de referência a paternidade e a maternidade.
Assim, por exemplo, o projeto de lei que no momento em que escrevo está em discussão em Espanha «contra a discriminação por orientação sexual, identidade ou expressão de género e características sexuais, e de igualdade social de lésbicas, gays bissexuais transsexuais, transgénero e intersexuais» impõe a «diversidade de género e familiar» como conteúdo obrigatório da educação infantil. Questões análogas têm suscitados polémicas em França, Itália e noutros países.
Uma revolução antropológica
A
“ideologia do género” parte da distinção entre sexo e género, a qual se
insere na distinção mais ampla entre natureza
e cultura. O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física
entre homem e mulher. O género
representa a construção histórico-cultural da identidade masculina e feminina (os
comportamentos, funções e papeis que a sociedade e a cultura atribuem aos
homens e às mulheres). Até aqui, nada de novo, ou ideológico. É uma evidência
que as diferenças de papeis e funções de homens e mulheres variam no espaço e
no tempo; hoje as mulheres exercem profissões que lhes foram vedadas durante
séculos. A novidade reside na afirmação ideológica de que o género assim concebido deve sobrepor-se
ao sexo assim concebido; a cultura deve sobrepor-se à natureza. O género não tem de corresponder ao sexo, corresponde a uma escolha subjetiva, que vai para além dos
dados naturais e objetivos: posso escolher ser mulher mesmo que não o seja
biologicamente. A diferença sexual entre homem e mulher em sentido natural e
imutável estará na base da opressão da mulher (qualquer forma de definição de
uma especificidade feminina é opressora para com a mulher; a maternidade como
especificidade feminina é sempre uma discriminação injusta).
Se
os dados naturais não impõem a esolham do género
a nível individual,, também não imporão como normativa a união entre pessoas de
sexo diferente. É indiferente a escolha de se ligar a pessoas de outro ou do
mesmo sexo. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e uniões
homossexuais. A união heterossexual será apenas uma entre várias possívesis
formas de família. O seu predomínio resulta apenas de condicionalismos socias e
culturais. Privilegiá-la como modelo de referência (o heterocentrismo) é discriminatório e opressor.
Deixa,
por isso e também, de falar-se em “paternidade” e “maternidade” como modelos de
referência para a geração e educação e passa a falar-se em “parentalidade”
indistinta, incluindo nesta a “homoparentalidade”. Dissocia-se em absoluto a
sexualidade da procriação: o recurso à procriação artificial (incluindo a “maternidade
de substituição”) é visto como uma alternativa à procriação natural, e não como
forma de suprir a infertilidade patológica.
Podemos
dizer que a “ideologia do género” tem subjacente uma vsão antropológica
contrária à visão judaico-cristã e à visão de outras culturas tradicionais.
Afirmou,
a este propósito, o Papa emérito Bento XVI no seu (célebre) discurso à Cúria
Romana de 21 de dezembro de 2012:
«Salta aos olhos a
profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está
subjacente. O homem contesta o facto de possuir uma natureza pré-constituída
pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Nega a sua própria
natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um facto pré-constituído, mas
é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração bíblica da criação,
pertence à essência da criatura humana ter sido criada por Deus como homem e
como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano, como Deus o fez. É
precisamente esta dualidade como ponto de partida que é contestada. Deixou de
ser válido aquilo que se lê na narração da criação: “Ele os criou homem e
mulher” (Gn 1,27). Isto deixou de ser
válido, para valer que não foi Ele que os criou homem e mulher, mas teria sido
a sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a
decidir sobre isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da
pessoa humana, já não existem. O homem contesta a sua própria natureza; agora;
é só espírito e vontade. A manipulação da natureza, que hoje deploramos em
relação ao meio ambiente, torna-se aqui a escolha básica do homem a respeito de
si mesmo. Agora existe apenas o homem em abstrato, que em seguida escolhe para
si, autonomamente, qualquer coisa como sua natureza. Homem e mulher são
contestados como exigência, ditada pela criação, de haver formas de pessoa
humana que se completam mutuamente. Se, porém, não há a dualidade de homem e
mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família como
realidade pré-estabelecida pela criação. Mas, em tal caso, também a prole
perdeu o lugar que até agora lhe competia, e a dignidade particular que lhe é
própria; Bernheim mostra como o filho, de sujeito jurídico que era com direito
próprio, passe agora necessariamente a objeto, ao qual se tem direito e que,
como objeto de um direito, se pode adquirir».
