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domingo, 5 de agosto de 2018

Carta a um recém-nascido

Era uma tarde quente, daquelas dignas do Senegal. Do deserto do Senegal, para que fique bem claro. Estava em situação desconfortável, numa fila nada generosa de uma lotérica, para pagar um tributo municipal, que só se pode quitar num banco estatal ou na tesouraria do alcaide. Em tempos em que tudo se agiliza, para que facilitar, não é mesmo?

À minha frente, uma senhora com seu recém-nascido. Rosto avermelhado, pernas e braços mal protegidos, solo fértil para doenças que tiram proveito da falta de imunidade de quem acaba de chegar ao mundo. Perguntei sua idade. Dez dias. Seus olhos mal abriam, incomodados pela luminosidade do que refulgia no lado de fora. Não era um dia para andar pela rua com uma criança de dez dias, mas o que fazer? É um menino e sua mãe, antes continente, é agora braço condutor. Este pequenino não tem a menor ideia de onde caiu, em que raio de país nasceu. Sente fome, frio e calor, dores que o aconchego materno mitiga ou consola.

Dinheiro amarrotado numa das mãos, uma pequena mamadeira na outra, a mãe abastecia o pequeno e satisfazia sua oralidade naquela fila. Por que as filas são tão compridas? Porque boa parcela da população não dispõe das comodidades da rede mundial, mas também porque pagamos contas demais, o que nos amarrota o humor. Carnês, contas de água, luz, telefone, ... Meu caro compatriota, inocente e desprovido, o dinheiro de tua mãe será pouco para cobrir os remédios de tuas inevitáveis doenças. O rio que corta a cidade é poluído por criações de porcos, curtumes, processadores de alimentos e pelo esgoto cloacal das comunidades que atende. A situação é tão vergonhosa que suas águas são contraindicadas para o banho.

Nasceste num país repleto de farmácias e de lotéricas. Nestas o povo sonha com a sorte grande enquanto paga contas. Naquelas, cumpre metáfora proustiana na linha do “Em busca da saúde perdida”. Os preços dos remédios são de assustar. Recomendo que não fiques doente, mas como evitá-lo se crescerás em local insalubre, em casa cheia de gretas que assobiam no inverno e se tua alimentação à base de amido e gordura te fará obeso e fraco?

Um dia te ensinarão hinos e outros símbolos, de uma pátria que derreteu, de uma nação que não existe senão no formalismo. Oxalá isto reverta, em meio a uma desindustrialização que talvez não tenha similar na história mundial. O que fizeram com o Brasil é hediondo. Nos esvaímos pagando juros e a indignação com a roubalheira pública é impotente. O descompasso entre o governo e os empreendedores nacionais, endividados, é de tal ordem que o governo tributa até mesmo o dinheiro que o empreendedor toma emprestado. Ou seja, o sujeito já está mal, toma empréstimos para mitigar seus problemas e o governo agrava isto com imposto sobre operação financeira ... É como oferecer salmoura para quem tem sede.

Para piorar o quadro, meu caro pequenino, mantemos discussões insípidas, radicais e inúteis acerca de ideologia. Há quem jure, aliás, que o nosso país é hors-concours em reabilitar teses, ideias e movimentos ultrapassados, desmentidos ou mesmo ridicularizados. Teria sido assim com o positivismo de Augusto Comte, com a visão de Marx, esquecido na Alemanha, e mesmo com Alan Kardec, muito mais conhecido por aqui do que na França. Seria esta a nossa sina: bater escanteio quando o jogo já acabou?

Fé e ideologia nunca formaram uma boa dupla. A fé vem do alto e tem raízes na esperança. As ideologias, religiões bastardas, como já disse um sábio, são arremedos de religião, mas podem fazer estragos apocalípticos. Teu drama, homenzinho, é o futuro mal delineado, acossado por ideologias que não tiveram sucesso em lugar algum na história da humanidade.

Não é a pobreza que nos esmaga, não é a precariedade da educação e da saúde públicas que nos amarfalham. Isto se reverte em duas décadas de trabalho duro. O que nos desanima é a covardia e egoísmo dos que têm benesses, dos que gozam de privilégios numa sociedade que sequer merece o nome. Esta covardia, acasalada com a futilização de nossa elite, preocupada em ostentar riqueza e superioridade, é mãe das discussões inúteis nas redes sociais, em que as pessoas pisam em ovos para não perder amigos ou são verbalmente truculentas para negar o óbvio que as incomoda. Os que te precederam foram esterilizados sem perceberem. Teu drama, meu caro e pequeno compatriota, é que estamos reduzidos ao cinismo e à desesperança.

J. B. Teixeira




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