Nos despedíamos à porta, depois de entretida conversa. Faláramos
sobre os dramas mais prementes do país, os desvios dos homens públicos e as clássicas
traições, aquelas perpetradas justamente pelos mais próximos. Como reagir
diante do descalabro das administrações públicas? Persistir? Silenciar?
Desistir? O interlocutor lançou estas perguntas como quem atira um rojão e
ameaça correr. Lançara um desafio para o qual me achava desarmado. Não deu
outra: fiquei longe de dar as melhores respostas.
Vale a pena dar uma de Dom Quixote? A pergunta sintetizava sua
amargura, como funcionário público perseguido por suas convicções, afastado da
função para a qual habilitou-se em concurso. Disse a ele alguma besteira
qualquer, lembrando que os que travam o bom combate dele não se arrependem. Dormem
em paz, ou no mínimo o sono menos inquieto. Constrangido por desferir
obviedades, fechei a porta, frustrado, como quem acaba de desperdiçar um
pênalti.
Nos dias que se seguiram me surpreendi algumas vezes pensando no
assunto. Porque me incomoda a ideia de que o idealismo possa ser uma figura de
museu, relegada às narrativas do passado. Aliás, há certamente algo de muito errado
numa sociedade em que muitos se perguntam sobre a validade do idealismo. Porque
já não o têm. Isto é uma surpresa, um fato isolado? Ora, infelizmente não. A
bem da verdade as coisas não se dão da noite para o dia. Já faz tempo que o
ideal foi sendo varrido do palco da vida. Nem a religião escapou: não param de
surgir seitas de todo o tipo, com objetivos claramente pecuniários. Valem-se da
necessidade dos homens de um norte espiritual. Valem-se da boa fé.
No plano mundial a derrocada do idealismo também não surpreende:
este mundo que respiramos rompeu até o indefectível instinto de sobrevivência,
que foi pelos ares. Era algo impensável, pedra fundamental da humanidade, que
chora seus suicidas mas sempre teve dificuldade em entendê-los e mesmo
perdoá-los. É certo que a história registra os kamikazes, de triste memória,
mas os homens que se explodem alavancaram o terrorismo e o combate a ele
tornou-se tarefa pior que achar uma agulha num palheiro. Porque esta agulha
explode.
Num mundo secularizado, tornou-se comum viver a vida sem valores,
sem aspirações mais elevadas, sem a meta de deixar um legado. Ora, uma vida
calcada na brutalidade material, sem espiritualidade, sem fé e caridade não
passa de uma dissipação. Como dispor de ovos, farinha, manteiga e leite e não
fazer sequer um bolo. Acumular riqueza, fartar-se com o que há de melhor e sonhar
com a longevidade é como sonhar com encostas do Himalaia, mas escalar
planaltos.
Uma das palavras mais incensadas em nossa época é sucesso.
Perseguido com sofreguidão ou fúria, o sucesso passa a ser a medida social,
como uma régua com a qual as pessoas se comparam. Fazem um censo dos bens e
conquistas de uns e outros. E então fruem ou invejam, conforme se sintam acima
da carne seca ou inferiores. Quem não atinge o sucesso é burro, preguiçoso ou
incompetente. Quem busca o sucesso por si mesmo, porém, provavelmente não
deixará legado algum além de eventual fortuna ou dos bens que se possa
contabilizar. O legado, por outro lado, tem como característica a
imaterialidade, que impede a contabilidade corriqueira. Legados não são
traduzíveis em moedas.
O homem que se deixa cegar pela luz do sucesso fecha-se em si
mesmo e acaba vivendo como uma mariposa, revoluteando num poste enquanto a
noite o convida para voos contemplativos e mesmo ao silêncio. A ribalta é um
posto avançado da ilusão e suas luzes, estas Chaplin denunciou em filme e
musicou com poesia.
Vale a pena lutar como um Dom Quixote? Por grandes causas,
certamente. Não como figura bizarra, a despedaçar lanças contra moinhos
imaginários. Para lutar basta, no mais das vezes, não omitir-se, vencendo o medo
e não dando a mínima para os respeitos humanos. As encrencas que advêm não são
um bilhete para o paraíso, mas a satisfação da hora final, quando deveremos
prestar contas dos talentos recebidos. Viver com o freio de mão puxado, escravo
das conveniências, buscando sempre o conforto e o aplauso, é mesmo morrer um
pouco em vida.
J. B. Teixeira |
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