A “ideologia do género” pretende contrariar o
«livro da natureza» que, segundo o Papa emérito, «é uno e indivisível, tanto
sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do
matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento
humano integral» (Caritas in veritate,
51).
O
Papa Francisco, nesta linha, tem qualificado a “ideologia do género” como
«pecado contra o Deus Criador». Afirma na exortação apostólica Amoris Laetitia (n. 56):
«Não caiamos no pecado de pretender
substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação
precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a
guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la
como ela foi criada».
E na encíclica Laudato sì (n. 155):
«A ecologia humana implica também algo de muito
profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante:
a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua
própria natureza. Bento
XVI dizia que existe uma “ecologia do homem”, porque “também
o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe
apetece”. Nesta linha, é preciso reconhecer que o nosso corpo nos põe em
relação directa com o meio ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do
próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo
inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica de domínio
sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio
sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a
respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira ecologia humana.
Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou
masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que
é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou
da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é
salutar um comportamento que pretenda “cancelar a diferença sexual, porque já não
sabe confrontar-se com ela”».
Podemos
dizer que a “ideologia do género” contraria a verdade objetiva do anor humano.
Esta verdade é determinada por conteúdos objetivos que não dependem do
arbítrio, pois o corpo humano contem uma linguagem e um significado que devem
ser interpretados e respeitados. O significado da sexualidade humana
corresponde a um desígnio maravilhoso que a pessoa deve acolher, que não deve
ser contrariado, porque foi concebido por Deus para o maior bem da própria
pessoa. Desses conteúdos fazem parte a aceitação do valor da dualidade sexual,
a vocação à doação e à entrega totais a outra pessoa como ser único e
irrepetível e a abertura fecunda à vida.
Sobre
a “ideologia do género” afirma a carta pastoral da Conferência Episcopal
portuguesa de 14 de março de 2013:
«Reflete um
subjetivismo relativista levado ao extremo, negando o significado da realidade
objetiva. Nega a verdade como algo que não pode ser construído, mas nos é dado
e por nós descoberto e recebido. Recusa a moral como uma ordem objetiva de que
não podemos dispor. Rejeita o significado do corpo: a pessoa não seria uma
unidade incindível, espiritual e corpórea, mas um espírito que tem um corpo a
ela extrínseco, disponível e manipulável. Contradiz a natureza como dado a
acolher e respeitar. Contraria uma certa forma de ecologia humana, chocante
numa época em que tanto se exalta a necessidade de respeito pela harmonia
pré-estabelecida subjacente ao equilíbrio ecológico ambiental. Dissocia a
procriação da união entre um homem e uma mulher e, portanto, da relacionalidade
pessoal, em que o filho é acolhido como um dom,
tornando-a objeto de um direito de afirmação individual: o “direito” à parentalidade.
«(...) É certo que a
pessoa humana não é só natureza, mas
é também cultura. E também é certo
que a lei natural não se confunde com
a lei biológica. Mas os dados
biológicos objetivos contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação
que a inteligência pode descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe e não
como algo que se pode manipular arbitrariamente. A pessoa humana é um espírito
encarnado numa unidade bio-psico-social. Não é só corpo, mas é também corpo.
As dimensões corporal e espiritual devem harmonizar-se, sem
oposição. Do mesmo modo, também as dimensões natural e cultural. A
cultura vai para além da natureza, mas não se lhe deve opor, como se dela
tivesse que se libertar.»
O valor da dualidade e
conplementaridade sexual; homem e mulher chamados à comunhão
A
“ideologia do género” esquese e desvaloriza o sentido e alcance da dualidade e
complementaridade sexual. O sentido dessa dualidade é o do apelo à relação e à
comunhão. Só nessa relação e comunhão a pessoa humana se realiza. Cada um dos
sexos não exprime, por si só, a riqueza do humano na sua plenitude. Só na
comunhão entre eles tal se verifica. A diferença básica que representa a
dualidade sexual é, pois, uma ocasião de enriquecimento recíproco, não de
oposição e conflito.
O
homem e a mulher são chamados à comunhão porque só ela os completa e permite a
geração de novas vidas. A família, célula básica da sociedade, assenta na
colaboração das dimensões masculina e feminina. É esta que garante a geração de
novas vidas, mas também o equilíbrio harmonioso e completo da educação destas,
o qual supõe o contributo insubstituível de um pai e de uma mãe.
