«Diferentemente de outros povos – chineses, israelitas,
japoneses, por exemplo, que encontram com facilidade num longo passado contínuo
todos os recursos de uma identidade bem definida, os europeus são vítimas de
rupturas históricas que turvaram as suas referências. Esta falha de consciência
identitária é antiga. Só que quando éramos fortes, poderosos, senhores da nossa
casa e em toda a vastidão do mundo, não tinha consequências visíveis.
Bastava-nos existir. Hoje em dia que os europeus enfrentam desafios mortais e
inéditos, o regresso às suas origens primordiais impõe-se como nunca, pelo
menos para aqueles que têm vocação de agir em prol de um renascimento.
Todas as grandes civilizações descansam sobre uma
antiga tradição que atravessa o tempo e transporta com ela as chaves do reino.
Todas têm por origem o livro ou a palavra de um sábio, de um profeta ou de um
poeta fundador. A tradição chinesa com Confúcio, a tradição himalaia com Buda, a
semita com Moisés e Maomé, a tradição hindu com os Vedas, a tradição europeia
com Homero. Em razão da sua divindade e da sua universalidade, Jesus situa-se à
parte e noutro plano».
O autor deste texto escrito em 2005 – Dominique
Vernner – considera-se um espírito livre, um `coração rebelde´, sem cadeias
políticas ou ideológicas. Porém, fiel aos valores da sua infância, faz uma
análise séria e profunda da situação europeia, apontando muito claramente a
lacuna de que envereda.
Parafraseando-o eu diria que a tradição não ensina a
construir um computador, porém saber que se é descendente de Ulisses e de
Penélope, filho de Deus e não de Maomé ou de Buda, não é indiferente nem tão
pouco irrelevante.
Desnorteados pela falta de memória identitária e pela
sua terrível derrota histórica duma guerra de 30 anos – 1914-1945, a Europa não
tem outra opção que seja a de recorrer à fonte de energia espiritual donde
surgiu o impulso inicial da sua civilização há vários milénios. Não é voltar
para trás, é reactualizar os princípios vivos de um específico ideal de vida.
Impregnados por uma visão teleológica da história,
pela loucura da cultura do progresso, com desprezo pelo passado e recusando ou
ignorando a riqueza da sua tradição espiritual, encontra-se desamparada perante
o descomunal movimento mundial de retorno identitário que vêem facilmente como
uma regressão. Na sua cegueira, procuram soluções técnicas (políticas,
económicas, organizacionais) para uma crise de civilização que é simplesmente espiritual.
O grande problema do nosso tempo não é de natureza política
nem económica, mas de carácter cultural, moral e, em última análise, religioso.
Trata-se de um conflito entre duas visões do mundo: a visão daqueles que
acreditam que há princípios e valores imutáveis, inscritos por Deus na natureza
do homem; e a visão daqueles que sustentam que não existe coisa alguma que seja
estável e permanente, mas que todas as coisas são relativas ao tempo, aos
lugares, às circunstâncias.
Não existindo valores absolutos nem direitos
objectivos, a vida humana reduz-se a uma procura do prazer e satisfação egoísta
dos instintos e `necessidades´ subjectivas, hoje apelidadas de novos
`direitos´. A vontade de poder dos indivíduos e dos grupos torna-se então a
única lei da sociedade, constituindo-se, como afirma Bento XVI, `uma ditadura
do relativismo´, que não reconhece coisa alguma como definitiva, e que propõe
como medida última o próprio eu e os seus caprichos.
A oposição à ditadura do relativismo passa
necessariamente pela redescoberta da lei natural divina que foi o fundamento da
civilização cristã, tendo-se constituído na Europa ao longo da Idade Média, e
difundido, a partir de então, para todo o mundo. As raízes cristãs da sociedade
não são, deste ponto de vista, apenas históricas, mas sobretudo constitutivas e
formativas do espírito humano.
Sabendo que foi recusado fazer referência às raízes
cristãs da Europa no Preâmbulo do Tratado Constitucional Europeu aprovado em
2004 não deixa de ser pertinente reconhecer que foi uma opção preocupante, na
medida em que uma constituição é também o reflexo e a salvaguarda dos valores,
ideais e símbolos partilhados por uma determinada sociedade. Neste sentido é um
espelho da mesma sociedade, um elemento essencial da sua compreensão,
desempenhando um papel fundamental na definição das identidades nacionais,
culturais e valorativas do povo que a adopta. Optar pela abordagem da
religiosidade sem fazer referência expressa às raízes cristãs da Europa, à dimensão da sua transcendência e ao amor e respeito pelo sagrado, não
corresponde minimamente a um passado que não se pode negar e que, mesmo visto
exclusivamente sobre a perspectiva histórica a religião, e em particular o
cristianismo, teve um papel importante e determinante na formação da Europa
física e da humana consciência europeia, basta recordar toda a dimensão da
arte, música, escultura, pintura e arquitectura, ao longo de muitos séculos.
Sinais dum novo totalitarismo moderno, fundamentalista
e cristofóbico com repressões éticas, culturais e humanas? Imposição duma
democracia secularizada em que o absoluto é impositivamente relativizado?
Enfim, uma novidade moderna em que não há lugar para um passado que a todo o
custo se quer eliminar. É também uma nova forma de ateísmo, que consiste na
tentativa de afastar o cristianismo da memória histórica e do espaço público,
para evitar toda e qualquer forma de compreensão cristã da Europa.
Intencionalmente deixou em aberto o espaço para serem
introduzidos novos deuses importados do oriente como forma de suprir o vazio
espiritual e cultural desta tentativa de imposição laica. Mas, paradoxalmente,
estamos numa situação de deslumbramento face aos incontáveis exemplos do
reacender da fé numa religiosidade cada vez maior e mais genuína, vindos de
todo o mundo, nomeadamente dos países onde as duas grandes ditaduras do século
XX, nazismo e comunismo, votaram pela força ao silêncio, proibindo e condenando
toda e qualquer prática de adoração ao Deus criador. É assim a vida da Igreja,
é assim a história da humanidade, está nos Livros Sagrados, basta ler e querer
crer para minimizar algumas circunstâncias que, a seu tempo, também farão parte
do passado.
Como as plantas, os homens não podem prescindir de
raízes. Mas as suas raízes não são apenas as da hereditariedade, mas também as
do espírito, isto é, da tradição que cabe a cada qual reencontrar.
Maria Susana Mexia |
Sem comentários:
Enviar um comentário