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sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O Sentido

No momento em que escrevo estou num hotel em Pequim e acabo de tomar o elevador. O prédio tem vinte e oito andares, além dos pisos do subsolo, e estamos hospedados no sexto andar. Na verdade há um ligeiro drible do entendimento, porquanto não existem os andares 4, 13, 14 e 24. E por que não existem? Porque o número 4 é sinónimo de má sorte na cultura chinesa, ainda pior que o número 13. A coisa é levada tão a sério que linhas telefónicas que possuam o número 4 são mais baratas por aqui. O número 9 é sinal de saúde, o número 8 de riqueza. Como a cartilha de um viajante recomenda sempre que se aceite hábitos e costumes do país que se visita, luto comigo mesmo para não contestar, mesmo intimamente.

Pergunto a uma chinesa que nos acompanha se possui fé. Responde que não. Tem menos de trinta anos e firme convicção, aparentemente, de que a vida aqui se encerra. Depois da morte? Nada. No entanto são supersticiosos. Como explicar a conjunção do materialismo com a crença de que o sobrenatural intervenha e que até os números o traduzam? A China teve três grandes veios de espiritualidade: o taoismo, o confucionismo e o budismo. Confúcio ditou preceitos interessantes, mas hoje pouco se fala nele. Os templos budistas que se vê, de vez em quando, são destituídos do prestígio de que um dia gozaram. Há um grupo pequeno de muçulmanos, corpo estranho que um dia veio do mundo árabe e hoje conta entre os mais pobres. Quantas pessoas têm alguma fé neste país maior que o Brasil? Poucas, a ponto de se poder imaginar que existe por estas terras - que um dia Marco Polo palmilhou,- mais de um bilião de ateus. 

Se um só ateu me é difícil de entender, o que dizer de um exército de ateus como este? A muralha da China e seus mais de oito mil quilómetros de extensão foram uma tentativa de proteger o país de invasões de mongóis e hunos. Linha dispendiosa, precedeu a linha Maginot em muitos séculos e mostrou-se tão ineficiente quanto. Não há linhas de defesa capazes de deter algo que esteja sobejamente acima delas. Será que a muralha religiosa será duradoura?

Foram várias as dinastias chinesas, iniciadas em Guilin. Ming e Qing são as duas últimas e também por conta disto talvez sejam as mais conhecidas. A dinastia Qing proveio do norte da China, da Manchúria, chão dos Xamanes. A palavra xamã já sugere algo por si mesma, como uma raiz de superstição. A turma de Mao Tse-tung, precedida pelo exemplo dos bolcheviques, instalou o comunismo nestas terras distantes, impondo a um povo uma utopia que matou milhões, inclusive de fome. Ninguém de sã consciência defenderá o modelo anterior, pontuado pela dissipação de imperadores e a exploração criminosa dos europeus, mas o receituário de Mao foi trágico, a despeito do recente e inegável progresso material. Hoje, aliás, se reconhece que foi Deng Xiaoping, sucessor de Mao, quem dirigiu a guinada económica chinesa.

Visitar o mausoléu de Mao, o camarada que se intitulava Grande Timoneiro, foi um souvenir de que não abrimos mão. Permanecemos pouco mais de uma hora na fila, em plena praça Tian´anmen, que tem como uma de suas laterais a entrada da Cidade Proibida. Passamos pelo controle de segurança e nos aproximamos do portentoso edifício, entre chineses de todos os cantos, compungidos pelo momento que se aproximava. Naquela mesma praça, em outubro de 1949, líder vencedor de uma guerra civil, Mao Tse-tung fundou a República Popular da China. Ainda hoje seu retrato estampa a entrada da Cidade Proibida, construída bem antes do descobrimento do Brasil. Imperador deposto, timoneiro reposto.

Quando entramos no prédio vislumbramos uma estátua enorme de Mao, sentado com elegância, pernas cruzadas, algo similar à famosa representação de Lincoln em Washington.  Uma imensa pintura na parede, às suas costas, representa os cimos das montanhas e nuvens que quase os cobrem. Mao está acima das montanhas, acima das nuvens, como figura mitológica no Olimpo chinês. Radical além da conta, Mao comandou o extermínio da religiosidade de um povo, que hoje sonha carros e viagens ao exterior. E se colocou no altar dos santos.

O que será desta gente, que humildemente labora como formiga? Submetida a uma lavagem cerebral sem precedentes, os chineses, voltados exclusivamente para o materialismo, têm mostrado também a espiritualidade de formigas. Receio que, sufocados pelo governo, do qual já desconfiam, tenham perdido o sentido da vida, que não pode ter como objectivo apenas a triste e indigente busca por bens. A despeito de tudo, creio que o tempo abrandará o estrago, porque não há muralha ideológica capaz de apagar o que está inscrito no coração dos homens.

J. B. Teixeira



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