E
se é assim na família como célula base da sociedade, também o é em todos os
âmbitos desta. Todos eles, da política, ao trabalho e à cultura, benefeciam com
o contributo de homens e mulheres no que ele tem de específico. E também é
assim na vida da Igreja.
O
Papa Francisco afirmou, no seu discurso à comunidade do Pontifício Instituto
João Paulo II para Estudos sobre Matrimónio e Família, de 27 de outubro de
2016:
«A incerteza e a desorientação que atingem os afetos
fundamentais da pessoa e da vida desestabilizam todos os vínculos, familiares e
sociais, fazendo prevalecer cada vez mais o “eu” sobre o “nós”, o indivíduo
sobre a sociedade. É um êxito que contrasta com o desígnio de Deus, o qual
confiou o mundo e a história à aliança do homem e da mulher (Gn 1, 28-31). Esta aliança — pela sua
própria natureza — implica cooperação e respeito, dedicação generosa e
responsabilidade partilhada, capacidade de reconhecer a diferença como uma
riqueza e uma promessa, não como um motivo de sujeição nem de prevaricação.»
Colonização ideológica – da
tolerância à imposição
A
“ideologia do género” penetrou nos centros de poder político e legislativo, nacional
e internacional Dessa penetração são reflexo a redefinição do casamento de modo
a nela incluir uniões entre pessoas do mesmo sexo, as leis que permitem a
adoção por pares do mesmo sexo, as leis que permitem o recurso à procriação
artificial (incluindo a chamada “maternidade de substituição”) fora do âmbito
da infertilidade patológica, a admissibilidade de cirurgias de “mudança de
sexo”, e as leis que permitem a mudança do sexo oficialmente reconhecido
independentemente das características fisiológicas do requerente. E até a
generalização da expressão “igualdade de género”, em vez de “igualdade de
sexos” ou “igualdade entre homem e mulher”.
Se,
inicialmente, essa penetração se apresentou em nome da não discriminação e da
tolerância para com as minorias («é lá
com eles» - diziam muitos dos que aceitaram a legalização do casamento
homossexual sem aderirem à “ideologia do género”), hoje assistimos a sinais
crescentes de tentativa de imposição dessa ideologia como ideologia oficial,
que deve inspirar o ensino (público e privado), a comunicação social, a
deontologia profissional e limitar até liberdade de expressão do pensamento.
Parece-me
adequada, a este propósito, a expressão “colonização ideológica”, a que tem
recorrido o Papa Francisco, por dois motivos.
Por
um lado, porque estamos perante uma notória tentativa de sobreposição da
ideologia à realidade, confirmando aquilo que já se disse a este respeito: se
os factos não confirmam a ideologia, «tanto
pior para os factos».
Assim,
em nome da ideologia, pretende-se negar, ou tornar irrelevante, a biologia,
como se a pessoa não fosse uma unidade que a integra. Advoga-se a licitude das
cirurgias de mudanças de sexo, e até do bloqueio da evolução pubertária em
crianças e jovens pretensamente “transgénero”, tudo com base numa perceção
subjetiva contrária aos dados objetivos. Especialistas consideram estas
práticas uma «perigosa experiência de engenharia social», «baseada na ideologia
e não na ciência», salientando que a grande maioria de casos de “disforia de
género” em menores são superados, sendo que o bloqueio da evolução pubertária
acarreta graves e irreversíveis danos. Também são muitos os casos de pessoas
que se arrependem de cirurgias de “mudança de sexo”[1], mudança que acaba por ser
ilusória, dada a dimensão genética do sexo, que é obviamente inalterável. O
psiquiatra Paul Mc Hugh afirma que essas práticas mascaram e exacerbam o
problema da “disforia de género”, sem o resolver, que delas resultam apenas
homens efeminados e mulheres masculinizadas, e não quaisquer verdadeiras
mudanças de sexo.
Também
é uma negação da realidade a regra (que se pretende impor em vários Estados
norte-americanos, dando origem a polémicas que chegam aos tribunais: a chamada WC War) de frequência de casas de banho,
balneários e dormitórios segundo o “género” (escolhido) e não segundo o sexo (biológico):
afinal, são só as diferenças biológicas, e não outras, as que justificam a
separação.
Por
outro lado, deve falar-se em “colonização” porque não estamos perante uma
espontânea transformação de mentalidades, pretende-se que esta seja imposta
coercivamente.
Isso
traduz-se, desde logo, em tentativas de limitação da liberdade de expressão.
Vão-se
multiplicando tentativas de condenação, incluindo no foro criminal, de pessoas
que manifestam uma visão contrária à “ideologia do género”. Assim, contra
vários bispos espanhóis (de Pamplona, de Valência, de Granada e de Alcalá de
Henares), por exporem a doutrina católica sobre a prática homossexual. Ou
contra o bispo de Solsona, na Catalunha, por afirmar que a ausência do pai está
na origem da homossexualidade. Desde a condenação do pastor sueco Ake Green
(absolvido só em segunda instância), vêm-se sucedendo condenações e tentativas
de condenação de pregadores protestantes que citam textos bíblicos contrários à
prática homossexual. O político francês Christian Vanneste foi condenado em
primeira instância (também absolvido em recurso) por afirmar a danosidade da
prática homossexual à luz da máxima kantiana
relativa às consequências da universalização de um comportamento. Nem sempre
estes casos se traduzem, pois, em condenações definitivas. Mas a condenação da
política francesa Christine Boutin, por ter citado o Levítico qualificando a
prática homossexual como “abominação”, foi definitivamente confirmada pelo
tribunal de recurso.
Para
fundamentar tais condenações, é invocada legislação contra as chamadas
“homofobia” ou “transfobia” e o “discurso de ódio” (“hate speech”). Legislação que, numa interpretação que salvaguarde o
núcleo essencial da liberdade de expressão e da liberdade religiosa, deve
distinguir a livre discussão de ideias do desrespeito para com as pessoas e a
sua dignidade, a livre condenação do eventual erro do respeito sempre devido à
pessoa que possa errar
Mas
o Supremo Tribunal canadiano, quando confirmou, em recurso, a condenação, por
parte da Comissão de Direitos Humanos da Província de Saskatchewann, de uma
pessoa que distribuiu panfletos que condenavam a prática homossexual (apelando
aos ensinamentos bíblicos), não aceitou a relevância desta distinção,
considerando que existe uma forte conexão entre a orientação sexual e a conduta
sexual, e que quando a conduta visada pelo discurso é um aspeto crucial da
identidade de um grupo vulnerável, os ataques a esta conduta são equiparáveis
aos ataques ao próprio grupo[2].
Outro
aspeto da limitação da liberdade que é consequência da imposição da “ideologia
do género” diz respeito à liberdade contratual.
Em
vários países já foram condenadas pessoas (pasteleiros, floristas, fotógrafos
ou proprietários de restaurantes) que, por razões de consciência, se recusam a
colaborar em casamentos entre pessoas do mesmo sexo[3]. Há propostas de leis de
Estados norte-americanos (Geórgia; Mississipi; Indiana) que pretendem garantir
esse direito, em nome da liberdade religiosa e de consciência. Mas tais Estados
enfrentam ameaças de boicote por parte de grandes empresas, o que levou vários
políticos a abandonar tais propostas.
Nestas
situações, há que distinguir a discordância em relação a um ato com que não se
quer colaborar por razões de consciência (neste caso o “casamento” entre
pessoas do mesmo sexo) da regra geral de não discriminação de pessoas dotadas
de igual dignidade. As pessoas em questão não recusavam a prestação de
quaisquer outros tipos de serviços a pessoas homossexuais em razão desta sua
característica. Não infringiam, pois, tal regra de não discriminação.
Noutro
aspeto, a tentativa de imposição da ideologia do género, traduz-se em limitação
da autonomia profissional.
Leis
de vários Estados (e comunidades autónomas, em Espanha), e normas emanadas de
associações profissionais, proíbem qualquer terapia de mudança de orientação
sexual não desejada ou de mudança de identidade de género não desejada[4]. Mas já admitem, sem
restrições, cirurgias de “mudança de sexo”. Invoca-se, para tal, um suposto
“consenso científico” sobre a ineficácia e danosidade dessas terapias. Mas esse
consenso não existe[5].
São razões ideológicas que conduzem a tais proibições, pois admitir a
possibilidade de mudança de orientação sexual significa admitir que esta não é
inata e constitutiva da identidade da pessoa.
E
podem evocar-se outros exemplos de limitação da liberdade consequência da
tentativa de imposição da “ideologia do género”.
Nos
Estados Unidos, o Gender Identity Mandate
obsta à invocação da objeção de consciência por parte de médicos que se
recusem a praticar cirurgias de “mudança de sexo” (questão que já chegou aos
tribunais, tendo um tribunal do Texas reconhecido esse direito dos médicos,
numa decisão recente).
No
Canadá, a lei que regula a adoção (Bill
89 Supporting Children Teenth and Family Act), exige que o casal adotante
não tenha uma visão negativa da conduta homossexual.
São
várias as leis que impõem, a qualquer pessoas e em qualquer âmbito da vida
social, a obrigação de identificação das pessoas transsexuais pelo seu género (escolhido),
e não pelo seu sexo (biológico).
Todas
estas limitações da liberdade (da liberdade religiosa e de consciência, da liberdade
de expressão, de liberdade de educação, da liberdade contratual, da autonomia
profissional) confluem no já referido projecto de lei atualmente em discussão
em Espanha, «contra a discriminação por orientação sexual, identidade ou
expressão de género e características sexuais, e de igualdade social de
lésbicas, gays bissexuais
transsexuais, transgénero e intersexuais», projeto que chega a prever a
destruição de livros, o bloqueio de páginas da internet e a doutrinação de
funcionários públicos e jornalistas, Alguns dos seus críticos já lhe atribuíram
o epíteto de ley mordaza[6].
A “ideologia do género” e o ensino
Um
importante âmbito de penetração impositiva da “ideologia do género” é o do
ensino, encarado como um meio eficaz de doutrinação e transformação da
mentalidade corrente (a esta questão também se tem referido o Papa Francisco).
Pretende-se que as crianças, desde a mais tenra idade, se habituem à ideia de
que o género é uma escolha
independente do sexo de nascença, e
que não há modelos de família de referência, como não são modelos de referência
a paternidade e maternidade. A educação deverá servir para desconstruir os
chamados estereótipos de género,
nestes se incluindo qualquer forma de especificidade masculina e feminina (não
apenas as que possam ser consideradas injustamente discriminatórias), incluindo
no vestuário e nas brincadeiras espontâneas (com bonecas ou carrinhos).
E
a tentativa de imposição estende-se até ao ensino não estatal.
Nesta
linha, podem ser assinalados, como exemplos, a condenação em multa, do diretor
do colégio espanhol Juan Pablo II, de
Alcorcon, ou a política do Estado canadiano de Yukon de recusa de financiamento
público de escolas que ensinem a doutrina católica sobre a prática homossexual.
Contra
esta tentativa de imposição da “ideologia do género” no ensino, estatal e não
estatal, podem invocar-se relevantes normas de direito internacional e de
direito constitucional português. Assim, o artigo 26,º, n.º 3, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que estatui: «Aos pais pertence a prioridade do
direito de escolher o género de educação a dar aos filhos». Estatui, por seu
turno, o artigo 2.º do Protocolo nº 1 adicional à Convenção Europeia dos
Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. «O Estado, no exercício das funções
que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos
pais a assegurar essa educação e ensino consoante as suas convicções religiosas
e filosóficas». E estatui o artigo 43.º.n.º 2, da Constituição portuguesa: «O
Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura
segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas políticas, ideológicas ou
religiosas».
Importa, de qualquer modo, esclarecer bem o alcance da
recusa da imposição da “ideologia do género”, no âmbito do ensino e noutros
âmbitos.
O Papa Francisco tem salientado com insistência que a condenação dos
erros da “ideologia do género” não implica faltar à caridade para com qualquer
pessoa que experimente atração por pessoas do mesmo sexo (facto que não depende
da sua vontade e pode, para ela representar, uma provação), tenha uma prática
homossexual ou se considere de um género diferente
do seu sexo (transsexual).
A respeito das pessoas com tendência homossexual, o Papa Francisco
com frequência alude ao Catecismo da Igreja Católica, que afirma (n. 2538) que
elas devem ser tratadas «com respeito compaixão e delicadeza», e que contra
elas deve ser evitada qualquer «discriminação injusta». Na conferência de
imprensa durante o voo de regresso da viagem à Geórgia e Azerbeijão, afirmou: «As pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. Quando chega diante
de Jesus uma pessoa que tem esta condição, com toda a certeza Jesus não lhe
dirá: “Vai-te embora porque és homossexual”». E o mesmo afirmou em relação a
pessoas transsexuais.
Por isso, são de condenar todas as formas de ódio, violência, injúria, humilhação
ou bullying de que qualquer destas
pessoas possa ser vítima. Não podemos ignorar que é muitas vezes a exigência de
evitar alguma destas situações que serve de pretexto para implementar a
“ideologia do género”. Condenar esta não significa aceitar alguma dessas
situações.
Também é verdade que a ideia de especificidade masculina e
feminina tem servido, ao longo da história, para consolidar divisões de tarefas
rígidas e esteriotipadas, que, sobretudo, limitaram o papel da mulher na
sociedade. Contra essas limitações, é justo reagir. As especificidades
masculina e feminina não são algo de rígido (e daí também a sua beleza) e são
assumidas por cada pessoa como ser único e irrepetível (nem todos os homens são
iguais, nem todas as mulheres são iguais, cada homem é homem a seu modo, cada
mulher é mulher a seu modo). Isso mesmo salientam a nota da Conferência
Episcopal Portuguesa já referida e a exortação apostólica Amoris Laetittia. Nesta se afirma (n. 286):
«É
verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por
Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual
existem elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também é verdade que
o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível,
por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira
flexível à condição laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou
alguns aspetos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa
um fracasso, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a
aceitar como normais estes “intercâmbios” sadios que não tiram dignidade alguma
à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e
não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições
reais do matrimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento
das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco
masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma
tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas
ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o
autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas potencialidades.»
Outra coisa é, porém, como faz a “ideologia do género”, negar
qualquer especificidade masculina ou feminina, ou desvalorizar a paternidade e
matermidade no que têm de insubstituível. Nem todas as diferenças são
socialmente construídas, há as que são espontâneas (como podem ser, até certo
ponto, os jogos e brincadeiras de rapazes e meninas) e baseadas em dados
biológicos (a partir de diferentes configurações cerebrais). Poderá ser tão
opressora a imposição de estereótipos socialmente construídos como a igualmente
arbitrária e artificial negação dessas diferenças. Diz também o Papa Francisco
na Amoris Laetitia (n. 173): «Aprecio
o feminismo, quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade.»
E também (n. 175): «Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às
circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida
das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o
amadurecimento da criança.»
[1] Ver www.sexchangeregret.com
[2]
O
acórdão pode ser consultado em http://scc.lexum.org/decisia-scc-csc/scc-csc/scc-csc/en/item
/12876/index.do.
[3] No
momento em que escrevo, estão pendentes nos tribunais norte-americanos os casos
dos pasteleiros Aaaron e Melissa Klein, de Gresham (Oregon), e de Jack Philips,
de Lakewood (Colorado), assim como o da florista Barronelle Stutzman, de Richland (Washington).
[4]
No momento em que escrevo,
estão em discussão linhas guia da Ordem dos Psicólogos portuguesa que vão nesse
sentido.
[5]Contra tal suposto consenso pode ver-se o estudo de Lawrence Mayer e Paul Mc Hugh «Sexuality and Gender Findings from the Biological Psicological and Social Sciences», em New Atlantis, n.º 50, 2016 (www.thenewatlantis.com/docLib/20160819_TNA50SexualityandGender.pdf) e o estudo da National Association for Research and Therapy of Homosexuality publicado no Journal of Human Sexuality, vol I, (https://static1.Squarespace.com/static/5527394ae4b0ab26ec1c196b/t/557b0f80e4b08777d54df70c/1434128256329/What-research-shows -homosexuality.NARTH_.pdf). E podem ver-se os testemunhos de mudança de Luca del Tove (Erro Gsy A Medjugorje ho ritrovato me stesso Piemme 2008 Milão) e de Richard Cohen (Abriendo las Puertas del Armario lo que no sabias sobre la homosexualidad, tradução espanhola, Libroslibres Madrid 2013).
[6] Críticas pormenorizadas a esse projeto de lei surgiram do Foro Espanol de la Familia (ver https://www.forofamilia.org/notas-de-prensa/el-foro-de-la-familia-manifiesta-su-apoyo-al-derecho-de-los -padres-para-decidir-en-libertad-la-educacion-de-sus-hijos-en-materia-de-sexualidad) e da Aliança Evangélica Espanhola (ver http://www.aeesp.net/2017/07/13/proposicion-de-ley/)
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